Então me dei conta da importância das cartas para a história política do Brasil após ler a mais recente, aquela em que o ex-ministro e atual presidiário Antonio Palocci endereçou ao diretório nacional do PT. Em momentos cruciais da nação, lá estavam os seus personagens a destinar missivas públicas. Se, no século XIX, algumas cartas célebres primavam pela síntese e dignidade, a partir do século XX passaram a ser, basicamente, peças de defesa e denúncias da ação de inimigos como explicação para suas derrocadas ou renúncias.
Antes mesmo de tudo isso, o nascimento do Brasil, inclusive, foi atestado pela carta de Pero Vaz de Caminha escrita em Porto Seguro no dia 1º de maio de 1500 e endereçada ao rei de Portugal, D. Manuel I. O documento tem outro aspecto importante: tudo indica que a descrição da nova terra foi um mero pretexto de Caminha para pedir ao rei que permitisse o retorno a Portugal do seu genro Jorge d’Osouro, que fora degredado para a ilha de São Tomé após ser condenado por roubar pão, vinho e galinhas de uma igreja, e por ferir um clérigo.
Dando um salto na história, do século XVI para o século XIX, D. Pedro I foi econômico ao abdicar o trono em favor do filho D. Pedro de Alcântara na madrugada do dia 7 de setembro de 1831. Nas horas finais de seu reinado, com uma multidão ocupando o Campo de Santana a exigir que o Imperador restituísse o ministério demitido, numa demonstração vívida do conflito entre brasileiros e portugueses, D. Pedro I, ele próprio português, porque equivocado, titubeante e inábil, optou pela abdicação e num pedaço de papel registrou:
“Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei muito voluntariamente abdicado na pessoa do meu muito amado e prezado filho, o sr. D. Pedro de Alcântara”.
Cinquenta e oito anos depois, foi a vez do filho herdeiro perder o trono, mas por golpe militar, não por abdicação. Nem o correto, próspero e livre Segundo Reinado foi capaz de frear o ímpeto revolucionário de republicanos e liberais, que utilizaram as fraquezas de um velho e cansado D. Pedro II para destituí-lo.
Faltou ao Imperador coragem e disposição para resistir, pois que apoio detinha na sociedade, na política e no Exército. O seu amor pelo país e o seu pacifismo acabaram por inviabilizar qualquer esforço de apoiadores para resistir ao golpe, resistência que poderia ser empreendida de forma rápida, cirúrgica e eficaz. Preferiu D. Pedro II, porém, a desonra do afastamento e do exílio a ser responsável por uma guerra civil que derramasse o sangue dos compatriotas. Na carta que deixou, repetiu com brevidade a dignidade do pai:
“À vista da representação escrita que me foi entregue hoje, às três horas da tarde, resolvo, cedendo ao império das circunstâncias, partir, com toda a minha família, para a Europa, deixando esta Pátria de nós tão estremecida, à qual me esforcei por dar constantes testemunhos de entranhado amor e dedicação, durante quase meio século que desempenhei o cargo de chefe de Estado. Ausentando-me, pois, com todas as pessoas de minha família, conservarei do Brasil a mais saudosa lembrança, fazendo os mais ardentes votos por sua grandeza e prosperidade”.
Pai e filho, dois imperadores, duas cartas sem ressentimentos nem acusações, duas declarações de amor à pátria e à família.
O mesmo não se pode dizer de outras cartas célebres que marcaram a história republicana. Começo pelas duas deixadas pelo ditador Getúlio Vargas. Ambas, carta-testamento e carta-despedida, divulgadas após o seu suicídio em 24 de agosto de 1954, primam pela tentativa de auto-engrandecimento, de sanear a sua imagem pública e de atribuir a terceiros a responsabilidade pela sua ruína política e, claro, pelo seu derradeiro ato.
Alguns trechos das missivas são, nesse sentido, simbólicos. Na carta-testamento, Vargas denunciou que desencadearam sobre ele “as forças e os interesses contra o povo” que “coordenaram-se novamente”. Acusava seus inimigos de insultá-lo, caluniá-lo e de não dar-lhe o direito de defesa. “Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes”.
Quem, afinal, eram aqueles que o perseguiam? Segundo o ditador, os “grupos econômicos e financeiros internacionais” e seu aliados nacionais que durante decênios dominaram e espoliaram o país. Na carta-despedida, Vargas acusou os “poderosos do dia e às castas privilegiadas’, a “malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos” que mentiram, caluniaram e criaram “as mais torpes invencionices (…) numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa”. Acusou, também, os falsos amigos, os traidores, os hipócritas, aqueles que estavam à sua volta e que contribuíram “para criar um falso ambiente na opinião pública do país contra a minha pessoa”.
Ao posar de vítima, Vargas encarnou o papel de personagem de ópera que tudo suportou em silêncio, que renunciou a si mesmo “para defender o povo que agora se queda desamparado” (carta-testamento) e lamentou “não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia. E se nada mais podia dar a não ser o seu sangue, oferecia-se em sacrifício para libertar o povo, pois que a renúncia “daria apenas ensejo para, com mais fúria, perseguirem-me e humilharem” (carta-despedida). “Vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte” (carta-testamento). E que “o sangue de um inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus” (carta-despedida). O tiro fatal pôde ser ouvido por todo o palácio do Catete.
Em 25 de agosto de 1961, outro evento (e outra carta) que ajudou a criar o mito do mês de agosto como “o mais cruel dos meses” (perdoe-me, T. S. Eliot). Foi nessa data que Jânio Quadros entregou a sua renúncia na expectativa de que seria reconduzido à presidência pelo povo. Assim como Vargas, Jânio atribui a terceiros a sua decisão. Na carta-renúncia, declarou ter sido vencido pela reação por ter cumprido, em sete meses, o seu dever e “esforços para conduzir esta Nação pelo caminho de sua verdadeira emancipação política e econômica”. E foi vencido, segundo ele, por desejar “um Brasil para os brasileiros, afrontando e denunciando a corrupção, a mentira e a covardia”.
Assim como Vargas, os responsáveis pela sua renúncia eram aqueles que subordinaram “os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos dirigidos inclusive do Exterior.” Grupos nacionais e internacionais, portanto, seriam os seus inimigos, representantes das “forças terríveis” que contra ele se levantaram, infamaram e intrigaram “até com a desculpa de colaboração”. Jânio, segundo o próprio, não teve qualquer responsabilidade na sua derrocada. Pelo menos a ele, talvez por covardia ou mesmo estratégia, faltou coragem para o suicídio, mas não para a renúncia, declarada por carta e aceita de pronto, para seu próprio espanto.
Em maio de 1992, outra carta. Dessa vez, o então presidente Fernando Collor de Mello lê em cadeia de rádio e televisão uma mensagem à nação destinada a simular indignação e rechaçar as “declarações falsas e mentirosas” do irmão Pedro Collor de Mello, que havia concedido uma entrevista bombástica à revista VEJA sobre a atuação e amizade de Paulo César Farias com o presidente. Verificou-se, depois, que as declarações não eram falsas nem mentirosas. Em dezembro daquele ano, sem apoio político e para evitar o impeachment, Fernando Collor tentou simular dignidade num breve comunicado de renúncia que tentava impedir o impeachment: “Renuncio ao mandato de presidente da República, para o qual fui eleito nos pleitos de 15 de novembro e 17 de dezembro de 1989”. A manobra não deu certo e o processo de impeachment seguiu o seu curso até o afastamento de Collor e a cassação de seus direitos políticos.
Apresentada no dia 22 de junho de 2002, a “Carta ao Povo Brasileiro”, arquitetada e formulada por Antonio Palocci com a ajuda, também, do empresário Emilio Odebrecht, ambos envolvidos no esquema de corrupção do PT investigado pela Lava Jato, era a tentativa do Partido dos Trabalhadores de, finalmente, eleger Luís Inácio Lula da Silva à presidência. O documento assinado por Lula foi, de fato, fundamental para “acalmar os mercados” e todos aqueles que desconfiavam que o PT era, de fato, o PT.
A carta, entretanto, revelava duas coisas: a arrogância fatal dos petistas e todo o ressentimento em relação ao governo Fernando Henrique Cardoso e ao PSDB. Alguns excertos demonstram essa posição:
“O Brasil quer mudar (…) para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político. (…) O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. (…)
O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. (…) O novo modelo (…) será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade. (…) O país não suporta mais conviver com a idéia de uma terceira década perdidas”.
Porque o desejo foi realizado de forma inversa pelo PT, o trecho que eu mais gosto é o seguinte: “por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral”.
A carta do então vice-presidente Michel Temer endereçada à então presidente Dilma Rousseff no dia 7 de Dezembro de 2015 deveria ser privada, mas foi estrategicamente divulgada pelo próprio Temer mediante intermediário. Sob o título Verba volant, scripta manent (“As palavras voam, os escritos permanecem”), de privada, porém, a carta nada tinha. Era um documento para tornar pública a sua insatisfação. A carta era, no entanto, menos o desejo de ruptura do que a cobrança de apoio e concessões não atendidas.
Em maio do ano passado, escrevi aqui mesmo na Gazeta do Povo que a epístola, logo esquecida, continuava a ser um documento importante por desnudar alguns aspectos politicamente relevantes e que deveriam ser objeto de reflexão. A carta indicava um ressentimento explícito de Temer em relação à Dilma. Por quê? Porque a presidente nele não confiava, porque não o prestigiava como ele achou que deveria ser e pelas tentativas do governo de enfraquecê-lo politicamente no Congresso a partir da divisão interna do PMDB.
“Sempre tive ciência da absoluta desconfiança da senhora e do seu entorno em relação a mim e ao PMDB. Desconfiança incompatível com o que fizemos para manter o apoio pessoal e partidário ao seu governo”, diz um trecho da carta. Ou seja, se Temer tivesse sido privilegiado como gostaria, carta não haveria, nem rompimento, nem apoio do PMDB ao impeachment – mesmo que o país estivesse no mesmo poço sem fim onde naquele momento se encontrava. Naquele momento, Temer revelava não só o político, mas que tipo de homem ele era.
Afastada da presidência e acuada pela possibilidade de sofrer o impeachment, Dilma Rousseff divulga uma carta ao Senado e ao povo brasileiro no dia 16 de agosto de 2016. À maneira do ditador Getúlio Vargas e do louco Jânio Quadros, Dilma denuncia a ação dos seus inimigos para explicar o seu infortúnio e nega que tenha cometido o crime de responsabilidade que efetivamente cometeu:
“Houve um esforço obsessivo para desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos impostos à população. (…) A essa altura todos sabem que não cometi crime de responsabilidade, que não há razão legal para esse processo de impeachment, pois não há crime. (…) Jamais se encontrará na minha vida registro de desonestidade, covardia ou traição. (…) Esse processo de impeachment é frágil, juridicamente inconsistente, um processo injusto, desencadeado contra uma pessoa honesta e inocente. (…) Não existe injustiça mais devastadora do que condenar um inocente”.
Dilma encerrou a sua carta atribuindo ao povo a decisão pelo futuro do País que ela confundia com o seu próprio futuro. Apostava as suas fichas de que a democracia haveria de vencer. O tipo de democracia que ela ajudou a financiar, de fato, venceu. No dia 31 de agosto de 2016, Dilma foi definitivamente afastada. E o vice que ela ajudou a escolher e a eleger democraticamente a substituiu.
Na semana passada, dia 26 de setembro, entra novamente em cena Antonio Palocci. O já citado arquiteto da Carta ao Povo Brasileiro, o militante petista experiente e ministro influente dos governos Lula e Dilma torna pública uma carta endereçada ao Diretório Nacional do PT. Motivo? Depois de revelar para o juiz Sérgio Moro a sua participação e a atuação de Lula no esquema de corrupção do PT, o diretório de Ribeirão Preto abriu contra ele processo disciplinar e o diretório nacional o suspendeu por 60 dias.
A carta de Palocci é interessante por tentar fazer parecer que ele assume a responsabilidade pelo que fez, e isso está escrito. O ex-ministro trai a si mesmo, porém, quando menciona “o choque de ter visto Lula sucumbir ao pior da política no melhor dos momentos do seu governo”. Apesar de todas as conquistas, acusa Palocci, Lula “dissociou-se definitivamente do menino retirante para navegar no terreno pantanoso do sucesso sem crítica, do ‘tudo pode’, do poder sem limites, onde a corrupção, os desvios, as disfunções que se acumulam são apenas detalhes, notas de rodapé do cenário entorpecido dos petrodólares que pagarão a tudo e a todos”. Petrodólares que pagaram, inclusive, Lula e Palocci.
O que o ex-ministro está dizendo é que tudo o que ele, Lula e os demais petistas fizeram, incluindo os crimes, eram justificáveis quando feitos pelo partido. À medida que a conduta deixou de ser orientada para o partido e passa a ser feita em causa própria tornou-se ilegítima, condenável. Não, Palocci, a corrupção não prevalece “quando a luta pelo poder se sobrepõe à luta pelas ideias”, mas quando a luta pelas ideias é a fundamentação política da luta pelo poder. Quando isso acontece, a corrupção não é um desvio ou acidente; é instrumento de luta.
O final da carta é revelador de como age um revolucionário. Quando Palocci escreve que aceitaria com humildade qualquer penalidade imposta pelo PT, diz mais: diz que está sendo punido por contar a verdade e que a posição do partido é varrer para debaixo do tapete “os erros e ilegalidades”. Ele inverte, portanto, os papéis; coloca-se como o sincero injustiçado pelo partido que ajudou a fundar e a conquistar o poder.
Em seguida, o ex-ministro não pede a desfiliação; ele a submete à decisão do PT: “meu desligamento do partido fica então à vossa disposição”. Por que assim o fez? Porque se o PT o expulsar, seu martírio estará completo e Palocci jamais poderá ser acusado de covardia. Se o PT o expulsar, assumirá o ônus do desligamento; se o mantiver, assumirá o ônus da sua permanência. Definitivamente, briga de revolucionários não é para amadores.
O aspecto mais interessante dessas cartas é a revelação de como reagem em momentos dramáticos aqueles que detêm o poder. Se transferem a terceiros ou assumem com dignidade a sua responsabilidade para o curso dos eventos que culminaram em suas ruínas pessoais e políticas. Nesse ponto, os políticos republicanos não parecem pretender, em nome da verdade, prestar contas públicas através de suas cartas, mas fazerem-se de vítimas das circunstâncias e de seus algozes. Suicídio, renúncia ou afastamento são, portanto, atos finais de um drama maior no qual o ser humano, solitariamente, é obrigado a confrontar a sua própria miséria.
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