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Ser conservador não é conservar tudo o que aí está

Evaristo Sá/AFP (Foto: )

A palavra conservador é a Geni dos ignorantes. Já escrevi diversas vezes aqui: convertido em insulto-coringa, o conservadorismo serve para qualificar tudo o que não presta no Brasil. Das 10 pessoas que usam o termo sem moderação, 11 não fazem ideia do que é e o que significa o pensamento conservador. Dada a profunda ignorância sobre o seu sentido político e o esforço para não aprender, a maioria usa a palavra como sinônimo de fascista, nazista, racista e outras formas de tratamento igualmente carinhosas.

Foi uma surpresa, portanto, ler a resposta da senadora Ana Amélia em entrevista à Folha de S. Paulo. Ao ser indagada sobre se é ou não conservadora – pergunta que um repórter que soubesse o que é conservadorismo jamais faria à senadora –, ela respondeu:

“Conservadora da boa ética, dos bons princípios, da integridade, da defesa da Lava Jato. Conservadora desses princípios. O mundo não se divide mais entre esquerda e direita, mas entre rápidos e lerdos. Eu prefiro essa definição”.

Fiquei surpreso apenas pelo fato de ela, em vez de dizer as tolices de sempre sobre o termo, apontar corretamente essa dimensão conservadora que é conservar o capital de virtudes acumulado ao longo da história, ou seja, aqueles elementos positivos que sobreviveram aos testes do tempo na sociedade. E aqui subentende-se aquilo que Edmund Burke define como o contrato entre os vivos, os mortos e os que hão de nascer. Porque somos os guardiões do legado positivo deixado pelos antepassados é nossa responsabilidade transmiti-los para as gerações futuras.

Se é verdade que o conservador deseja conservar o capital de virtudes acumulado ao longo da história, também é verdade que o conservador não quer conservar tudo o que sobreviveu e que é tradicional por ser tradicional. Há, portanto, uma condicionante: tradições, hábitos, ações, leis, instituições do passado que resistiram até o presente só são celebrados e defendidos pelos conservadores se forem benéficos; se não forem, devem ser reformados (se possível) ou extintos.

O equívoco de achar que o conservador é aquele que deseja conservar qualquer coisa não é novo nem uma exclusividade brasileira. O grande intelectual mineiro João Camilo de Oliveira Torres, que nos legou Os Construtores do Império, a história do partido Conservador Brasileiro, já em 1970 advertia contra esse erro fatal. Para solucioná-lo, distinguiu o conservador do conservantista:

“Devemos evitar o conservantismo, isto é, a preocupação de conservar tudo, de bom ou de mau, só por ser antigo. O antigo é belo e nobre; mas o velho pode ser caduco e decrépito (refiro-me a realidades sociais, não a indivíduos). Cumpre reformar e renovar, mas conservar também” (O Elogio do Conservadorismo, Editora Arcadia, 2016, p. 94).

É o conservantista, portanto, aquele que defende a tradição pela tradição, a conservação pela conservação, sem distinguir os elementos positivos dos negativos. Para o conservantista, tudo deve ser conservado, desde que seja antigo.

Não é assim que o conservador percebe a tradição e o legado dos antepassados. Porque mantém um ceticismo saudável e, ao contrário da caricatura que se faz como alguém que idealiza e está preso ao passado, o conservador está profundamente ligado ao presente e tem o passado como sábio conselheiro.

Sendo alguém que escuta quem é mais sapiente e aprende com os próprios erros e com os de terceiros, o conservador está constantemente a verificar o legado que recebeu para testá-lo e adequá-lo ao presente para, dessa forma, transmiti-lo lapidado para as gerações futuras.

Isso permite que o conservador aceite, inclusive, rejeitar no presente soluções que no passado deram certo em razão de contextos e circunstâncias históricas específicas, mas que no presente seriam um erro. O conservador é alguém que rejeita aquilo que o filósofo Michael Oakeshott definiu como política de fé, ou seja, a certeza de que existe uma única e melhor solução racional para todo e qualquer problema.

A senadora acertou ao tratar como benéfica a conservação de elementos positivos, que ela confunde com princípios. É um equívoco, entretanto, apenas porque ela concorda com um aspecto do conservadorismo, qualificá-la como conservadora, como o repórter fez e como ela, ao não negar a qualificação, pareceu admitir ser.

Defender bons princípios, integridade e a Lava Jato é algo que qualquer pessoa decente deve fazer. Para ser conservadora, porém, a senadora deveria compartilhar com os conservadores, dentre outros elementos, uma concepção de natureza humana, de ceticismo político, de prudência, de função do Estado, de funcionamento das instituições políticas, o que não me parece ser o caso.

A escolha que ela fez ao aceitar ser candidata a vice-presidente na chapa de Geraldo Alckmin é a negação pública de uma posição conservadora, a começar pelo fato de o PSDB ser um partido socialista (social-democrata). Sua opção também expôs a contradição de sua afirmação na entrevista. Se ela é, como afirmou ser, “conservadora da boa ética, dos bons princípios, da integridade, da defesa da Lava Jato”, jamais poderia integrar uma chapa com um político que, como mencionei no artigo da semana passada, foi citado na Lava Jato por delatores da Odebrecht como beneficiário de dinheiro de caixa 2 para campanha e que selou o pacto com o “Centrão”, nome do perfil fake de Mefistófeles. Ao apoiar forças políticas estabelecidas que querem conservar a qualquer custo o seu poder, Ana Amélia não está sendo conservadora, mas, na mais benevolente das hipóteses, conservantista.

Mesmo com toda a confusão e uso inadequado da palavra conservador, um dos aspectos positivos do atual momento político é que hoje, ao contrário do passado recente, existe quem faça a defesa e a explicação do conservadorismo, além do crescimento exponencial do interesse pelo tema. É, mais do que nunca, a hora de buscar e compartilhar conhecimento a respeito do que é o pensamento conservador para que não se defenda algo completamente distinto como sendo a expressão do conservadorismo.

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