Na década de 1930, o governo da Alemanha nazista tentou de várias formas influenciar a indústria cinematográfica de Hollywood. O objetivo era promover sorrateiramente a agenda nacional socialista e, talvez mais importante, impedir que os grandes filmes produzidos na capital mundial do cinema mostrassem qualquer coisa que pudesse ser ofensiva ao III Reich. Havia, inclusive, um diplomata alemão de nome Georg Gyssling que vigiava o estúdios e que, por seu trabalho, ficou conhecido como “o cônsul de Hitler em Hollywood”.
Há explicações distintas sobre o grau de influência e as razões pelas quais determinados estúdios evitaram roteiros críticos contra o nazismo, mas também contra o fascismo. Em The Collaboration: Hollywood’s Pact with Hitler, livro que foi muito criticado pelas conclusões que apresentou, Ben Unward tentou mostrar que havia o receio comercial de que os lançamentos dos filmes fossem prejudicados ou proibidos no mercado alemão.
Essa tese é contestada por Steven J. Ross, autor de Hitler in Los Angeles: How Jews and their Spies Foiled Nazi and Fascist Plots Against America. Ross argumentou que o grande problema era o Código de Produção de Filmes cujas diretrizes definidas pelos próprios estúdios regulavam a forma de tratamento de assuntos diversos como drogas, sexo, política. Havia uma regra específica que proibia roteiros que denegrissem um país estrangeiro ou o seu líder, que poderia tanto ser um Winston Churchill quanto um Adolf Hitler.
A tentativa de controlar a imagem do Nazismo em Hollywood como exposta no livro de Unward foi retratada na ótima série O Último Magnata, disponível na Amazon Prime. Baseada no livro homônimo de F. Scott Fitzgerald, um dos meus escritores americanos prediletos, a série resgata os anos de ouro da cidade do cinema com um elenco de primeira (Kelsey Grammer, Matt Bommer, Dominique McElligott, Rosemarie DeWitt, Jennifer Beals).
O quinto episódio da série dramatiza a abordagem nazista de forma mais direta. O cônsul de Hitler é representado pelo ator Michael Siberry. É tocante o diálogo final entre Gyssling e seu amigo de infância Leopold Ferber, interpretado por Robert Picardo. Judeu austríaco e violinista que estava nos Estados Unidos com a Orquestra Nacional de Viena, Leo decide voltar para seu país natal mesmo depois de Gyssling tê-lo aconselhado a não fazê-lo. O cônsul de Hitler sabia qual era o destino do amigo.
Desgraçadamente, a série foi cancelada pela Amazon por não ter dado o retorno que a empresa esperava.
Aliados de ocasião dos nazistas nos anos 1930, os comunistas também viram em Hollywood a grande oportunidade de converter a produção cinematográfica em instrumento de propaganda ideológica. Mas foram mais eficientes e, portanto, bem-sucedidos no seu intento ao infiltrar seus militantes e converter profissionais na produção cultural (roteiristas, diretores, atores), como mostra o livro Hollywood Traitors: Blacklisted Screenwriters – Agents of Stalin, Allies of Hitler, de Allan H. Ryskind. O legado ideológico mantém-se até hoje e há farta bibliografia sobre o assunto, que parece inesgotável.
Um livro que atualiza o tema e mostra a cidade do cinema como a capital cultural do esquerdismo americano é Primetime Propaganda: The True Hollywood Story of How the Left Took Over Your TV, de Ben Shapiro. A estrela atual do conservadorismo americano expõe o resultado da aplicação ideológica em filmes e séries de TV que seduzem a sociedade americana e a de outros países a partir de uma agenda revolucionária que começa nos costumes e culmina na política.
No Brasil, país onde o cinema nunca teve a dimensão e a influência cultural que continua a ter nos Estados Unidos, os socialistas e comunistas ocuparam a TV. E nem foi preciso que um poder estrangeiro quisesse intervir. Foi tudo obra voluntária e estratégica dos que viram as novelas como meios eficazes de doutrinação e de engenharia social. No passado era a luta de classes; no presente, a ideologia de gênero.
Até mesmo os estudos acadêmicos sobre as novelas brasileiras partem de instrumentos teóricos do marxismo, da Escola de Frankfurt, dos Cultural Studies. Produções de esquerda analisadas com base em autores de esquerda criam um ciclo contínuo de criação artística e de legitimação teórica.
O trabalho mais organizado de inserção e de influência cultural talvez tenha tido o seu início em 1922 com a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Naquele mesmo ano foi realizada em São Paulo a Semana de Arte Moderna, cujo idealizador, o pintor Di Cavalcanti, filiou-se depois ao partido.
Pela importância que atribuía à cultura, aos intelectuais e aos artistas, o PCB começou o produzir ou apoiar a criação de livros, jornais, revistas, grupos de teatro, cinema. Esses produtos serviam para difundir o comunismo e forjar uma mentalidade, mas também para cooptar intelectuais e artistas com trabalho remunerado.
Em 1942, com a Segunda Guerra e a ameaça nazi-fascista, o PCB tornou-se uma força cultural. Em 1945, com o fim do conflito, com o prestígio alcançado pela União Soviética e com a queda do governo de Getúlio Vargas, “muitos representantes da área cultural filiam-se oficialmente ao PCB”, segundo escreveu o historiador comunista Ivan Alves Filho, no artigo “O PCB-PPS e a Cultura Brasileira”. Eram nomes que já eram ou se tornaram importantes na literatura (Graciliano Ramos), no cinema (Nelson Pereira dos Santos), na pintura (José Pancetti), no samba (Ataulfo Alves).
O historiador comunista cita como representantes do PCB no teatro “autores consagrados como Dias Gomes (O pagador de promessas) e Gianfrancesco Guarnieri (Eles não usam black-tie)”, além de “Flávio Rangel, Zbigniew Ziembinsky e João das Neves”. Também eram do partido os atores “Paulo José, Glauce Rocha, Juca de Oliveira, Raul Cortez, Ítala Nandi, Dina Sfat, Carlos Vereza, Joel Barcellos, Francisco Milani, Stênio Garcia, Lima Duarte e José Wilker”. Dentre os comunistas que depois se consagraram como autor de novelas, destaca-se o nome de Benedito Ruy Barbosa.
A partir de 1964, mesmo sob o regime militar, a esquerda conseguiu atuar com inteligência e eficiência. Alves Filho conta que “durante parte da década de 70, trabalhando nos núcleos de criação da TV Globo, alguns membros do Partido Comunista Brasileiro logram criticar o obscurantismo do regime, valendo-se de novelas e seriados de grande audiência popular”. Essa ocupação de espaços era, segundo ele, “um começo promissor de diálogo com a indústria cultural cada vez mais presente na vida nacional”.
Três importantes depoimentos atestam essa infiltração. Dois deles foram descritos num ótimo artigo sobre o tema escrito pelo Felipe Moura Brasil e publicado no ano passado em seu antigo blog na VEJA.
O primeiro depoimento foi dado por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que durante décadas foi o mais importante executivo da TV Globo, sabia o que acontecia e nada fez para impedir. “Nossos funcionários, nossos criadores, a maior parte deles era socialistas ou comunistas, mas o próprio doutor Roberto (Marinho) nunca se importou com isso”, disse Boni. O alheamento de ambos continua a ter consequências negativas.
O segundo depoimento foi dado pelo autor Silvio de Abreu. Ao responder a uma pergunta sobre a qualidade das novelas brasileiras, ele revelou que, como estavam impedidos de trabalhar no cinema e no teatro, alguns dos mais talentosos autores de esquerda (Dias Gomes, Lauro Cézar Muniz, Jorge Andrade, Bráulio Pedroso) foram contratados pelas emissoras de TV. Isso fez com que as novelas produzidas no Brasil atingissem um patamar de qualidade inigualável. Isso fez com que a doutrinação fosse ainda mais eficaz. “Roque Santeiro”, de Dias Gomes, talvez seja o produto mais bem acabado do comunismo aplicado em novela de TV.
Um terceiro depoimento revelador eu encontrei no livro Autores – Histórias da Teledramaturgia (Editora Globo, 2008). Nele, a autora Maria Adelaide Amaral confessou que na década de 1960 era de “esquerda, como a maior parte das pessoas” de suas “relações”. Ela afirmou que apoiava na época as ligas camponesas e que tinha “retratos de Fidel Castro e Che Guevara”.
Maria Adelaide não lamentou “ter abraçado o socialismo” porque era, segundo disse, necessário “sonhar e lutar por uma sociedade melhor” (p. 123). A construção da sociedade melhor que ela e seus colegas de ofício sonharam resultaram no assassinato de mais de 100 milhões de pessoas em diversos países ao longo do século 20. Mortes que, segundo o historiador marxista Eric Hobsbawm numa entrevista em 1994, eram justificáveis na tentativa de realizar a utopia comunista.
Se até um passado recente as novelas eram o produto artístico brasileiro mais importante, hoje temos filmes e séries produzidas aqui e as realizadas no exterior com participação de profissionais brasileiros. A diferença é que, por várias razões, a hegemonia esquerdista começou a ser enfrentada. E o início desse processo começou de forma involuntária. Digo isso porque o filme Tropa de Elite 1 foi feito por profissionais de esquerda, do diretor José Padilha ao ator-protagonista Wagner Moura, com o propósito de mostrar a violência policial no Rio. Mas o filme ganhou vida própria e o intento original foi invertido pela audiência, que se identificou com o capitão Nascimento e passou a admirar o trabalho do BOPE.
O choque dos seus realizadores parece ter sido tão profundo que se sentiram na obrigação de fazer uma continuação. A segunda parte não teve a força da primeira porque o público identificou algo estranho que lhe pareceu uma tentativa forçada, que se revelou fracassada, de neutralizar os efeitos involuntários do Tropa de Elite 1. O Brasil estava começando a mudar e os produtores do filme não perceberam.
Parte dessa mudança foi o despertar para a discussão política e o esclarecimento de algumas posições. A ruína do PT e de seu projeto de poder, que aglutinava partidos e organizações de esquerda, provocou um racha no país. Isso teve impacto entre dois dos principais nomes do Tropa de Elite. Enquanto Padilha foi se movendo para uma esquerda social-democrata, Moura foi chafurdando no socialismo e no apoio ao PSOL. O diretor começou a escrever artigos com certas críticas a uma parte da esquerda enquanto o ator se fez militante, apoiador de Marcelo Freixo e iniciou a produção do filme sobre o terrorista comunista Carlos Marighella.
Para a esquerda, Padilha tornou-se o traidor da causa. A gota d’água foi O Mecanismo, para a Netflix. A série de ficção, baseada em eventos reais do início Operação da Lava Jato, foi atacada por todos os lados que estão do lado errado. Dos petistas oficiais aos petistas sentimentais: de Dilma Roussef ao escritor Marcelo Rubens Paiva.
Depois de fazer comentários ali e acolá sobre a série, a pretexto de elogiar o filme 7 Dias em Entebbe, dirigido pelo brasileiro, Rubens Paiva disse a que veio num artigo para o Estadão: “o diretor José Padilha continua obcecado na sua luta para demonizar as esquerdas”. O título do texto é revelador da mentalidade do escritor: “Padilha se redime em filme”. No texto, embora elogie brevemente o diretor, Rubens Paiva dedicou a maior parte a defender os seus parceiros “das esquerdas” de eventuais imprecisões históricas de – nunca é demais lembrar – uma obra de ficção.
Hoje, não há qualquer ameaça ao domínio da esquerda nas novelas, filmes, séries, teatro, programas de TV, jornalismo. Por isso a reação agressiva quando alguma obra fura a ditadura cultural, mesmo quando o seu realizador – como é o caso de Padilha – é de esquerda. Demanda e interesse existem; o mercado editorial é a prova, com livros de autores conservadores entrando na lista dos mais vendidos.
Num artigo recente aqui na Gazeta do Povo eu perguntei onde estavam os filmes, séries, novelas que não fossem de esquerda. Meu objetivo era chamar a atenção para o problema e incentivar ao trabalho os profissionais talentosos. Posso dizer que, nessa seara, estamos passando também por um processo de transformação. Não demorará para que os frutos desse esforço incipiente, mas em curso, sejam conhecidos. Sei disso porque tenho participado de algumas iniciativas, ainda em segredo.
Acreditem: a mudança está a caminho e será irreversível.