Não sei por que tanta gente pareceu ofendida com o questionamento do nazismo como expressão da extrema-direita. Sim, como observei em artigo recente, os estudiosos do assunto o qualificam como tal. E daí? Se a busca pela verdade pressupõe o amor pelo conhecimento, questionar determinadas afirmações e posições para verificar a sua veracidade e autenticidade é mais do que legítimo; é necessário.
Nos estudos científicos, essa conduta é padrão. Todo pesquisador honesto também testa aquilo que é dado como certo em dado momento. E assim a ciência avança. Essa postura deveria ser levada ainda mais a sério no âmbito da filosofia e da ciência políticas. Nenhuma teoria deve estar blindada à reavaliação ou à falseabilidade. Se o for, teremos o contrário da busca pela verdade.
Fazer pouco caso ou inviabilizar o debate que coloca em causa o nazismo como manifestação da extrema-direita porque há um quase consenso dos estudiosos do assunto é uma postura tão idiota quanto defini-lo como extrema-esquerda sem, antes, demonstrar as razões que fundamentam tal definição.
Volto a dizer o que já escrevi neste espaço: antes de partir para o posicionamento espacial de uma dada ideologia, é preciso explicar os conceitos de esquerda e de direita segundo a realidade política local na época (ou no passado) da emergência do fenômeno político-ideológico. Porque uma ideologia só poderá ser a versão extrema de algo que existe (ou que existiu). Se na Alemanha não havia uma direita dotada daqueles elementos constitutivos que no nazismo foram radicalizados, como poderia ser este a expressão extrema daquela?
Trata-se, contudo, de um esforço de investigação e análise que deve ser empreendido por acadêmicos, estudiosos e pesquisadores independentes. Se é verdade que a maioria que se envolveu nessa conversa nas redes sociais para desvincular o nazismo da direita ao enquadrá-lo à esquerda não leu nem sequer o Minha Luta, de Adolf Hitler, e ignora a história política da Alemanha nazista, sua reação, mesmo que intelectualmente precária, revelou-se providencial ao chamar a atenção para um problema que carece de estudos específicos.
Falei de nazismo; por que não falar de comunismo? Antes, uma pergunta: vocês já devem ter ouvido falar na Síndrome de Estocolmo. Mas há outra que provoca reação parecida na vítima, mas de outra natureza: a Síndrome de Moscou. Na de Estocolmo, a pessoa, quando submetida à intimidação prolongada, se afeiçoa ao seu agressor; na de Moscou, igualmente, mas o afeto direciona-se ao comunismo e aos seus líderes.
A Síndrome de Moscou já foi bastante comum durante a existência da União Soviética, não só na esfera das populações locais, mas entre os intelectuais, artistas, escritores, cineastas, enfim, a fauna de sempre que era convidada ilustre dos governos comunistas para conhecer as maravilhas do sistema. Os passeios eram obviamente controlados para que os estrangeiros vissem apenas o que o Partido Comunista queria.
Esses visitantes ilustres eram tratados com mimos variados e muitos deles também eram pagos para atuarem como militantes ou espiões em seus países de origem. Os países comunistas desenvolveram, inclusive, técnicas de hospitalidade para recebê-los de forma eficiente. Tudo está muito bem documentado e explicado no excelente livro Political Pilgrims: Western Intellectuals in Search of the Good Society, do professor Paul Hollander.
Lembrei-me da Síndrome de Moscou ao ler a entrevista do diplomata brasileiro Roberto Colin, que entre 2012 e 2016 foi embaixador do Brasil na Coreia do Norte. Antes, Colin trabalhou na União Soviética e na Alemanha antes da queda do Muro de Berlim. Se a transcrição da entrevista estiver correta, o que ele disse revela: 1) uma ignorância profunda e inaceitável para um diplomata acerca da natureza cultural e política do comunismo; 2) a manifestação explícita da Síndrome de Moscou; ou 3) ambas as opções anteriores.
Ao afirmar que considera o regime da Coreia do Norte parecido com uma seita religiosa em vez do país comunista que efetivamente é porque lá “mais da metade da economia é privada, é uma economia de mercado”, o diplomata cai no equívoco comum e rasteiro de achar que em pleno 2017 um governo comunista manteria o erro de estatizar todas as propriedades e meios de produção e de controlar todas as atividades econômicas. Lenin percebeu essa furada nos anos seguintes à revolução de 1917 e, por isso, implementou em 1921 a Nova Política Econômica. Os comunistas, portanto, já sabem o que fazer há quase 100 anos.
E aí entra a parte contraditória da entrevista, o que coloca o diplomata numa posição ainda mais delicada. Se ele admite que a sua própria vida era vigiada e que ele era proibido de andar de ônibus e de ter contatos com as pessoas na rua, além de revelar que “na capital, moram os privilegiados da elite governante do país”, gente que integra o partido e as Forças Armadas, ao mesmo tempo em que o resto do país vive na miséria, o que poderia ser mais comunista do que isso? Na União Soviética e em todos os países comunistas a elite do partido e os seus acólitos eram privilegiados de forma similar enquanto o povo passava fome. Até mesmo a relação da sociedade norte-coreana com seus líderes políticos do passado e do presente é puro comunismo.
Se o problema do diplomata brasileiro for ignorância ou for a Síndrome de Moscou, ambas têm cura, embora curar-se fácil não seja. É um processo que pode ser demorado e doloroso.
E vejam só. Na mesma semana em que li a entrevista do diplomata brasileiro, recebi o novo livro do Theodore Dalrymple, Viagens aos Confins do Comunismo. Coincidência ou providência?
O livro é um relato pessoal das visitas feitas pelo médico Anthony Daniels, o homem por trás do pseudônimo, em cinco países comunistas: Albânia, Romênia, Vietnã, Cuba e, por que não?, Coreia do Norte. O relato da visita à Coreia do Norte é exemplar daquela técnica de hospitalidade analisada pelo professor Paul Hollander e mostra por que o país era (e continua sendo) comunista – ao contrário do que acha o nosso diplomata.
Com a maestria e a argúcia de sempre, Dalrymple nos leva a um passeio revelador pela realidade desses países, além de nos conduzir, e talvez aqui esteja o aspecto mais importante, pelos meandros da natureza humana e de como esta reage quando submetida a um estado de maldade plena.
Viagens aos Confins do Comunismo é literariamente sedutor e psicologicamente revelador do mal que constitui o comunismo. Recomendo vivamente a leitura. Principalmente para o diplomata Roberto Colin.
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