Dona Leda tem 86 anos. É enfermeira aposentada. Trabalhou mais da metade da vida como funcionária do Estado do Rio de Janeiro. Quando recebe a aposentadoria, gasta a maior parte com medicamentos. A regra é hoje, porém, não receber em dia.
Com a aposentadoria atrasada, dona Leda sobrevive com a cesta básica doada pelo Movimento Unificado dos Servidores Públicos Estaduais. Porque reside em Maricá, para receber os alimentos, seu neto Alexandre tem de dirigir mais de duas horas até a cidade do Rio para buscá-los.
Imagine o que é passar mais de 40 anos trabalhando, se aposentar e precisar de ajuda para comer por atraso no pagamento. A situação de Dona Leda é parecida com a de outros mais de 205 mil servidores que não receberam os pagamentos de maio e junho.
O caos das finanças do governo fluminense é compatível com o ambiente de criminalidade institucionalizado no Rio de Janeiro. À corrupção na política local junta-se a irresponsabilidade e a incompetência de uma série de políticos que se sucedeu nos poderes executivo e legislativo municipais e estadual, além de membros do Ministério Público e do Judiciário. Um Sérgio Cabral não se cria sem a complacência ou inépcia das autoridades constituídas. Muito menos sem a colaboração efetiva de criminosos que fingem ser empresários.
Como puderam ir tão longe sem serem incomodados? Nenhuma autoridade percebeu a prosperidade injustificável de políticos cariocas? E os fluminenses? Como deixaram que os piores entre os seus ocupassem a política? Por que permitiram que ascendessem ao poder figuras como Anthony e Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral Filho e Luiz Fernando Pezão, para citar ex-governadores e atual governador citados nas delações da Lava Jato como beneficiários de propinas da Odebrecht?
A criminalidade na política foi incorporada à rotina de violação das normas pelos fluminenses. O Rio de Janeiro é território povoado de criminosos por vários lados. São eles a parcela supurada de uma sociedade onde a quebra das regras é um hábito, praticado ou tolerado. Quando não cometida por ação, é legitimada por complacência, indolência ou omissão.
Há cariocas que reclamam da corrupção enquanto desfrutam das benesses oriundas do mesmo e outros crimes. Quantos familiares e amigos íntimos de Sérgio Cabral ou de Eike Batista não desfiaram um discurso ético entre uma taça e outra de champanhe enquanto privavam de jantares magnânimos oferecidos por ambos? Quantos não foram aqueles que, junto a outros personagens menos famosos ou anônimos, negligenciaram as próprias suspeitas para desfrutar das benesses do dinheiro sujo? Como aceitam que perante a calamidade financeira seu governador decida ir para um spa de luxo no interior do Estado pagando R$ 14 mil por uma semana de tratamento? De onde vem o dinheiro que Pezão afirma tirar do próprio bolso?
O drama é ainda mais profundo se olharmos o exemplo do Rio de Janeiro sob outra perspectiva. Mesmo com todos os graves problemas éticos, morais, de violência e de corrupção, parte dos fluminenses via no serviço público um porto seguro contra as crises econômicas. Enquanto os funcionários de empresas privadas eram demitidos se a economia fosse mal, os servidores tinham emprego, remuneração e benefícios garantidos (uns mais do que outros). A situação só começou a incomodar quando o próprio Estado, assaltado e mal gerido, foi à bancarrota.
No entanto, uma parcela privilegiada de servidores continua intocada e recebendo em dia seus altos vencimentos, a começar pelos políticos e seus assessores e os funcionários do poder judiciário, como juízes que, além de ótimos salários, ainda recebem um escandaloso auxílio-moradia mesmo que residam na cidade onde trabalham (seria ainda sim escandaloso mesmo que morassem em outra cidade). Quem, afinal, está disposto a abrir mão de seus direitos e a combater privilégios próprios e alheios para que situações semelhantes não voltem a acontecer?
O caos financeiro do Rio de Janeiro não tem prazo para ser resolvido – até porque os agentes da crise continuam no poder e a parcela privilegiada dos servidores (incluindo os aposentados) não vai abrir mão de seus direitos legais, mas injustos. Um relatório elaborado pela Secretaria da Fazenda e divulgado em abril estimava um déficit de R$ 21,7 bilhões para este ano. Outro relatório, este feito pelo Tribunal de Contas do Estado, expôs um déficit de R$ 10,5 bilhões no fundo de previdência do Estado do Rio.
No âmbito federal, a situação é igualmente alarmante. O governo calcula um déficit primário de R$ 139 bilhões. Há quase 100 mil cargos de confiança, funções comissionadas e gratificações espalhados em 30 ministérios, de acordo com o Ministério do Planejamento. O governo federal ainda mantém, com nosso dinheiro, 151 empresas estatais com mais de 500 mil funcionários e um déficit de R$1,6 bilhão (período entre abril de 2016 a abril de 2017).
Deputados e senadores não fazem por menos. O Congresso Nacional custa cerca de R$ 28 milhões por dia. Por dia. Essa dinheirama paga a estrutura, os privilégios e a incompetência da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Conta-se ainda essa excrescência chamada Fundo Partidário que irriga os cofres dos partidos com R$ 1 bilhão. Somos forçados a pagar pela existência do PT, PMDB, PSDB, Rede, PSOL, PCdoB et caterva.
E a justiça? Temos o segundo poder judiciário mais caro do mundo, segundo o levantamento “O Custo da Justiça no Brasil”. Ao gastar R$ 68,4 bilhões, equivalente a 1,2% do PIB (números de 2014), ficamos atrás apenas de El Salvador (1,35% do PIB). Para vocês terem uma ideia, os EUA gastam com o poder judiciário 0,14%, a Itália, 0,19%, e a Alemanha, 0,32% do PIB, países que sustentam um judiciário muito mais eficiente do que o nosso, cuja “prestação da tutela jurisdicional é uma das mais morosas do mundo”, segundo Reis Friede, vice-presidente do TRF/2ª região. Mais do que simplesmente uma questão de ineficiência dos juízes, a morosidade também está relacionada à forma como nós, brasileiros, acionamos a justiça para resolver qualquer tipo de conflito, posto que, afinal, todos temos direitos e ignoramos os nossos deveres.
Além das pessoas que, como Dona Leda, não recebem suas parcas aposentadorias em dia, do grupo de servidores que mais sofre diretamente com a irresponsabilidade e crimes dos políticos, os policiais militares estão no topo – e não só no Rio de Janeiro. Mal pagos e sem estrutura para trabalhar, alguns soldados são alvos fáceis da corrupção ativa de traficantes. Dentre os que não se deixam corromper, têm de encarar diariamente um cenário desolador no Rio: 419 pessoas assassinadas em média por mês, 14 pessoas mortas por dia. Ao longo do ano de 2016 foram registrados 5.033 homicídios dolosos. Nessa conta, entram os 77 policiais militares assassinados. Este ano, até o dia 17 de julho, foram 88 PMs mortos.
Duas vítimas recentes: o soldado Thiago Marzula, de 30 anos, casado, pai de um filho que mal completara um mês de vida. Thiago foi assassinado com um tiro na cabeça quando realizava patrulhamento numa favela em São Gonçalo. Outro PM morto por criminosos foi o cabo Bruno dos Santos Leonardo, de 29 anos, casado e pai de uma menina. O veículo onde estava junto com outros colegas de farda foi alvejado por bandidos. Meu xará morreu com um tiro na cabeça no primeiro dia de trabalho na UPP do Morro da Mangueira para onde foi transferido a seu pedido por temer a violência no Complexo do Alemão, onde trabalhava. O Rio é a cidade onde mesmo um PM teme a violência.
Como viver numa cidade como o Rio de Janeiro? Como levantar todos os dias sabendo que é grande a possibilidade de ser assaltado ou assassinado? Os fluminenses, em geral, e os cariocas, em particular, vão assumir a responsabilidade que lhes cabe? Nos anos em que residi no Rio experimentei o que é viver numa cidade em que inexiste um sentido de comunidade; em que o desrespeito pelo outro é a norma; onde as regras formais e informais são meros estorvos.
Falo do Rio posto que o Rio é o Brasil dilatado pelas infâmias (obrigado, Eça de Queiroz). Poderia, entretanto, referir-me ao Rio Grande do Norte, Ceará, Bahia, Maranhão, São Paulo, Minas Gerais e aos demais estados brasileiros. Todos são sede de problemas similares que variam em profundidade, extensão e danos.
Creio que parte da explicação pode estar no experimento de psicologia social realizado em 1969 pelo professor Philip Zimbardo, da Universidade Stanford. Zimbardo e sua equipe abandonaram dois veículos semelhantes em pontos estratégicos dos Estados Unidos: um no Bronx, um distrito pobre e violento de Nova Iorque na época; outro em Palo Alto, cidade de alto padrão econômico da Califórnia.
O experimento consistia em observar como as pessoas agiriam em relação aos veículos sem placas em ambientes muito distintos. No Bronx, em 10 minutos o carro começou a ser depenado por membros de uma mesma família (pai, mãe e filho jovem) e em três dias estava completamente vandalizado. Em Palo Alto, o veículo permaneceu intacto.
Uma semana depois, porém, a equipe quebrou o vidro e amassou partes do carro. Seguiu-se a partir daí o mesmo resultado havido no Bronx: em algumas horas, o que não fora furtado, destruído foi. Em ambos os casos, a aparência e vestes dos saqueadores não se enquadravam no padrão observado nos criminosos comuns.
Por que tudo isso aconteceu? Num ambiente degradado e violento, um carro abandonado ratifica numa parcela dos moradores a sensação de deterioração, de abandono, de permissividade para romper as regras porque não haverá punição e, portanto, uma chance de se dar bem. Num ambiente cuidado e seguro, um carro abandonado é, à primeira vista, apenas um carro estacionado. Mas quando o veículo estacionado está com a janela quebrada e ninguém aparece para repará-la, desencadeia-se o mesmo processo e sentimento registrados num ambiente deteriorado.
Treze anos depois, o psicólogo George Kelling e o cientista político James Q. Wilson publicaram na revista Atlantic Monthly um artigo baseado no experimento conduzido pelo professor Zimbardo. Depois chamado de Teoria das Janelas Quebradas, o estudo exerceu grande influência e foi utilizado pelo prefeito de Nova York, Rudolf Giuliani, para a criação de seu programa de combate à criminalidade batizado de Tolerância Zero.
O que dizia o estudo? Que havia uma relação de causalidade entre desordem e criminalidade. Kelling e Wilson apontavam de forma inteligente um dado óbvio que escapava às autoridades. Se era verdade que muitos temiam crimes súbitos e violentos que vicejavam nos espaços públicos das grandes cidades americanas, as pessoas tendiam “a ignorar (…) o medo de serem incomodadas por desordeiros”, por “pessoas que não eram violentas, nem necessariamente criminosas, mas que tinham má-reputação, eram rebeldes ou imprevisíveis, como mendigos, bêbados, viciados, adolescentes arruaceiros, prostitutas, vagabundos, mentalmente perturbados”. Porque para a comunidade, “normalmente, desordem e criminalidade estão intrinsecamente vinculadas em uma espécie de desenvolvimento sequencial”.
A ação impune dos desordeiros equivale, para os demais, a uma janela quebrada que não é consertada. Assim como a janela quebrada “é um sinal de que ninguém se importa e, portanto, quebrar mais janelas não custa nada”, provocar desordem sem ser advertido, controlado e punido transmite para seus agentes a ideia de que podem fazer o que quiserem. Isso vale para todos, desordeiros, criminosos e pessoas que jamais se envolveram em qualquer dessas atividades.
Nesse sentido é que a recomendação de Kelling e Wilson continua válida: se a desordem não for logo combatida e interrompida, a criminalidade resultante será maior e mais violenta. E aqui reside o papel crucial das forças de segurança: manter a ordem em situações precárias antes que as coisas piorem. Mas para que a polícia tenha condições de atuar dessa maneira há que se ter incentivos (remuneração, estrutura e valorização) e um plano de segurança pública inteligente, o contrário do que vemos no Brasil.
Um exemplo concreto notável de reação perante “janelas quebradas” foi o que aconteceu em março deste ano no Espírito Santo, Estado onde eu resido. A seguir à greve da PM, instalou-se a versão capixaba do estado de natureza hobbesiano e pessoas que nunca haviam cometido crime agiram como criminosas nas lojas previamente saqueadas por bandidos. O caso é interessante também pelo que veio a seguir, confirmando o estudo: a ação da sociedade nas redes sociais junto com o trabalho da polícia civil foram fundamentais para identificar e pressionar os envolvidos. Muitos devolveram os objetos furtados e alguns pediram desculpas publicamente. A janela foi, em parte, consertada.
Fato é que tratamos o Brasil como uma gigantesca janela quebrada, que nos recusamos a consertar. A nossa indiferença travestida de indignação seletiva e fugaz permite que a desordem (também moral, ética, espiritual) e a criminalidade floresçam e se tornem mais frequentes, profundas, perigosas e violentas.
Se nada fizermos, continuaremos a ser vítimas diretas e indiretas de desordeiros e bandidos de todos os calibres e ocupações. Continuaremos a ser assaltados e mortos. Continuaremos a ver os nossos policiais sérios e honestos sendo maltratados pela sociedade e assassinados por criminosos. Continuaremos a dizer que o Brasil não tem jeito e que a saída é fugir para o estrangeiro. Continuaremos a ocultar a nossa responsabilidade dizendo que a culpa é “do brasileiro”, dos políticos e do governo. Tudo isso estruturado na nossa complacência, covardia e lamento estéril.
Quando, afinal, começaremos a consertar a janela?