2013 foi um ano especial. Um acontecimento foi fundamental para que eu pudesse aprofundar o processo de construção de um vínculo com o Brasil, algo que eu jamais tive. Refiro-me ao primeiro encontro de escritores promovido pelo professor Olavo de Carvalho em sua casa em Richmond, Estados Unidos.
Durante cinco dias, Olavo conduziu uma conversa qualificada sobre várias dimensões da cultura brasileira da qual participaram eu, o crítico literário Rodrigo Gurgel, o poeta e ensaísta Ângelo Monteiro, o jornalista Paulo Briguet e o professor português Miguel Bruno Duarte. Durante aquela conversação eu me dei conta do quão pouco eu sabia sobre a história e a cultura brasileiras. E a razão dessa ignorância tinha uma única explicação: desinteresse. Até cinco anos antes daquele encontro, o Brasil pouco me interessava. A cultura brasileira pouco me interessava. O brasileiro pouco me interessava. Talvez meu único interesse no Brasil fosse a nossa literatura clássica, os livros dos nossos grandes autores, que eu li durante anos e que foram fundamentais na minha formação.
É claro que havia ali naquela minha postura uma tremenda contradição: como um leitor voraz e empolgado dos nossos maiores escritores e dos nossos grandes críticos literários – um leitor de Gregório de Matos, padre Antônio Vieira, Tomás Antonio Gonzaga, Olavo Bilac, Lima Barreto, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Silvio Romero, José Veríssimo, Agrippino Grieco, Alceu Amoroso Lima, Wilson Martins – poderia, ao mesmo tempo, ser alguém em parte desinteressado pela nossa cultura?
Porque eu era – e continuo sendo – um leitor empolgado e apaixonado pela literatura e pela crítica literária brasileiras. Não há um ano desde que me tornei leitor – por volta dos 20 anos de idade, leitor tardio que fui – em que eu não leia ou releia os nossos autores clássicos.
Vendo o meu passado pelo retrovisor da história, no entanto, fico com a impressão de que um elemento que me torna tão profundamente brasiliano operava em mim como instrumento perverso daquele alheamento.
O elemento a que me refiro era a certeza que eu nutria de que nós, brasilianos, éramos personagens menores e indignos de atuar nesse grande palco que é a Cidade dos Homens. E que por nossas misérias e males, que possuíamos em grau superior ao dos estrangeiros de terras idealizadas, teríamos imensa dificuldade em sermos aceitos na Cidade de Deus. “Dos males destinados a exercitar os justos”[1], acreditava eu, sobravam-nos vícios, faltava-nos justiça.
Mesmo sendo eu um leitor que privava do convívio com alguns dos maiores nomes da nossa cultura, numa grande conversação com aqueles que deixaram um legado do qual tornei-me sem perceber um dos tantos guardiães temporários, na minha cabeça aqueles cânones não representavam o nosso país, não nos representavam – nós, os brasilianos –, posto que eles eram, de fato, as exceções que confirmavam a regra.
Ao assim pensar, eu agia como representante do que chamei de cultura do ódio contra o Brasil (http://bit.ly/2ECGK5K). Em poucas atividades, já escrevi aqui, somos tão bons quanto a de destruir aquilo que temos de melhor ao elevar como padrão de comportamento aquilo que temos de pior. Crescemos com a certeza de o que o que temos de bom deve ser arruinado; de que o que temos de ruim deve ser piorado. Temos por hábito corromper – ou permitir que se corrompa – a imaginação moral, as virtudes, o certo, o bom, o belo, o virtuoso. Para nós, brasilianos urbanos, somos portadores legítimos de infâmias porque dotados de uma natureza humana mais corrompida que a de qualquer outro povo que admiramos.
Alimentamos um exclusivismo da desgraça que nos paralisa. Se somos inferiores, se nada aqui é bom, por qual razão empreender esforços para melhorar? Nosso vitimismo tornou-se um historicismo fatal: somos e sempre seremos os piores. Mais: queremos ser os piores – mesmo que os piores sejam sempre os outros, os “brasileiros”.
Já repararam nessa contradição que acabo de apontar, que é a de nos acharmos o povo menos virtuoso ao mesmo tempo em que nos excluímos individualmente dessa acusação coletivista? O brasileiro corrompido, corrupto, inviável, é sempre um terceiro. Só nos colocamos como “brasileiros” quando somos obrigados a reconhecer alguma virtude, mesmo que seja na seara esportiva. Aí, sim, viramos uma grande nação, a pátria de chuteiras ou de qualquer outro símbolo do esporte.
No meu caso, dava-se o mesmo: de que maneira eu poderia celebrar Machado de Assis como brasiliano se o compatriota que me vinha à mente era aquele que representava toda a inferioridade humana, cultural? Em vez de alçar Machado – ou outro personagem grandioso da nossa cultura – a símbolo maior da brasilidade a partir do qual todos deveríamos nos espelhar, nos medir e avaliar todo o resto, eu o transformava num milagre admirável que apenas confirmava a degradação geral que nos identificava como nação.
Aquele encontro nos Estados Unidos, na casa do professor Olavo, foi a segunda ironia que eu enfrentei na minha descoberta do Brasil: descobrir o meu país desde o exterior. A primeira, fundamental para a minha jornada, também ocorreu no estrangeiro. Foi graças à minha ida para Portugal em 2007 que eu comecei a ver o nosso país com outros olhos, a interessar-me (e apaixonar-me) pela nossa história, a admirar os nossos grandes vultos culturais, políticos, históricos, a estabelecer uma relação de amor com o Brasil, um vínculo real, não artificial, por aquilo que temos de grandioso e por aquilo que temos de mais inferior.
A terceira etapa do meu processo de brasilianização completou-se no Brasil com as pesquisas que fiz para o meu livro Pare de Acreditar no Governo. Os tesouros que descobri na nossa história fizeram-me passar a ter fascinação, interesse, paixão e orgulho pelos construtores da nossa nação, dos célebres aos anônimos. Nem era preciso fechar os olhos ou atenuar os nossos dramas mais profundos para reconhecer a grandiosidade daquilo que nos constitui como nativos de uma mesma pátria, de um mesmo idioma, filhos de diversas culturas com uma mesma raiz portuguesa.
Foi a partir dessas três experiências – em Portugal, nos Estados Unidos e no Brasil – que eu fui capaz de identificar e admirar aquilo que Gilberto Freyre, ao ser indagado a respeito do que queria conservar no Brasil, identificou como “valores brasileiros que estão encarnados principalmente nas formas populares de cultura, formas regionais, que” dão “um sentido nacional ao Brasil” e que “exprimem uma nação brasileira através de uma cultura popular brasileira”.[2]
Foi assim que, 518 anos depois da chegada dos portugueses, eu finalmente descobri o Brasil e me tornei brasiliano.
NOTAS
[1] Santo Agostinho. A Cidade de Deus. Vol. III, 3.ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008, p. 2325-2333.
[2] Elide Rugai Bastos. As Criaturas de Prometeu. São Paulo: Global, 2006, p. 33.
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