Num dos mais belos trechos de sua obra-prima, Reflexões sobre a Revolução na França, Edmund Burke nos ensina que
Todas as ilusões agradáveis que tornaram o poder gentil e a obediência liberal, que harmonizaram os diferentes cambiantes da vida, e que, por uma assimilação branda, incorporaram na política os sentimentos que embelezam e suavizam as relações privadas, serão desfeitas por este novo império vitorioso das luzes e da razão. Toda a roupagem decente da vida é para ser rudemente arrancada. Todas as ideias supervenientes que nos foram fornecidas pelo guarda-roupa da imaginação moral, que o coração reconhece e o entendimento ratifica como necessárias para cobrir os defeitos da nossa natureza nua e trémula e para a elevar em dignidade aos nossos olhos, são para serem desacreditadas, como uma moda ridícula, absurda e antiquada. [1]
Burke criou o termo “imaginação moral” para explicar, mediante uma metáfora poética, como a destruição dos valores e costumes civilizados empreendida pelos revolucionários franceses para fermentar e legitimar a revolução foi fundamentada em ideologias falaciosas que corromperam, inclusive, as ideias de autores como John Locke. [2]
Burke não era contrário à mudança da grave situação política e econômica vigente na França da época. O que ele fez foi identificar e criticar a natureza imoral e destruidora da revolução, que pretendia arrancar de forma rude “toda a roupagem decente da vida” que era fornecida e protegida pelo “guarda-roupa da imaginação moral”.[3] Foram o espírito religioso e o sistema de costumes que dele emana que durante séculos sustentaram a imaginação moral.
Russell Kirk apropriou-se da metáfora de Burke para elaborar o seu conceito de imaginação moral como sendo aquilo que permite “discernir acerca do que a pessoa humana pode ser e apreender, por alegorias, a correta ordem da alma e a justa ordem da sociedade, diferenciando o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o belo e o feio, além de oferecer uma correta visão da lei natural e da natureza humana”. [4]
Ao apreender “a ordem correta na alma e da ordem correta na comunidade política”, para Kirk a imaginação moral “nos informa sobre a dignidade da natureza humana e nos instrui acerca do fato de que somos mais do que primatas desnudos”. [5] A nos faltar a imaginação moral, escreve Kirk ecoando Burke, somos expulsos “do mundo da razão, da ordem, da paz, da virtude, e da expiação fecunda, num mundo oposto à folia, ao vício, à confusão e à dor ineficaz”. [6]
Se é que posso colocar as coisas nesses termos, a inimiga da imaginação moral é a imaginação idílica. Esta concepção foi proposta por Irving Babbitt para analisar o filósofo J. J. Rousseau, que ele definiu como um utópico perigoso “sempre pronto para destruir todas as formas de vida civilizada em prol de algo que nunca existiu, de um estado da natureza que é somente a projeção de seu próprio temperamento e de seus desejos dominantes sobre o vazio”. [7]
A origem da imaginação idílica é, segundo Kirk, o “impulso pérfido para romper com o que Burke havia chamado de ‘o contrato da sociedade eterna’” com a finalidade de “substituir a obrigação moral pelo culto de um egoísmo temerário”. [8] Era assim que se expressava politicamente a imaginação idílica de Rousseau, possivelmente, uma das chaves para explicar a destruição da imaginação moral por projetos revolucionários.
Babbitt analisou a relação da imaginação idílica com o idealismo político moderno [9] e concluiu que o ativista ideológico usa a imaginação idílica para destruir a ordem social vigente por meio da corrupção da imaginação moral.
No artigo da semana passada, escrevi que, se acreditamos ser uma sociedade degenerada, fica muito mais fácil para uma elite política viciada colocar-se como a nossa representante legítima. Mas há também pessoas influentes e grupos organizados que pretendem reduzir a sociedade à sua estatura moral a partir da destruição da nossa imaginação moral. Veja o caso de parte da mostra “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, que foi exibida no Santander Cultural de Porto Alegre.
Apesar do muito que já foi dito e escrito a respeito, queria, a partir da imaginação moral, abordar alguns aspectos que, até onde vi, estiveram ausentes das discussões. O primeiro é a aparente vinculação feita pelos artistas entre homossexuais e as telas que exibiam depravação sexual e zoofilia.
Ao ler as notícias a respeito, a primeira questão que me veio à mente foi: os homossexuais aceitam ser assim identificados? Mesmo depois de anos de manifestações, discursos, gritaria, artigos de jornal, livros destinados a “acabar com o preconceito”? Aquela mostra, não tenho dúvidas, foi o mais grave ataque público contra a sua imagem em nome da diversidade sexual.
Nem mesmo as explicações dos artistas e do curador sobre Cena de Interior II, tela de Adriana Varejão, Travesti da Lambada e Deusa das Águas e Adriano Bafônica e Luiz França de She-há, de Bia Leite, ou Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva, de Fernando Baril, foram suficientes para justificar que as imagens tinham outro significado que não aquilo que mostravam e representavam.
Em sua defesa, curador e artistas recorreram a eufemismos tais como “jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas”, “manifestação crítica diante do processo de colonização do país”, perturbação das “relações verticais e eventualmente as horizontaliza por meio de relações sexuais heterossexuais e homossexuais”, “obra extremamente política, que questiona e critica todo o processo de colonização do país”.
Num gesto de bondade cristã, pode-se até considerar que os próprios artistas e o curador acreditem piamente no que dizem e no valor dos trabalhos. Mas há algo que nem eles podem negar: ou são militantes conscientes ou instrumentos da causa.
Representantes de grupos LGBTTWXYZ defenderam a mostra e condenaram violentamente o boicote social e a decisão do Santander. Não viram problema no vínculo que aquelas telas parecem estabelecer entre homossexuais, depravação sexual e zoofilia. Ou são mesmo incapazes de reconhecê-lo ou tudo faz parte de ação política deliberada.
No passado, quando eu ignorava a natureza das ideologias, achava que o objetivo desses grupos era apenas chocar a sociedade ao tornar públicas as suas vidas sexuais, como se a sociedade estivesse minimamente interessada no que eles queriam exibir. Hoje eu sei que faz parte da estratégia política usar a sexualidade e a identidade de gênero para provocar escândalo e indignação e, assim, ultrapassar os limites até ali testados. Dessa maneira, verificam até onde podem ir naquele momento. As novelas, depois, acabam por legitimar a agenda.
Cada afronta funciona como uma espécie de superação das resistências sociais iniciais. Cada provocação bem-sucedida representa um obstáculo que foi superado. Se no passado, por exemplo, ninguém cogitaria fazer uma passeata gay numa cidade brasileira, hoje esse tipo de evento entrou para o calendário de capitais como São Paulo e Rio de Janeiro.
A Queermuseu não era uma mera mostra de arte. Era, sobretudo, uma exposição política, a começar pelo nome com o qual foi batizada. A palavra inglesa queer era um termo pejorativo para insultar os gays, algo como chamar alguém de “bicha louca” ou “viadinho” aqui no Brasil. Por isso, naquele antológico debate ao vivo na tevê transmitido pela ABC, soou tão ofensivo quando o jornalista conservador William Buckley Jr. chamou o escritor esquerdista Gore Vidal de “queer” depois de ser acusado abjetamente de “criptonazista”:
(Aproveito para recomendar o ótimo documentário Best of Enemies, disponível no Netflix, escrito e dirigido pelos esquerdistas Robert Gordon e Morgan Neville, que tentam, sem sucesso, desmoralizar Buckley.)
Foi no fim da década de 1980 que a expressão foi convertida em termo ideológico a partir da “teoria queer“, formulada por professores universitários e militantes da causa nos Estados Unidos. O intuito era tornar a expressão positiva e usá-la para atacar – agora, respirem fundo – “uma repronarratividade e uma reproideologia, bases de uma heteronormatividade homofóbica”. A pretensão da teoria queer “é provocar o estranhamento nas próprias formas de pensar, inclusive as acadêmicas. (…) O slogan dos teóricos queer deveria ser: ‘fodemos com categorias’.” [10]
Por que a mostra no Santander Cultural de Porto Alegre foi batizada com o nome Queermuseu, se não para deixar manifesta uma declaração de princípios morais e políticos que poderia passar despercebida pela sociedade? Sim, a mostra era um panfleto ideológico disfarçado e fundamentado num desejo de promover uma engenharia social. Por isso a permissão e o incentivo para visitação infantil. Se a criança de hoje for convencida de que aquelas práticas sexuais e aqueles ataques ao cristianismo são condutas aceitáveis, futuramente ninguém mais se horrorizará com uma exposição como aquela. Pelo contrário. Estarão, crianças e adultos, preparados para aceitar qualquer tipo de bestialidade e de heresia. “As pessoas não estão preparadas para certas coisas”, afirmou o presidente da Fundação Bienal do Mercosul, Gilberto Schwartsmann, ao lamentar o fechamento da Queermuseu. “Isso aconteceu muito na história. Coisas que nos assustam em 2020 não nos assustam em 2040”. Entenderam?
Se o objetivo é mesmo mudar mentalidades a favor de uma causa, depravação sexual e ataque aos símbolos religiosos numa mesma mostra não parecem ser coincidência, mas ação calculada. Porque a imaginação moral foi fundamentada durante séculos no espírito religioso e no sistema de costumes da sociedade; se você corrompe o primeiro, poderá corromper o segundo.
Nenhuma obra de arte deve ser censurada ou proibida, mesmo aquelas que nem parecem arte, mesmo aquelas mais chocantes e depravadas, sendo arte ou não. Assim como o artista deve ter a liberdade de compor e expor aquilo que deseja, deve estar preparado para enfrentar a reação legítima da sociedade, inclusive o boicote, inclusive o cancelamento da mostra feito pela empresa privada que a financiou. Não houve censura. Houve a decisão empresarial de um banco que vive de sua reputação perante a sociedade e os seus clientes. Nenhum banqueiro, ainda mais de um banco internacional, deixará a imagem de sua instituição ser manchada por uma exposição que ele provavelmente nem sabia que estava acontecendo numa cidade brasileira.
Por mais que certos artistas adorem provocar, escandalizar, colocar em causa os valores e denunciar a hipocrisia da sociedade, detestam ser contrariados, atacados ou boicotados. Quando isso acontece – afinal, boicote é uma forma de crítica contra a hipocrisia de certos artistas –, eles gritam contra a “censura”, “ditadura”, “fascismo”, “nazismo”. Não é legítimo o boicote de quem se sentiu ultrajado? Ou o boicote deveria ser proibido pelo Estado?
Talvez o curador e todos os que se levantaram contra o encerramento da mostra achassem que a sociedade brasileira aceitaria (ou deveria aceitar) qualquer coisa que fizessem porque sempre foi passiva e leniente diante de praticamente todas as ações de grupos LGBTTWXYZ. Se já foi assim, agora não mais.
Eu, se pudesse escolher, preferiria que a mostra não fosse cancelada. Que continuasse aberta, mas sob boicote ativo e permanente. Que continuasse a ser denunciada por seus vícios como forma de manter a sociedade alerta quanto às tentativas de arrancar “toda a roupagem decente da vida” e de destruição do “guarda-roupa da imaginação moral”. É a única maneira de evitar que as ideias necessárias “para cobrir os defeitos da nossa natureza nua e trêmula e para a elevar em dignidade aos nossos olhos” sejam “desacreditadas, como uma moda ridícula, absurda e antiquada”. Obrigado, Edmund Burke.
Referências
[1] Burke, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. Trad. Ivone Moreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, p. 136-138
[2] Antony Quinton observou que a importação das ideias lockeanas teve na França um efeito muito semelhante ao do álcool num estômago vazio. Enquanto na Inglaterra os mesmos princípios sancionaram uma revolução conservadora, na França conduziram ao radicalismo da Revolução Francesa. Cf. Quinton, Political Philosophy, in The Oxford Illustrated History of Western Philosophy, p. 327.
6 Kirk, Russell. A Imaginação Moral, in COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, v. 28, n. 1, p. 103-119, jan-mar 2009, p. 104.
10 Colling, Leandro. “Teoria Queer”.