Na escola, na universidade, na tevê, na vida diária, tudo nos faz odiar a nossa história, tudo nos faz odiar o nosso país. Em poucas atividades somos tão bons quanto destruir aquilo que temos de melhor ao elevar como padrão de comportamento aquilo que temos de pior. Somos mestres na arte de insultar a nós mesmos: o que é bom deve ser arruinado; o que é ruim deve ser piorado.
Como você, leitor, sou fruto dessa cultura do ódio contra o Brasil. Sou filho desse hábito de destruição da imaginação moral, das virtudes, do certo, do bom, do belo, do virtuoso. Para nós, brasileiros urbanos, o brasileiro é o portador legítimo de infâmias porque dotado de uma natureza humana corrompida. Criamos uma versão excêntrica de um historicismo hegeliano aplicado ao que somos e ao que fazemos. Nada há de dar certo porque é da nossa índole estarmos sempre errados.
Modificar a nossa história, recriá-la numa versão corrupta, amaldiçoada, esta foi a estratégia adotada por ideólogos republicanos e depois marxistas para reduzir o país à sua estatura moral e destruir a nossa imaginação moral, que funciona como escudo contra projetos de poder e de controle políticos. Se acreditamos ser uma sociedade degenerada, fica muito mais fácil para uma elite política viciada colocar-se como a nossa representante legítima e vender um discurso ético-messiânico tão moralista quanto falso. Tal é o resumo da nossa história republicana.
Não sem razão nem exagero, dizia eu no início deste artigo que sou fruto dessa cultura do ódio contra o Brasil, contra a nossa história, esta vilipendiada porque desconhecida. Até 2013 faltavam-me os vínculos afetivos com o nosso país. Sim, pode parecer estranho, mas a verdade é que o Brasil não fazia parte do meu rol de interesses sentimentais e intelectuais.
Nossa terra era apenas o local onde eu nasci, território incômodo, uma piada sem graça de Deus que me poderia ter feito inglês, mas fez-me cachoeirense, de Cachoeiro de Itapemirim (ES). Contra essa gozação divina só me restava o ato revolucionário fatal: negar interiormente a minha nacionalidade, não reconhecê-la, bradar aos Céus contra ela, numa versão torta, mal-escrita e escatológica da negação de Pedro a Jesus Cristo.
Graças à pesquisa que fiz para o meu livro Pare de Acreditar no Governo é que, finalmente, descobri o Brasil 513 anos depois dos portugueses. As minhas caravelas sentimentais e intelectuais também atravessaram o Atlântico, mas a partir da Inglaterra, até então a minha pátria artificial. Eu era até ali o típico brasileiro, com a agravante de não gostar de futebol, de carnaval, de calor.
Foi o 7 de setembro, Dia da Independência, que me fez pensar no assunto. Refletindo sobre o passado, via-me como aquele personagem de Lições de Abismo (Livraria AGIR Editora, 1973), de Gustavo Corção, um “verme colado a um grão, (…) um microscópico monstro de acaso, sem nenhuma ingerência na fluida e esbranquiçada pátria de que”, porém, jamais “me ufanava” (p. 199-200).
Sobre o Brasil, eu seguia aquela máxima do doutor Samuel Johnson segundo a qual “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Era eu tão ignorante a respeito do nosso país quanto o era do significado da frase. Johnson a proferiu em 1775 numa conversa com James Boswell, seu primeiro biógrafo, que não forneceu explicações. A hipótese mais provável é a de que ele estivesse se referindo aos oportunistas que, sem espaço entre tories e whigs, usavam o Partido Patriota para se manterem na vida política.
Apoiador desse grupo político, o escritor quis, na verdade, denunciar que a bandeira do patriotismo estava a ser usurpada pelos canalhas que, rejeitados pelas duas principais forças políticas da época, buscavam no Patriota o seu derradeiro abrigo. A frase tem, portanto, um sentido completamente distinto do seu uso corrente, pois que era uma defesa do, não um ataque contra o patriotismo.
Sim, no passado eu também confundia nacionalismo e patriotismo, que me pareciam duas doenças a serem evitadas. O conhecimento, mais uma vez, salvou-me. E só muito mais tarde li Patriotismo e Nacionalismo (Editorial Presença, 1957), do já citado Gustavo Corção, que faz uma distinção sucinta e pedagógica dos termos. Porque não se limita aos seus conceitos, Corção conseguiu mostrar-me a dimensão afetiva e a natureza moral que tais posições carregam.
Porque as suas escolhas eram fundamentadas em exemplos concretos, não em digressões teóricas, assim Corção poderia verificar se “cada movimento” seria “bom ou mau, conforme” fosse “governado por um espírito virtuoso ou por um espírito vicioso” (p. 8). A partir disso, pôde atribuir ao patriotismo o “sentimento bom, virtuoso” e ao nacionalismo, o “vício”. Exemplos?
Nacionalismo: Hitler, Mussolini, Franco, Perón; Patriotismo: Tiradentes
Nacionalismo: A invasão da Polônia em 1940; Patriotismo: A defesa da Polônia em 1940
Nacionalismo: Brasilidade, Hispanidade, Língua brasileira. Vovô Índio. Anauê; Patriotismo: Saldanha da Gama, Capistrano de Abreu.
Nacionalismo: 1937. Ditadura. (pp. 13-15)
Corção afirmou que no patriotismo “há uma reta conformidade com um justo critério; no nacionalismo, uma oblíqua disformidade causada por um injusto critério”. O paralelo que ele estabelece também “me parece perfeito”: “o nacionalismo se opõe ao patriotismo como a superstição que é um vício se opõe à religião que é uma virtude” (p. 17).
Justo critério e dimensão moral são elementos estruturais do patriotismo e pontos de distinção em relação ao nacionalismo. É a “radical incapacidade que tem o nacionalista de apreender o teor moral do patriotismo e sua dependência da justiça” que o torna totalmente incapaz “de simpatizar com o patriotismo alheio” (p. 25-26).
Há outro aspecto interessante da natureza do patriotismo que o vincula ao conservadorismo. Nas palavras de Corção, “o patriotismo é uma forma de reverência que tem apoio na tradição”. Em 1950, o autor já constatava tratar-se de “um sentimento, raro hoje”, o “respeito pelos antepassados”. Uma deferência caracterizada por “um modo peculiar racional e afetivo de ver no chão de uma terra o sinal de pés antigos”; por “um modo especial de adivinhar numa paisagem os sinais, os comoventes sinais de antigas mãos”; por “um modo sem igual de simpatizar com dores passadas e de se alegrar com passadas alegrias”; “é ter uma história comum que vem de longe, cantada na mesma língua e vivida no mesmo grande e permanente cenário” (p. 27).
Aprecio especialmente quando Corção resume o patriotismo como “a virtude da longa continuação e da grande fidelidade”. O patriota fundamenta-se, segundo ele, “no passado, como raiz, e valendo-se do que houver de genuíno nesta tradição projeta-se para o futuro”. É alguém que “deseja um Brasil melhor, deseja com todas as forças da virtude bem equilibrada a perfeição do seu povo, de sua cultura, de suas instituições”. Por outro lado, “o nacionalista também deseja um Brasil melhor, mas num outro sentido”. Qual? “Na verdade o que ele deseja é um outro Brasil” (p. 28).
Eis, segundo Corção, a distinção crucial “entre os dois espíritos”: enquanto o “patriotismo é uma reverência diante de uma realidade que continua”, o “nacionalismo é uma exultação diante de uma ideia a ser realizada de uma coisa que não existe, sonho de uns poucos, pesadelo de muitos” (p. 29).
A maioria dos brasileiros parece carregar na alma o vício do nacionalismo. Ao elevar a torpeza na conduta a símbolo da nossa natureza humana, é incapaz de enxergar o Brasil que existe para apegar-se a um Brasil que só existe em seus sonhos, no Brasil que poderia ser e jamais foi. Diante da realidade inatingível e da utopia irrealizável, reage com mentalidade e ressentimento jacobinos, paixões, portanto, destruidoras. Se não tem o que quer e odeia aquilo que imagina conhecer, prefere a solução mais fácil, antipatriota e anticonservadora: destruir em vez de construir.
A reação de muitos sobre o dia 7 de setembro, dia da nossa independência de Portugal, foi mais um indício dessa cultura jacobina que nos acomete desde o golpe militar que fundou a república presidencialista. Episódio fascinante da nossa história por tudo o que aconteceu antes, durante e depois, evento que ficaria muito bem posto na historiografia de qualquer país do mundo, o que mais se viu foi o escárnio de sempre, a tentativa de reduzir a história do país às vidas insignificantes que levam os seus detratores. Eles que, imbuídos do “pensamento crítico”, preferem atacar o que ignoram porque jamais aprenderam o que aconteceu no passado, o que os incapacita para reconhecer e celebrar o valor da liberdade, a grandeza da nossa história e a nobreza dos nossos mitos fundadores, os bravos e heroicos homens e mulheres, conhecidos e anônimos, que amaram e dedicaram as suas vidas ao Brasil.
Se na escola aprendemos o evento de maneira burocrática e inglória, maravilhado fica qualquer espírito com um mínimo de virtude diante do que fez e dos perigos que correu dom Pedro I. Não uma decisão de improviso, o imperador laborou prévia e calculadamente com ajudas várias pela separação, que, se desrespeitada por Portugal, resultaria em sangue português e brasileiro.
A Independência foi fruto de consultas várias, reflexões e conquista de apoios em locais-chave, como São Paulo, por parte do imperador, que deveria trazer na alma e na mente a advertência feita pelo seu pai dom João VI quando de seu retorno a Portugal, em 1821: “Pedro, se o Brasil se separar, antes seja por ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros”. Em 1822, no calor dos acontecimentos, uma carta de dona Leopoldina ratificava o alerta do pai: “O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece”. (D. Pedro – A História não Contada, editora LEYA, 2015, p. 151-152)
Junto com a advertência da imperatriz, o imperador tinha diante de si as ameaças das Cortes Portuguesas, que governavam com despotismo e perseguiam e humilhavam seu pais, o rei e a rainha de Portugal, e os conselhos pró-independência de José Bonifácio.
Em São Paulo, após receber as notícias sobre a posição de Portugal, dom Pedro I declarou ao padre Belchior, que o acompanhava junto à comitiva: “as Cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações; nada mais quero do governo português e proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal” (p. 154). Decisão anunciada, o imperador atirou ao chão o laço azul e branco que representava as Cortes e asseverou a todos os presentes: “Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil. Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será Independência ou Morte” (p. 155).
Um dos fatos que a maioria desconhece é que, quando da declaração da independência por dom Pedro I, quem governava o Brasil era dona Leopoldina, feita regente provisória pelo imperador na véspera de sua viagem para São Paulo. Temos, assim, esse fato extraordinário de a independência ter sido proclamada enquanto uma mulher notável exercia o poder máximo do Império, a primeira na história do país a exercê-lo (pode dizer isso ao seu amigo petista quando ele falar que foi Dilma Rousseff).
Identifico o vício em todos os que tentam destruir as virtudes existentes no nosso passado, ou porque o ignoram, ou porque têm dele uma visão ideológica, porque um dia sofri do mal da ignorância e reagi com semelhante paixão. Por isso, assumi como responsabilidade mostrar as virtudes desse “modo peculiar racional e afetivo de ver no chão de uma terra o sinal de pés antigos”, de valorizar e compartilhar “uma história comum que vem de longe, cantada na mesma língua e vivida no mesmo grande e permanente cenário”.
Acredito, e tomo de empréstimo as palavras de Roger Scruton, que “as coisas admiráveis são facilmente destruídas, mas não são facilmente criadas”, posto que “o trabalho de destruição é rápido, fácil e recreativo; o labor da criação é lento, árduo e maçante” (Como ser um Conservador, editora Record, p. 9). Por isso, a alternativa mais virtuosa que nos cabe como brasileiros é, também, a mais difícil: construir em vez de destruir.