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Reforma política? Só se for a minha (parte 2)

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado (Foto: )

Em 2010, caminhava pelas ruas de Oxford junto com o professor português João Carlos Espada, diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, onde faço o doutorado. Quando defronte ao imponente portão do All Souls College, o professor contou-me a seguinte história: “Na década de 1960, um diretor do All Souls foi convocado a ter uma reunião com Lorde Franks. ‘Quem é esse Lorde Franks?’, perguntou o diretor. Seu interlocutor explicou tratar-se do presidente da comissão que formulava proposta de reforma da universidade. Chocado, o diretor reagiu: ‘Reforma? Então as coisas já não estão suficientemente más?'”

No âmbito da política, eu, que sou um reformista, reajo da mesmíssima maneira toda vez que ouço falar em reforma proposta por políticos brasileiros. Porque um cientista político analisa a política como ela é, não como deveria ser (objeto da filosofia política). Acreditar que os atuais deputados e senadores empreenderão uma mudança para aprimorar o sistema é equivalente a acreditar que os socialistas querem o nosso bem.

No artigo anterior eu já alertara: reforma política, só se for a minha. Por quê? Não por qualquer exercício de antropomancia, apenas por observar a realidade política e o comportamento padrão dos parlamentares.

Vejam o que fez a Comissão Especial da Reforma Política da Câmara dos Deputados. A maioria de seus membros aprovou, na semana passada, duas medidas que não resolverão os defeitos existentes e haverão de criar outros hoje inexistentes: o “distritão” e o fundo de R$ 3,6 bilhões para financiamento estatal de campanha. A proposta seguirá para votação no plenário da Câmara.

Chocado fiquei, mas não surpreso. Ao aprovar o distritão e o fundo estatal de campanha, a comissão não reformou, mas deformou um sistema que já é ruim. E me fez lembrar do alerta do senador conservador Francisco Belisário Soares de Souza (1839-1889) sobre a reforma eleitoral de 1860 e que se aplica à perfeição ao caso atual: “o mal não desaparece, e a reforma antes dá margem ao aparecimento de novos defeitos e ao aprofundamento dos antigos”.

O financiamento estatal de campanha é um acinte. No meu artigo da semana passada, manifestei o meu apreço pela proposta: financiamento público de campanha, nem pensar. O financiamento tem de ser privado e voluntário, posto que ninguém deve ser obrigado a financiar a eleição de qualquer político.

Sobre o sistema eleitoral, o atual, proporcional, é uma excrescência que deve ser substituída, mas pelo sistema distrital; não, portanto, pelo distritão nem pelo distrital misto, dois equívocos para a nossa realidade. Não se pode, porém, acusar os deputados de incoerência: confirmadas, as mudanças representarão exatamente o que é e como pensa o atual Congresso.

Essa parte da reforma política em andamento na Câmara, para além das escolhas equivocadas porque beneficiam os políticos, está condenada, posto que tem prazo de validade. Não incompreensível, mas escandaloso que algo tão fundamental para uma democracia esteja sendo tratado casuisticamente pelos partidos que celebraram um acordo para que o distritão seja um mero instrumento de transição para a eleição de 2018. Para a eleição de 2022, pretendem promover uma nova mudança com o fito de implementar para a eleição vindoura o voto distrital misto e o parlamentarismo.

Percebam a gravidade: partidos com poder no Congresso pretendem fazer uma reforma que eles mesmos reconhecem como inadequada posto que pretendem, de antemão, realizar a mudança da mudança a partir de 2019. É um ato simbólico de como os políticos brasileiros lidam com as dificuldades: ou não atacam as origens dos problemas, mas suas consequências (quanto muito), ou criam mais problemas para tornar mais difíceis a resolução dos atuais.

O distritão é ruim? Tanto quanto – ou ligeiramente pior que – o atual sistema proporcional, que impede que uma parcela dos candidatos se eleja mesmo que conquiste muitos votos enquanto permite que outra parte se eleja mesmo com poucos votos.

E o distrital misto? Um modelo que também beneficia as cúpulas dos principais partidos. Ao combinar voto direto para o seu candidato com o voto para o partido que escolherá por você um outro candidato, o distrital misto, como definiu precisamente o jornalista Fernão Lara Mesquita, “mantém um monte de partidos e caciques decidindo quem pode ou não se candidatar a quê e legislando sobre tudo dentro e fora da sua casa e até da sua cabeça”. O eleitor nunca saberá “ao certo representante de quem cada deputado é: de um pedaço ‘X’ do eleitorado ou de um grupo dentro de um partido com poder para montar a tal da lista”. Esse modelo é defendido pela maioria dos políticos porque minimiza o controle sobre a sua atividade, diminui a ameaça de perder a cadeira no parlamento e reduz a pressão direta exercida pela sociedade, o que se consegue mediante o modelo distrital.

Um aspecto interessante da discussão sobre as alternativas são as acusações de possíveis problemas futuros que já ocorrem no presente: por razões substantivas, 1) os partidos já são fracos, descolados da realidade e apartados da sociedade; 2) as legendas já escolhem nomes conhecidos para funcionarem como puxadores de votos e assim eleger candidatos que não foram escolhidos pela maioria dos eleitores; 3) a tal da renovação política limita-se à substituição de nomes, pois os “novos” representam, na média, mais do mesmo: ideias equivocadas, práticas políticas condenáveis e ausência de espírito público pela falta de responsabilidade individual. Repito: tudo isso é um dado da realidade atual, não uma ameaça futura.

Nem sistema proporcional, nem distritão, nem distrital misto, portanto. Vocês que leram o meu artigo da semana passada sabem o que defendo: parlamentarismo com voto distrital por maioria simples. Assim, os estados da Federação seriam divididos internamente em distritos e a comunidade votaria, de fato, no seu candidato local e teria condições de pressioná-lo. O localismo na escolha incentiva a comunidade a pensar e a se responsabilizar localmente. O distritão, ao esvaziar essa dimensão local pelo aumento da geografia eleitoral e ao incorporar instrumentos como a coligação de partidos, preserva a distância hoje existente entre os eleitores e os representantes e o sentimento de que não somos responsáveis pela política. Qual o resultado imediato? Distorcer ou até mesmo anular os aspectos positivos do modelo, dentre os quais campanhas mais baratas, eleição do candidato mais votado e o relativo localismo representativo.

Há outro aspecto fundamental do voto distrital que foi apontado pelo jornalista Fernão Lara Mesquita no artigo já citado: “põe o eleitor mandando diretamente em cada pedacinho do país, o que lhe dá poder, mas não para tudo. Juntando grupos majoritários de pedacinhos do país, ele manda no país inteiro sem, no entanto, ganhar caminhos fáceis para golpes. Tudo tem sempre de ser aprovado passo a passo, na ida ou na volta, por todos os eleitores de cada pedacinho do país. (…) Resumindo: com voto distrital puro com ‘retomada’ e referendo, os políticos deixam de mandar e passam a obedecer. A partir daí você decide quais reformas fazer e quando”.

O voto distrital já faz parte da minha proposta de reforma que apresentei no artigo anterior. Aqui elenco outros pontos. Primeiro, recall ou retomada de mandatos de todos os representantes eleitos com regras definidas nos âmbitos municipal, estadual e federal. Segundo, regras locais para realização de referendos e de criação de leis municipais.

Terceiro ponto, fim do Fundo Partidário. O partido terá de convencer seus representantes, filiados e eleitores a financiarem a sua existência. É obsceno que os políticos nos queiram obrigar, mediante pagamento compulsório de tributos, a pagar pela existência de siglas que não nos representam ou que representam tudo aquilo que rechaçamos.

Quarto ponto, voto impresso sem o uso de urnas eletrônicas. Porque as urnas não estão imunes a fraudes e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por razões que a própria razão desconhece, não permite a realização de uma auditoria independente. No ano passado, o engenheiro Amilcar Brunazzo disse-me em entrevista que a restrição imposta pelo TSE impede uma avaliação técnica que determine a confiabilidade da etapa de votação e de apuração dos votos feitos nas urnas eletrônicas. Quando perguntei se nós, eleitores, poderíamos confiar no voto eletrônico, Amilcar foi contundente: “não mesmo”.

Quinto ponto, candidaturas independentes de filiação a partidos políticos. Sexto ponto, regras simples para criação de partidos políticos, que, no entanto, terão sua representação no parlamento estabelecida pela cláusula de barreira.

Sexto ponto, impossibilidade de coligações partidárias nas eleições, caso algum deputado ou senador seja acometido por algum surto de criatividade e pretenda inserir tal coisa no voto distrital.

Sétimo ponto, o partido que obtiver maioria simples das cadeiras do Parlamento pode formar o governo e indicar o primeiro-ministro. Isso evitaria um problema que aconteceu em 2010 e em 2017 na Inglaterra: o Hung Parliament, algo como “Parlamento protelado” ou “suspenso”, que perdura até que o partido que conquistou a maioria dos votos, mas que não atingiu a metade mais um dos 650 assentos da Casa, consiga firmar uma coligação com outro(s) partido(s), estabelecer um acordo de apoio a políticas fundamentais no Parlamento ou fechar uma coligação minoritária.

Essas sete propostas devem ser tomadas em conjunto com as outras que apresentei no texto anterior. Em artigos futuros, pretendo sugerir outras reformas como a constitucional, tributária e previdenciária.

Por ora, as minhas sugestões são direcionadas a vocês que desejam viver num país melhor, onde o Estado e seus representantes não nos atrapalhem e nem sequer sejam tema de conversa de bar. Ratifico o que escrevi na semana passada: meu intuito é apresentar sugestões e começar, a partir daí, a deslocar a Janela de Overton. Informação conduz à reflexão e à mobilização. Por isso, sugestões são mais do que bem-vindas. Fiquem à vontade na seção de comentários.

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