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Como NÃO ser conservador na guerra política

Manifestações contrárias e favoráveis a Judith Butler no Sesc Pompeia no início do mês (Foto: )

 

É dramático para qualquer sociedade não ter modelos que inspirem, ser carente de homens e de ideias que influenciem pelas suas virtudes e que representem mais, muito mais do que projetos políticos e ideológicos circunstanciais.

Sem representações materiais e imateriais de grandeza dentro e fora de casa, se tiver sorte o indivíduo as encontrará por si mesmo e será por elas orientados na construção de uma vida responsável – e assim poderá inspirar todos aqueles que estão ao seu redor. Senão, passará a vida a seguir os seus instintos e deixará que outros homens igualmente conduzidos por suas paixões inferiores, direcionadas para o mal, sejam maus conselheiros e guias maléficos.

Porque na sociedade brasileira as elites hodiernas parecem não ser portadoras de nobreza e retidão mas tão somente de desonra, os seus influenciados reproduzirão o que essas bússolas amorais ou imorais têm de mais baixo e permitirão que emerja dentro de si as paixões mais viciosas e malignas. É um percurso dramático quando, para tornar tudo ainda mais grave, há a ilusão de se estar trilhando o caminho do bem.

O que não percebem essas elites e seus imitadores é que “a natureza humana é degradada e aviltada quando as faculdades mais baixas predominam sobre as mais altas; quando a fantasia, a mãe da paixão, usurpa o domínio da mente”. Este é a advertência feita pelo príncipe da Abissínia em “História de Rasselas”, de Samuel Johnson, que deve estar gravada em nossos espíritos.

Estamos vivendo no Brasil um estágio delicado. Por isso, o conservador não pode olhar a política como um instrumento de redenção do país porque tudo em volta parece ser apenas devastação moral, ética, religiosa – mesmo quando tal degradação pode estar confinada à política e a uma parcela da sociedade. Deve o conservador, inclusive, considerar aqueles que, mesmo que tenham bom coração e vontade de acertar, pelas suas ações e palavras inspiram em nós aquilo que temos de mais negativo. E em vez de construtores, tornamo-nos destruidores – revolucionários, portanto.

Virtude na guerra política

Quando na guerra política, mais precisamos das virtudes e do bom senso como parâmetros e dos virtuosos como conselheiros e representantes. É em momentos de turbilhão social e político, de rupturas de ciclos de remição política e cultural, que não nos é concedido o luxo de errar por ingenuidade, de sermos induzidos por uma euforia radical de transformação social que aflora o revolucionário em vez do conservador.

Ser conservador em momentos como este do país, períodos de turbulência muitas vezes necessários porque renovadores, não é ser atropelado passivamente pelos destruidores, jacobinos ou republicanos, nem acovardar-se rejeitando o protagonismo que nos cabe. É assumir, de fato, a responsabilidade e a função de condutor da nau à deriva. Incumbir-se do comando das coisas com sabedoria, prudência, inteligência, coragem, destemor, responsabilidade, para que a impetuosidade direcionada à mudança inescusável não degenere para um processo revolucionário.

Quando a terra está devastada, os homens sensatos usarão aquilo que têm de melhor para reconstruí-la. Não podem agir, portanto, como arautos da salvação revolucionária porque assim serão parte da degradação em curso: com a desculpa de combatê-la, nada fazem com seus atos e ideias senão aprofundá-la. Sim, não podemos nos deixar “vencer pelo mal”, mas devemos “vencer o mal com o bem” (Romanos 12:21).

Uma sociedade que se deixa conduzir pela política, por líderes políticos e militantes ideológicos que não a elevam, que, pelo contrário, a reduzem à estatura moral daqueles que a conduziram ao abismo, estará fadada a iludir-se pela aparência de virtude personificada em alguém ou em algo que estimula os nosso piores instintos.

O mal não justifica o bem

Se é verdade que reagimos o tempo todo a incentivos, positivos e negativos, num momento em que o processo de maturidade política está em pleno curso é natural que a parcela da sociedade que até ontem não sabia que a política existia e que ignorava a sua importância queira legitimamente participar da discussão. Mas é nessa hora que deve descobrir que o radicalismo de ocasião não pode ser uma declaração de princípios nem o modo mais inteligente de agir politicamente. A ação concreta fundamentada em ideias mal assimiladas e inadequadamente compreendidas anulará tudo aquilo em nome do qual se pretende lutar.

Querem um exemplo recente? A petição online que pediu o cancelamento da palestra de Judith Butler, conhecida internacionalmente (isto não é um elogio) pelos seus trabalhos sobre teoria de gênero e teoria queer. A justificativa para o pedido era que a sua ideologia de gênero e os seus livros “querem nos fazer crer que a identidade é variável e fruto da cultura”. Além disso, o evento que a convidou, e que foi realizado no SESC Pompeia, em São Paulo, era um “simpósio comunista, pago com o dinheiro de uma fundação internacional”. O texto da petição também afirmava que Judith Butler não era “bem-vinda no Brasil” e que a sua presença não era “desejada pela esmagadora maioria da população nacional”.

Sobre criar uma petição online para chamar a atenção e combater uma ideia ou seu criador, um conservador concordaria com a sua importância e eficácia – e aqui talvez resida um de dois acertos de seus criadores. O abaixo-assinado alertou muita gente, inclusive eu, sobre a autora e acerca do evento no Brasil, algo que provavelmente passaria despercebido. Como efetivamente passou em 2015 quando ela esteve no país para participar do “I Seminário Queer – Cultura e Subversões das Identidades” no SESC Vila Mariana.

Naquele ano, somente um poucos e corajosos voluntários da Ação Jovem do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO) e de movimentos pró-família e pró-vida protestaram defronte ao local, inclusive contra o uso de recursos públicos para financiar a conferência, mesma posição acertada (segundo acerto) dos criadores da petição online. Este ano, integrantes do IPCO lá estiveram novamente.

Sob uma perspectiva conservadora, entretanto, creio que a manifestação virtual tenha criado problemas sérios em termos de estratégia e de narrativa política. Para um conservador, a manifestação pública de repúdio deveria ser feita de tal maneira que fosse reconhecida pela sociedade como algo valoroso e que também produzisse resultados eficientes.

Antes de avançar, um adendo: não afirmo aqui que os criadores da petição e os seus defensores sejam conservadores, pois eu realmente não sei. Estou apenas analisando o que aconteceu de acordo com uma abordagem que acredito ser conservadora e assim contribuir para o nosso aprendizado dentro do meu esforço de atualizar a tradição conservadora brasileira, que começa no século XIX sob o Brasil Império e que terá em João Camilo de Oliveira Torres um de seus grandes expoentes intelectuais no século XX. Isso significa que estou aberto a eventuais sugestões e críticas ao que apresento neste artigo.

O que não fazer?

Voltando ao ponto, por que, então, acredito que a petição errou segundo uma ótica conservadora? Primeiro: pela forma do texto, que dava a entender que se queria impedir a entrada de Judith Butler no país e, depois, que ela falasse. Não me parece, pelo que li dos autores do protesto e de alguns de seus apoiadores, que parte do objetivo fosse esse, mas criou-se uma confusão desnecessária, a começar dentro da própria direita, pelo que estava escrito e a respeito de qual era, afinal, o objetivo. Foi preciso explicar o que se pretendia ou não. Quando essa explicação faz-se necessária, o debate começa a ser perdido.

Segundo: Judith Butler veio para fazer uma palestra sobre democracia e a reação via petição era contra a ideologia de gênero. Havia, portanto, um descolamento entre o tema do evento e o assunto contra o qual a petição se insurgia, algo que produz mais um ruído de comunicação e abre espaço para críticas sobre a motivação do protesto.

Terceiro: a forma violenta com que os defensores da petição reagiram contra quem, dentro da direita, criticou aspectos dessa manifestação é hábito reconhecido entre nós por representantes da esquerda. Sei que houve crítica injusta, o que conduziu a discussão para uma agressividade verbal descontrolada em vez de um diálogo que pudesse unir a maioria em torno do objetivo primordial, que era expor e questionar a ideologia de gênero e a sua autora. Mas um conservador, mesmo que cometesse os erros iniciais que apontei na formulação da petição, deveria corrigir o rumo da ação e aproveitar as reações legítimas, mesmo que agressivas, como um aprendizado.

Quarto: o endosso, explícito ou tácito, de parte dos defensores da petição àquela minoria que na porta do SESC Pompeia ostentou cartazes ofensivos e queimou um boneco com o nome de Judith Butler. A esses atos lamentáveis de atitude anticonservadora somou-se outro, dessa vez no aeroporto, palco de agressão verbal de uma mulher contra a ideóloga de gênero, que, a partir desses dois episódios, ganhou os holofotes da imprensa e a simpatia das pessoas que não estão nem aí para ideologia, mas que condenam agressões do tipo (uma parte da direita também condenou corretamente).

O que fazer?

Se pedir o cancelamento da palestra não era a estratégia mais adequada, qual seria, afinal? Uma alternativa seria utilizar o mesmo instrumento da petição online para denunciar a vinda da Judith Butler, condenar a sua ideologia de gênero e, talvez, desafiá-la para um debate com o propósito de expor a fragilidade e o malefício de sua teoria. Jamais, portanto, advogar pelo cancelamento da palestra e assim ser visto como alguém que 1) tem medo de debater; 2) não tem argumentos; 3) quer silenciar os seus adversários; 4) é autoritário; 5) defende a censura. E assim, de fato, foi percebido por parte da sociedade e da própria direita quem defendeu a petição online e os protestos na porta do SESC.

Muito se fala em combater apenas ideias como se estas não tivessem autores e defensores de carne, e por isso não vejo problema em lutar contra intelectuais como Judith Butler. Porque é ela a criadora não só da ideologia de gênero mas teórica e defensora de uma democracia radical fundamentada em seu desejo de reestruturar o mundo radicalmente no âmbito econômico e político, projeto intelectual do qual faz parte o revolucionário Slavoj Žižek.[1] Influenciada pela estratégia e hegemonia socialista para a construção de uma política democrática radical defendida no livro homônimo por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe[2], Judith advoga uma concepção pós-estruturalista de democracia alicerçada na ideia de ruptura e de um processo de contestação permanente sob o pretexto de uma política amplamente inclusiva.[3] A ideologia de gênero é instrumento desse projeto.

O equívoco da estratégia utilizada para combater Judith Butler e sua teoria se impôs desde o início até mesmo para outros membros da direita; foi vista não apenas como inadequada, mas como uma imitação ordinária da práxis da esquerda. Por outro lado, uma estratégia de ação conservadora deveria ser capaz de atingir o fim pretendido e tocar o coração das pessoas (da direita e de fora dela), que se uniriam pela causa comum ao nela reconhecerem o justo e o bem.

As manifestações virtual e presencial deveriam ser capazes de expor para a sociedade a ideologia de gênero como um mal a ser vencido, o que passa por rejeitar, como vem sendo feito país afora, a adoção dessa teoria e das suas ramificações como base de políticas públicas na área do ensino. Porque – e é importante que saibamos disso – esses intelectuais e grupos não estão interessados somente no debate, que é uma mera justificativa para atingir o fim pretendido: transformar dos modos de vida da sociedade com base num projeto político-ideológico.

A reação necessária e eficaz

Porém, se é um erro estratégico tentar impedir que intelectuais como Judith Butler se manifestem é um erro ainda maior omitir-se. É imperativo, portanto, que haja uma devida e qualificada reação com o objetivo de também expor para a sociedade a dimensão do problema sem os efeitos colaterais de parecer que se pretendeu censurar quem quer que fosse. A pressão também é necessária para que grupos ideológicos como os responsáveis pela vinda dela ao Brasil saibam que haverá reação sempre que atacarem modos de vida que a sociedade valoriza.

Posto que tudo o que está acontecendo neste momento serve de aprendizado, não quero que estas minhas observações pareçam injustas para com os organizadores da petição online e manifestantes que estiveram no SESC Pompeia. Se posso apontar equívocos e fazer comentários críticos é porque eles tentaram fazer algo e quero acreditar que o fizeram motivados pelos melhores sentimentos.

No entanto, porque o conservadorismo está profundamente vinculado à ação política e não apenas à contribuição intelectual, ser conservador depende da forma como o indivíduo age politicamente orientado por um conjunto de princípios, valores, tradições. Ou seja, o ser conservador é o reflexo de sua virtuosa e corajosa conduta individual e política. Ser “anticomunista ou “antiqualquer coisa” não transforma ninguém em conservador. Se as ideias e atitudes forem anticonservadoras, seus agentes e proponentes conservadores não serão. O conservador não é aquele que reduz a virtude do combate necessário à estatura moral e ideológica de seus oponentes, como expliquei no meu artigo Os jacobinos da “nova direita”.

Uma coisa deve ficar clara: não há qualquer problema em não ser conservador (em ser comunista, sim), mas parece haver hoje uma tendência em afirmar-se conservador para conquistar um selo de legitimidade para qualquer fala ou ato que não seja de esquerda. É muito comum que alguém vinculado a uma religião qualifique-se ou seja insultado como conservador quando, na verdade, pode ser apenas católico ou protestante. Pertencer a uma determinada religião não converte ninguém automaticamente em conservador por mais que hajam pontos de convergência em assuntos variados. E aqui voltamos à importância de definir o que é o conservadorismo brasileiro e o que é ser conservador hoje no Brasil, tema para um artigo futuro.

Como tenho dito repetidamente, estamos vivendo um momento crucial da história brasileira. Uma fase que vai definir se o nosso presente será grandioso e não a repetição das infâmias do passado. Não podemos correr o risco de pôr tudo a perder ao deixar a guerra política vigente definir quem somos e assim destruir qualquer possibilidade de construção de algo melhor do que tivemos até agora. De nada adianta vencer a batalha política hodierna se em nome dessa vitória corrompermos os nossos mais caros princípios, valores e tradição. Porque isso, meus amigos, é o oposto de ser conservador.

Referências

[1] Butler, Judith. “Dynamic conclusions”, Contingency, Hegemony, Universality – Contemporary Dialogues on the Left. London: Verso, 200, p. 277.

[2] LACLAU, Ernesto & MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios, 2015.

[3] Lloyd, Moya. “The politics of radical democracy”, in Judith Butler, From Norms to Politics. New Jersey: John Wiley & Sons, 2013.

 

 

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