(Foto: Geovanna Cristina/Futura Press/Estadão Conteúdo)| Foto:

Abusos na escola são antigos e comuns. Quando digo “antigos e comuns” não estou fazendo juízo de valor. Nem tudo o que é antigo e comum é bom. Um conservador sabe perfeitamente que nem toda tradição é virtuosa e que somente seus elementos benéficos devem ser preservados ou restaurados. Porque castigos físicos aplicados por professores eram punições comuns a alunos desobedientes e com dificuldade de aprendizagem no início do século 19 no Brasil – e a palmatória cantava –, não faz muito sentido defender a sua volta em 2017.

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Quando fiz ensino fundamental e médio, a palmatória, graças a Deus, era artigo de museu e o abuso na escola não era fonte de preocupação nem de debate, a não ser quando os excessos causavam problemas mais sérios.

Antes de essa discussão começar a ser feita e a conduta ser qualificada como bullying, se alguém me perguntasse eu diria que não, claro que não, a coisa toda nas escolas onde estudei se resumia a piadas, gozações, xingamentos, apelidos e toda sorte de gentilezas de que só uma criança ou adolescente é capaz – o que, aliás, é a prova concreta de que Rousseau estava errado ao afirmar que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Mas, se entendemos por bullying atos intencionais e repetidos de violência física e moral, bom, havia um bocado de bullying naquele tempo.

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E mesmo que aquelas piadas, gozações, xingamentos, apelidos não fossem considerados bullying aos olhos de hoje, não devia ser nada agradável, para usar um eufemismo, ser alvo recorrente dessas gentilezas numa escola. Não devia, não era e não é. Na minha experiência escolar, posso afirmar que, se não fui vítima de bullying, fui alvo de certo cavalheirismo bovino inerente a garotos daquela idade.

E talvez eu só não tenha sido vítima de bullying por razões genéticas e de personalidade. Sempre fui um dos mais altos e fortes da sala, além de integrar o honorável grupo do fundão, também conhecida como turma da bagunça. Para completar, eu tinha em casa um avô e um irmão (você mesmo, Breno Garschagen) que eram mestres na arte da gozação satírica e que diuturnamente testavam os meus limites de resistência psicológica. Sendo assim, o aluno que não tinha coragem de enfrentar-me fisicamente nem sempre conseguia provocar-me psicologicamente. Eu tinha resposta pronta para quase, quase todo tipo de brincadeira ou insulto. Treinado diariamente em casa, eu estava preparado para quase, quase tudo.

Se é verdade que nunca sofri bullying, presenciei alguns abusos geralmente direcionados aos alunos esteticamente desprivilegiados e fisicamente fragilizados, que normalmente sentavam na primeira fila e eram conhecidos pela nada abonadora sigla CDF. Quando isso acontecia, eu utilizava contra o abusador o argumento mais eficaz e poderoso: ameaça física ou, quando necessário, socos e pontapés. Infalível.

Não havia bullying no passado?

É perda de memória, burrice ou má-fé dizer que parte do que acontecia nas escolas no passado não era abuso ou bullying. É ignorância achar que ouvir sistematicamente apelidos jocosos ou mesmo insultuosos na infância durante períodos prolongados não provoca alguma consequência psicológica no futuro. Muitas vezes eu quis arrebentar a fuça de outro aluno que sabia como provocar a mim ou um colega.

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Mesmo sem ter sido uma vítima habitual de certas atitudes, lembro de, anos depois, em vários momentos sentir-me inseguro por alguma característica física minha que fora alvo de chacota. Era em momentos delicados, como ser esnobado por uma garota, que a lembrança cruel do abuso emergia furiosamente como explicação para um insucesso. Se eu era chamado de feio, por exemplo, como não debitar na minha feiura o fora que levei?

Mas há dois pontos a serem observados para avaliarmos o bullying desde uma perspectiva correta e contextualizada. Primeiro ponto: o abuso não era (e não é) o padrão de comportamento da maioria dos alunos. Segundo ponto: a vítima do abuso não representava (e não representa) a maioria dos alunos. Essas informações minimizam o problema? Não, apenas permite-nos analisá-lo de acordo com a realidade. Para isso, dados são sempre úteis.

O diz a pesquisa?

Levantamento realizado pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2015 mostrou que “um em cada dez estudantes é vítima frequente de bullying nas escolas”, “17,5% disseram sofrer alguma das formas de bullying ‘algumas vezes por mês’; 7,8% disseram ser excluídos pelos colegas; 9,3%, ser alvo de piadas; 4,1%, serem ameaçados; 3,2%, empurrados e agredidos fisicamente. Outros 5,3% disseram que os colegas frequentemente pegam e destroem as coisas deles e 7,9% são alvo de rumores maldosos”.

Um aspecto que torna a pesquisa precária é ser baseada somente em relatos de alunos entrevistados. Isso faz pensar que os dados disponíveis e as conclusões feitas a partir deles não são de todo confiáveis. É dificílimo, por exemplo, somente a partir dessas informações, definir o limite entre piada e violência moral, assim como verificar se houve intencionalidade. Se cada pessoa assimila ou reage de uma forma diferente quando é alvo de um ato abusivo, como saber se aquilo que não afeta a maioria dos alunos pode ser qualificado como bullying?

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A solução encontrada para vencer essa dificuldade parece ter sido definir toda conduta com graus variados de violência física e moral como bullying. O lado mais perverso de fazê-lo é que a identificação sistemática de condutas com graus mínimos de abuso acaba por atenuar a gravidade, a complexidade e a profundidade do próprio bullying. Portanto, se tudo é bullying, como saber se houve mesmo bullying?

Tudo piora quando a discussão é ideologicamente orientada. Assim, perverte-se a realidade com o intuito de recriá-la em novas bases. Para muitos, hoje, quem mata é o bullying, quem mata é a arma, não aquele que está com a arma carregada e decide atirar contra alguém. A partir desse pressuposto, inaugura-se outro problema: a desresponsabilização parcial das vítimas de bullying que cometem crimes.

O caso mais recente aconteceu em Goiás, em 20 de outubro, quando um jovem de 14 anos disse que matou dois colegas de 13 anos (João Pedro Calembo e João Vitor Gomes), deixou paraplégica a aluna Isadora de Morais, 14 anos, e feriu a tiros outros três alunos (Yago Marques, Lara Borges e Marcela Macedo) porque teria sido chamado de fedorento algumas vezes na escola. Notem a situação esdrúxula: podemos conhecer os nomes das vítimas, mas não o do assassino por vedação expressa do parágrafo único do artigo 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990).

O bullying pegou a arma e matou em Goiânia?

Se já faz parte do imaginário, pelo menos dos jornalistas, que o bullying provoca reações violentas por parte de suas vítimas, é compreensível, embora inaceitável, que uma parcela da sociedade, instigada pela imprensa, tenha praticamente atribuído ao bullying a origem dos crimes praticados em Goiânia. A pressa dos jornalistas em divulgar a informação sem ter dados sobre o autor dos crimes e sua motivação detonou o processo de bullyinização da opinião.

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Perante o choque da selvageria praticada pelo jovem matador, preferiu-se isentá-lo parcialmente ao levantar a discussão sobre os abusos que ele teria sofrido, em vez de investigar como um garoto de 14 anos teve sangue frio para planejar o crime e conseguiu ter acesso tão fácil à arma da mãe, que é policial militar.

Só depois é que fomos informados de que o assassino fazia tratamento psicológico, que dizia para outros alunos admirar Adolf Hitler, que levou para a escola um livro sobre satanismo e que parece nem mesmo ter sido vítima de bullying, mas de algumas chacotas pelo seu mau cheiro.

Para aumentar o drama da coisa toda, Bárbara Melo, mãe de João Pedro, foi atacada covardemente nas redes sociais por pedir que não culpassem o filho, o suposto autor do abuso, que naquele momento ninguém sabia se, de fato, havia acontecido. Ao insistir apressadamente na tese do bullying, a imprensa foi corresponsável por disseminar uma história inverídica e pelo ódio direcionado contra o garoto assassinado e contra a sua mãe, que enfrenta a dor da perda e da estupidez alheia.

Que tipo de mensagem é transmitida a crianças e adolescentes quando a discussão sobre um crime tão terrível quanto esse de Goiânia é realizada com foco primordial no bullying e não na responsabilidade de quem cometeu os assassinatos? Que tipo de adultos serão? Do tipo que assume a responsabilidade e sofre as penalidades pelos atos que comete, ou do tipo que está sempre em busca de uma desculpa para o que fez ou de alguém para transferir a sua culpa?

Se hoje o bullying é a justificativa da moda para explicar atos violentos nas escolas, tal postura esvazia a responsabilidade de quem comete certas atrocidades e minimiza a conduta do abusador, que pode justificar-se como vítima, outrora, de outro abusador numa cadeia sem fim de abusadores que foram abusados e que por isso mataram.

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Usar o bullying como fundamento único para explicar atrocidades como a de Goiânia, de Realengo, de Columbine é a forma mais segura para cometer equívocos intelectualmente criminosos. É uma maneira ardilosa de terceirizar responsabilidades de forma implícita. É o jeito mais infame de produzir uma geração de pais e filhos irresponsáveis e, como diria Theodore Dalrymple, podres de mimados.