“Liberdade é liberdade, não é igualdade, ou equidade, ou justiça, ou cultura” é uma das afirmações lapidares contidas no célebre ensaio Dois Conceitos de Liberdade[1], escrito pelo filósofo Isaiah Berlin, cuja morte completou 20 anos no passado dia 5 de novembro. No ano que vem, porque apresentado numa conferência em Oxford em 1958, o texto fará 60 anos.
Por causa desse ensaio, o nome de Berlin ficou profundamente vinculado às concepções de liberdades “positiva” e “negativa”, apresentadas como ideias políticas rivais em vez de meras e diferentes categorias conceituais. O que significavam?
Partindo das concepções de liberdade de John Locke, Thomas Hobbes, Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill, Berlin definiu a liberdade negativa como a ausência de coerção intencional exercida por terceiros. É o âmbito dentro do qual não somos coagidos a agir contra a nossa própria vontade ou desejo. Se “a coerção implica a interferência deliberada de outros seres humanos dentro da área na qual eu poderia agir de outra forma”, explica Berlin, a “falta de liberdade política ou de liberdade só acontece se vocês forem impedidos de atingir uma meta por outros seres humanos”[2].
A liberdade positiva, por outro lado, está relacionada à vontade humana de escolher livre e racionalmente. Este conceito de liberdade procura responder à seguinte questão: “O que, ou quem, é a fonte de controle ou de interferência que pode determinar alguém a fazer, ou ser, isso em vez daquilo?”[3]
Um ponto interessante da formulação é que Berlin percebeu – e alertou – que na busca por liberdade e libertação o conceito de liberdade positiva poderia degenerar para uma perigosa radicalização. Isso poderia acontecer tanto no caso dessa ideia de liberdade ser posta a serviço de uma concepção personalíssima da vida moral[4] quanto de uma ideologia política autoritária ou totalitária.[5] A liberdade positiva, portanto, poderia ser usada (como foi) para justificar ou legitimar todo tipo de atrocidades e de violações da liberdade alheia.
Mas embora o nome de Berlin tenha ficado tão marcado por essas duas concepções de liberdade, há um aspecto de sua obra que me interessa particularmente, que é sua visão sobre a utopia política. E neste assunto há um paradoxo interessante a ser considerado. Embora crítico qualificado das utopias, o filósofo via a Revolução Francesa como um evento libertador. Por exemplo: era um equívoco, segundo ele, equiparar o acontecimento revolucionário francês às sangrentas utopias do século XX porque tratavam-se de eventos de naturezas políticas distintas.
Parte da resposta pode estar na herança iluminista continental louvada por Berlin e que consagra os fundamentos que conduziram ao pensamento utópico tão bem exposto e criticado pelo filósofo. Talvez uma das chaves para interpretar o que o aproxima e o que o afasta do utopismo secular é a concepção da natureza humana.
Ao contrário dos utópicos, Berlin negava a existência de uma estática e inalterável essência da natureza humana que faria com que todos os indivíduos perseguissem o mesmo modo de vida baseado numa unidade de valores e desejos, independentemente das sociedades, tradições, cultura, locais de origem.
Para que o ideal utópico seja convertido em projeto de poder, a variedade que caracteriza a natureza humana deve ser completamente negada. Por isso, sua instauração depende da imposição, por quaisquer meios, violentos ou não, de um projeto de poder que submeta todos os indivíduos a um processo de uniformização. Negar a diversidade é o único meio de impor a uniformidade.
O utópico é, ainda, um racionalista dogmático por acreditar que a natureza humana é perfectível e passível de ser uniformizada. O racionalista dogmático defende uma política de fé – no conceito do filósofo político Michael Oakeshott – que se expressa numa política de padronização da sociedade. O racionalista, por isso, rejeita a diversidade porque a entende como inimiga da utopia.
No século XX, os regimes totalitários pretenderam destruir a diversidade dos indivíduos ao criar uma sociedade padronizada. De cima para baixo, foram formados, assim, dois grupos: os que se submetem e os que são submetidos. Mas não foi exatamente isso o que os jacobinos franceses tentaram fazer na França revolucionária? Não é possível, portanto, defender ao mesmo tempo o pluralismo, como Berlin o faz, e elogiar um evento histórico como a Revolução Francesa.
Berlin chegou ao cúmulo de qualificar Edmund Burke numa mesma categoria de “opositores reacionários” da Revolução, constituída por Hamann, Möser e De Maistre.[6] Logo Burke, que tão antecipadamente identificou os revolucionários franceses como agentes de um projeto de perfeição da sociedade porque pretendiam transformar e redimir a espécie humana através da política.
Tanto Burke quanto Berlin eram opositores da utopia secular, mas só Burke compreendeu a Revolução Francesa como a materialização radical dessa espécie de utopismo. Berlin não estava interessado em enfrentar esse doloroso paradoxo.[7] Nem parecia importar-se em limitar a sua percepção sobre Burke – que admitia conhecer pouco – ao ensaio deste contra a Revolução Francesa.[8]
Se o filósofo político nascido na Letônia e naturalizado inglês assumia uma herança iluminista, identificada com a utopia secular que caracterizou a Revolução Francesa, como explicar que o seu entendimento sobre o ser humano seja diferente daquele que caracterizou a realização do ideal de perfeição por ele criticado? Era possível ser, ao mesmo tempo, contrário à utopia secular e favorável ao evento histórico que pela primeira vez a institucionalizou?
É certo que Berlin foi um crítico qualificado da utopia e das possibilidades teóricas e práticas de sua realização, mas ao celebrar a Revolução Francesa abriu uma vereda para ser questionado sobre o tipo específico de utopia que combatia e as implicações de sua própria filosofia da liberdade.
Talvez o próprio Berlin tenha fornecido uma pista valiosa para se chegar a uma resposta adequada a esse paradoxo quando escreveu que a genialidade da tradição russa, que o influenciou tão profundamente, estava na capacidade de simplificar drasticamente as ideias dos outros e, depois, de agir radicalmente com base nelas.[9]
NOTAS
[1] Isaiah Berlin, Four Essays on Liberty. Oxford: Oxford University Press, 1969, pp. 15-35. Disponível em: http://faculty.www.umb.edu/steven.levine/courses/Fall%202015/What%20is%20Freedom%20Writings/Berlin.pdf.
[2] Isaiah Berlin. Liberty. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 169.
[3] Ibidem.
[4] George Crowder. Isaiah Berlin. Cambridge: Polity Press, 2004, p. 70.
[5] Ian Carter. “Positive and Negative Liberty”, in Stanford Enciclopedia of Philosophy. Disponível em http://plato.stanford.edu/entries/liberty-positive-negative/#Bib. Acesso em 18 de março. 2010.
[6] Cruise O’Brien. Great Melody. Chicago: University of Chicago Press, 1994, p. 608.
[7] Ibid, p. 608.
[8] Ibid, p. 612.
[9] Isaiah Berlin. Personal Impressions, Princeton: Princeton University Press, 2014, p. 255.