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Quem começa a ler sobre o pensamento conservador logo descobre que os conservadores rejeitam a qualificação do conservadorismo como ideologia. Explica-se isso em parte pelo temor antigo de transformá-lo num código rígido e dogmático de pensamento político e de prática política.

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Mas de onde vem essa rejeição dos conservadores pela ideologia? Não pretendo aqui fazer nada além de um resumo esquemático que deixa de fora a discussão e a divergência teórica acerca do conceito, mas o fato é que foi no início do século 19 que o francês Claude Destutt de Tracy criou o termo “ideologia” para designar a ciência das ideias e suas origens. Iluminista liberal que acreditava no cientificismo como instrumento da razão para superar a ignorância supostamente criada pela religião, pela tradição e pela ordem política de sua época, pretendeu Tracy com seu escrito Eléments d’idéologie, de 1801, dissociar o seu liberalismo radical das ideias em vigor que eram o sustentáculo do antigo regime.

Tracy e seus colegas liberais iluministas eram ferrenhos opositores do governo de Napoleão Bonaparte, que reagiu qualificando-os – e todos os que lhe eram hostis – de ideólogos. Queria com isso dizer que seus críticos eram “sectários ou dogmáticos, pessoas isentas de senso político e, em geral, sem contato com a realidade”. A ideologia passou a ser, naquele momento, “uma doutrina mais ou menos destituída de validade objetiva, porém mantida pelos interesses claros ou ocultos daqueles que a utilizam”.[1]

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Em alguma medida, maior ou menor, o desenvolvimento conceitual da ideologia carregou consigo esse traço negativo. Para Karl Marx, por exemplo, a ideologia estabelecia uma representação falsa e invertida da realidade com o objetivo de justificar a relação de poder entre opressor e oprimido, e assim manter as coisas como eram.

O conjunto de crenças morais, religiosas, políticas e filosóficas que constituía a ideologia funcionava, segundo Marx, como defesa dos interesses dos capitalistas em cada fase econômica da relação entre capital e trabalho. Era, portanto, a naturalização da estrutura de poder no seio da sociedade. [2]

Há autores que qualificam como ideologia “toda crença usada para o controle dos comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença, em seu significado mais amplo, como noção compromissiva de conduta, que pode ter ou não validade objetiva”. Nesse sentido, “o conceito de ideologia é puramente formal, uma vez que pode ser vista como ideologia tanto uma crença fundada em elementos objetivos quanto uma crença totalmente infundada, tanto uma crença realizável quanto uma crença irrealizável”. Não é a validade ou falta de validade que “transforma uma crença em ideologia, (…) mas unicamente sua capacidade de controlar os comportamentos em determinada situação”. [3]

Essa dimensão de controle de comportamentos está presente na definição proposta por Kenneth Minogue. Ele qualificou a ideologia como “um tipo singular de doutrina e retórica” [4] e “uma diligência muito específica para transformar a sociedade” [5]. As ideologias, segundo Minogue, fingem “pertencer a qualquer forma de intelectualidade respeitável, como filosofia, história ou ciência”, mas afirmam-se como sendo uma sua versão superior. Essa arrogância fundamenta-se na crença dos ideológos segundo a qual possuem uma “explicação para tudo, incluindo a história da raça humana, a investigação da natureza e o caráter da realidade”. O propósito da ideologia seria “mobilizar apoio para conquistar o poder sobre a sociedade”. [6]

Russell Kirk inseriu na sua definição a ideia de remissão da natureza humana mediante o desenvolvimento de um projeto político. Para ele, ideologia era “a crença de que este mundo pode ser convertido num paraíso terrestre pela ação da lei positiva e do planejamento seguro”. Para isso, “o ideólogo de qualquer filiação ideológica sustenta que a natureza humana e a sociedade devem ser aperfeiçoadas por meios mundanos, seculares, embora tais meios impliquem uma violenta revolução social”. Fazia parte da ação do ideólogo imanentizar “os símbolos religiosos” e inverter “as doutrinas da religião”. [7]

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Essa imanentização da religião foi apontada por Eric Voegelin como uma representação da ideologia a partir da esperança de recriar o mundo de acordo com uma visão de perfectibilidade [8]. De que maneira? A ideologia forneceria à escatologia a retórica política da promessa de construção de um mundo ideal, de algo que não poderia ser empreendido neste mundo, de algo politicamente irrealizável na cidade dos homens.

Em virtude desse entendimento negativo que parece integrar a natureza da ideologia, os conservadores sempre rechaçaram qualquer tentativa de qualificar o conservadorismo como tal. Por isso, volta e meia perguntam-me sobre o capítulo do livro As Ideias Conservadoras, do João Pereira Coutinho, que trata do tema. O que se quer saber é se concordo ou não com a posição de Samuel Huntington, apresentada por Coutinho, que qualifica o conservadorismo como uma ideologia posicional “na medida em que procura enfrentar uma necessidade histórica específica”. [9]

O que isso quer dizer? Primeiro, que a visão de Huntington sobre ideologia é completamente distinta da concepção negativa originária. A ideologia era, segundo ele, um corpo de ideias definido por uma determinada posição política, que constituiria a sua natureza.

Segundo, o conservadorismo segundo Huntington era uma ideologia de emergência “porque emerge em face de uma ameaça específica de caráter radical; e porque o faz quando essa ameaça põe em risco os fundamentos institucionais da sociedade” [10]. Isso significa que o pensamento conservador se articularia como ideologia posicional toda vez que houvesse uma ameaça que provocasse o conservador a reagir na esfera da política para proteger aquilo que amasse ou que considerasse valioso (vida, tradições, instituições etc.)

Não haveria, portanto, qualquer problema em considerar o pensamento conservador como uma ideologia desde que limitada à definição proposta pelo autor americano, ou seja, qualificar o conservadorismo como uma ideologia posicional de acordo com a definição de Samuel Huntington. Seria uma forma de diferenciá-lo da maioria das ideologias – se não de todas – que é ideacional e ativa, posto que seus proponentes querem projetar o mundo com base numa utopia racionalista e dogmática e agir de maneira revolucionária para instaurá-la.

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Mas como nem sempre é possível explicar teoricamente e a contento essa possibilidade de considerar o conservadorismo como uma ideologia – e mesmo a tentativa pode ser entendida de forma equivocada –, o que fazer? Aqui posso retomar a pergunta do título deste artigo: o conservadorismo é ou não é uma ideologia? Regra geral, é preferível rejeitar a proposição de que o conservadorismo seja uma ideologia, porque mesmo que se adote uma definição descritiva (um conjunto de ideias, por exemplo) ou uma concepção como a de Huntington, poderá haver problemas conceituais que nem todo conservador terá condições de expor e de debater.

NOTAS

[1] Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 615.

[2] Marx, K.; Engels F. A Ideologia Alemã. Vol. I. Lisboa: Editorial Presença, 1975, p. 25-26.

[3] Abbagnano, Claudio. Dicionário de Filosofia, p. 616.

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[4] Minogue, Kenneth. Alien Powers: The Pure Theory of Ideology. Wilmington, DE: ISI Books, 2008, p. XVII.

[5] Minogue, Kenneth. Alien Powers: The Pure Theory of Ideology. Wilmington, DE: ISI Books, 2008, p. XVIII.

[6] Minogue, Kenneth. Alien Powers: The Pure Theory of Ideology. Wilmington, DE: ISI Books, 2008, p. XVIII.

[7] Kirk, Russell. O Ópio da Ideologia. COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, v. 28, n. 3, p. 767-90, jul-set 2009, p. 767.

[8] Voegelin, Eric. Modernity Without Restraint: The Political Religions, The New Science of Politics, and Science, Politics, and Gnosticism. Missouri: University of Missouri, 1999, p. 305.

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[9] Coutinho, João Pereira. As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e a Reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 28-29.

[10] João Pereira Coutinho. As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e a Reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 28-29.