Eu estaria mentindo se dissesse ter ficado chocado com a escolha da cantora Anitta como “Mulher do Ano” de 2017. Porque ela se enquadra no perfil e nos critérios adotados por revistas como a GQ.
Publicações que elegem “mulheres (ou homens) do ano” geralmente premiam beleza e algum destaque profissional. A artista premiada não precisa – diria eu até que não deve – ser um símbolo de grandeza da qual seria o fruto a sua atuação profissional.
A homenageada pela revista GQ no ano passado dá uma pista do que eu digo. Em 2016, a escolhida foi a atriz Tais Araujo, que, no limite de sua ignorância, tem criado uma caricatura do racismo – que existe – e dos problemas que afetam – profundamente – as mulheres no Brasil.
Numa palestra recente, se de forma legítima ela demonstrou a sua preocupação com o racismo de que seus filhos com o ator Lázaro Ramos poderiam ser vítimas, afirmou que “a cor do meu filho é a cor que faz com que as pessoas mudem de calçada, escondam suas bolsas e que blindem seus carros”. Entendo o ponto. O que ela quis dizer é que o seu filho, pela cor, seria confundido com um criminoso. Ela confunde, então, racismo com medo da violência num país cada dia mais inseguro.
É improvável, porém, que sendo filhos de dois atores conhecidos e frequentando locais de elite, isso aconteça com eles como provavelmente acontece com os filhos das funcionárias que trabalham como faxineira ou babá na casa de Tais Araujo e Lázaro Ramos, outro que tem se destacado pela forma ideológica com que trata o problema – grave – do racismo.
Na semana passada, Tais Araújo despediu-se do programa Saia Justa, este território televisivo de todos os clichês ideológicos possíveis e impossíveis sobre todos os assuntos em discussão. Junto com a cantora Pitty (feminista raivosa), Mônica Martelli (feminista doidivanas) e Astrid Fontenelle (feminista ressentida), ela ocupava há um ano o posto antes ocupado pela atriz Maria Ribeiro (feminista enxaqueca). Assistir o Saia Justa é sempre uma experiência sociológica, uma visita guiada pelo Feministão.
Sobre Anitta, desde uma discussão com a cantora Pitty (o que aconteceu com os nomes de verdade?) em 2014, parece que ela tem assumido uma postura mais feminista pela pressão que vem sofrendo desde então pelas redes sociais.
Com sua história de vida e de conquistas, porém, por mais que eu rechace as suas músicas, letras e performances, uma artista como a Anitta não deveria ser presa fácil de militantes como a Pitty. Mas num ambiente artístico como o atual, por parte de quem ela teria apoio moral e intelectual para escudar-se de seus maus influenciadores e patrulheiros?
O que é positivamente surpreendente na escolha de “Mulher do Ano” de 2017 é o fato de haver reação sobre os critérios e qualificações para que uma mulher mereça um prêmio que a fará representante pública do sexo feminino. Destaque artístico deveria ser o suficiente para tal homenagem? Ou não seria mais adequado contabilizar também ideias e atos virtuosos que engrandeçam em vez de reduzir a mulher homenageada?
Num artigo sobre o tema no site Senso Incomum, Flavio Morgenstern pergunta se “alguém pode ser melhor do que Anitta para representar 2017”, um ano que não deve “ser lembrado pelas suas grandes virtudes” senão por “uma minoria pedante ganhando poder através do siricutico”.
Morgenstern está certo em suas observações se considerarmos o que aconteceu na cultura pop nacional no passado. Mas o próprio artigo simboliza essa mudança positiva de parâmetros ocorrida no país em 2017 quando ele sugere que mesmo um prêmio diletante deveria valorizar as suas escolhas com base na grandeza (e não só no mérito) de suas escolhidas. Em vez de Anitta, escreveu, “uma escolha incrivelmente mais sensata seria Heley de Abreu Silva Batista, da creche em Janaúba, no norte de Minas Gerais, que deu sua própria vida para salvar seus alunos de Damião Soares Santos, que ateara fogo ao seu próprio corpo e abraçava as crianças da creche para matá-las com ele”.
Se não ocorrer uma guinada respeitável em premiações desse tipo, arrisco a dizer que, no futuro, talvez nem mesmo uma artista como a Anitta atenda as qualificações para ser homenageada. A começar pelo fato de ter nascido mulher. O sexo feminino pode se transformar num obstáculo para ser escolhida “Mulher do Ano”. E então veremos ser cumprida a profecia do destemido jornalista Joselito Müller: a atribuição de um prêmio para a “Mulher Do Sexo Masculino Do Ano”.
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