O nazismo é de extrema-direita? Ou de esquerda? Essas indagações foram o mote de uma disputa interessante (pelo tema) e débil (argumentos pró e contra) travada na semana passada nas redes sociais. O embate foi motivado pelos eventos em Charlotesville, a versão atualizada e americana da luta entre socialistas: de um lado, os nazistas da Supremacia Branca; do outro, esquerdistas, integrantes do Black Lives Matter e seus apoiadores.
Mas, afinal, por que o nazismo é considerado de extrema-direita? Na década de 1920, os nazistas atacavam violentamente o marxismo e o comunismo. Mas não por contraposições ideológicas ou de praxis política, mas por identificá-los como expressões políticas do judaísmo. Além do próprio Karl Marx, comunistas alemães de relevo eram judeus. Os nazistas referiam-se ao comunismo como “bolchevismo judaico”.
Porque tornaram os comunistas seus inimigos públicos, os nazistas passaram a ser identificados na política alemã da época como uma expressão da direita, confusão que foi legitimada pela aproximação tardia de certos partidos dessa corrente por interesse mútuo: estes, porque viram uma oportunidade; aqueles, porque buscavam legitimidade.
O problema teórico substantivo da qualificação do nazismo como uma ideologia de extrema-direita é que os partidos da direita alemã da época não padeciam dos elementos fundamentais que estruturavam as ideias, propostas e estratégias políticas dos nazistas. Como, então, o nazismo poderia ser a manifestação radical de uma direita que lhe era alienígena?
Os teóricos da política, ao classificarem o nazismo como extrema-direita, parecem ter respeitado a vontade dos nazistas quando estes se colocaram como inimigos dos próprios comunistas, que, depois da Segunda Guerra, quiseram, inclusive, apagar da história os vínculos e acordos estabelecidos com Adolf Hitler. Para tentar validar a sua tese, os especialistas também utilizaram os elementos principais de distinção do nazismo em relação ao comunismo.
Diante disso, os estudiosos devem ter se questionado (se é que o fizeram): como qualificar como extrema-esquerda um partido que se dizia inimigo declarado do comunismo e do marxismo, e que pregava o arianismo, o antissemitismo, o antibolchevismo, o nacionalismo?
Muitos autores respeitados já apontaram as diferenças e semelhanças ideológicas e políticas entre nazismo e comunismo e, de forma mais específica, entre Hitler e Stalin. Eu mesmo sou autor de uma dissertação de mestrado que compara nazismo e comunismo (Violência e perfeição: Um estudo sobre as utopias revolucionárias em Lenin e Hitler) cuja pesquisa fiz na Universidade de Oxford em 2010.
Sim, há praticamente um consenso entre os estudiosos segundo o qual o nazismo é de extrema-direita. A pergunta é: eles estão corretos? Esses autores se debruçaram verdadeiramente sobre esse problema teórico específico ou tomaram como garantido aquilo que poderia ser investigado de forma mais acurada?
Alguns deles escaparam do problema substantivo ao estabelecer nominalmente como causa aquilo que é consequência, ou seja, optaram por definir ambos, nazismo e comunismo, como regimes totalitários para que isso mantivesse a distinção que lhes atribuía, respectivamente, posições à direita e à esquerda. Regimes totalitários ambos são, de fato. O totalitarismo, porém, é a expressão comum a ambas as ideologias, mas não a explicação primeira para interpretá-las como representantes de uma mesma família político-ideológica.
Uma questão precedente, entretanto, nem tem sido abordada pelos que hoje discutem o tema: o que significam esquerda e direita? O que ambas representavam na política alemã do período? Embora haja definições distintas, diversos autores concordam num ponto: mesmo em face das distinções políticas locais, a esquerda estaria fundada na visão igualitária do homem e da sociedade e a direita, na visão não igualitária.
Tomemos como adequado esse critério de distinção, que eu considero particularmente precário. Eis o problema: se o nazismo defende a supremacia da raça ariana sobre as demais, reconhece que há desigualdade entre as raças (extrema-direita?). Ao mesmo tempo, ao lutar pela construção de uma sociedade composta exclusivamente por representantes da raça ariana, defendiam uma comunidade de iguais, que gozariam de todos os benefícios do igualitarismo totalitário (esquerda?). Do ponto de vista político e econômico, essa igualdade era uma missão do Estado.
Considerando que não há objeção ao fato de o comunismo ser uma expressão da esquerda, também ele busca uma uniformidade, porém não racial: o projeto de poder baseia-se na padronização econômica e psicológica forçada de todos os seres humanos, que são convertidos em instrumentos da causa.
Se os nazistas pretendiam eliminar todos os que não fossem arianos ou que, sendo arianos, portavam alguma moléstia, deficiência ou eram homossexuais, os comunistas prendiam ou assassinavam qualquer um que atentasse contra o projeto do partido.
Sendo assim, os demais elementos que compunham o ideário nazista, como a própria rejeição ao marxismo e a concepção de que a verdadeira luta é entre as raças e não entre classes, e a decisão de manter um capitalismo controlado e posto a serviço do Estado e não formalmente proibido de existir, antes de serem distinções inconciliáveis, são posições que revelam tão somente o uso de instrumentos distintos e certos objetivos diversos.
Talvez o único aspecto positivo dessa discussão que tem sido travada nas redes sociais é o questionamento feito acerca da classificação de nazismo como uma versão radical da direita, qualificação esta que, repito, só pode ser realizada em face da política alemã daquela época. Até agora, contudo, as tentativas de respostas foram insuficientes tanto para mostrar que o nazismo era de extrema-direita quanto o seu contrário porque limitaram-se a apontar certas distinções e similitudes com o comunismo e as consequências concretas do exercício político de ambos os regimes, não as suas naturezas.
Sobre esse último aspecto (o que mais me interessa, aliás), um autor que desenvolveu uma percuciente reflexão foi Aurel Kolnai, num artigo de 1950 chamado “Os três cavaleiros do apocalipse: comunismo, nazismo e democracia progressista” (publicado em Privilege and liberty and Other Essays in Political Philosophy), que desejo comentar em artigo vindouro.
Não pretendo, por óbvio, esgotar aqui tema tão controverso. Não dou por certo, entretanto, pelas razões que expus, que o nazismo seja de extrema-direita – o que não representa, de minha parte, qualquer simpatia ou tentativa de purificá-la. O que posso afirmar, pelos estudos que fiz, é que o nazismo é um tipo de socialismo, embora não marxista (ótimo tema para outro texto).
Por considerá-la teoricamente frágil e passível de equívocos insanáveis, decidi não abordar a clivagem entre esquerda e direita no meu trabalho acadêmico sobre nazismo e comunismo. Preferi estudá-los à luz da utopia revolucionária. E a conclusão do meu estudo foi: nazistas e comunistas compartilhavam um mesmo objetivo maior, apesar de feições distintas: a construção de uma sociedade revolucionária e utópica. Esta é, a meu ver, a questão central.
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