A perspectiva da morte deveria nos fazer pensar na maravilha da vida e na eternidade do espírito. Saber que um dia morreremos poderia ser um estímulo para nos tornarmos pessoas melhores e desfrutar com inteligência a vida terrena que Deus nos deu. O tema é tão farto quanto a bibliografia que se propõe a analisá-lo.
Viver, porém, não é só usufruir de tudo o que está disponível. Significa abrir mão de certas ações e resistir a tentações, condutas que fazem parte do processo de amadurecimento. Escolher o que realmente importa nos permite aproveitar com mais intensidade aquilo que nos é mais caro. Se queremos e temos tudo, certamente não daremos valor a quase nada.
No episódio 8 da excelente série This is Us, da Amazon Prime, o personagem William Hill, que sofre de câncer terminal, responde que a sensação de estar morrendo era semelhante a ver voando ao seu redor “lindos pedacinhos da vida” e tentar agarrá-los. “Quando minha neta dorme no meu colo”, disse, “tento agarrar a sensação dela respirando sobre mim. E quando faço o meu filho rir, tento agarrar o som da sua risada. Mas os pedacinhos estão mais rápidos agora e não posso agarrá-los todos. Sinto que estão escapando de mim. Em breve, onde estavam, em minha neta respirando e no meu filho rindo, não haverá mais nada”.
A perspectiva da morte nos obriga a reavaliar nossas atitudes perante a vida e as pessoas que nos fazem bem. O temor de não ter as suas presenças físicas torna a despedida ainda mais acre. O medo de perdê-los se sobrepõe, em muitos casos, ao receio de morrer. Somos então tomados por um sentido de urgência que nos permite valorizar quem ainda está fisicamente presente e lamentar a ausência daqueles que já se foram. A falta do meu avô Gipsy Garschagen jamais será por mim superada.
A morte também encerra a possibilidade das segundas chances, no amor, na amizade, no reencontro. Uma oportunidade perdida jamais se repetirá. No âmbito intelectual, carrego dois lamentos irreparáveis. Ambos tiveram lugar no mesmo ano, na mesma cidade: 2010, Oxford, Inglaterra.
No dia 6 de maio de 2010, o poeta Geoffrey Hill – o maior poeta vivo de língua inglesa – foi ao Wolfson College ministrar palestra sobre guerra e civilização. Logo me inscrevi e contei os dias para ver o poeta cuja poesia eu conhecia desde 2004, quando fui a ela apresentado pelo amigo Pedro Sette Câmara. Amei-a de pronto.
Cheguei cedo ao Wolfson College naquele dia para conseguir um bom assento. Funcionou. Pude assistir o poeta a falar com maestria, intercambiando eventos históricos e trechos de poemas com a voz marcante de um homem de 80 anos. Ovacionado ao final de sua intervenção, foi sendo cumprimentado por muitos.
Quando Hill iniciava lentamente o trajeto de saída apoiado numa bengala, eu, que estava próximo a ele aguardando para abordá-lo, travei. Por admiração, reverência, fiquei petrificado. E ali, contrangedoramente parado, vi-o passar levando consigo séculos de civilização.
No dia 31 de junho de 2016, seis anos depois daquela aula, Geofrey Hill faleceu. Eu já estava no Brasil e pensei na chance perdida. Fui à estante buscar o meu exemplar de “Selected Poems”, que continuava onde sempre esteve: sem autógrafo, sem a assinatura do seu genial criador.
O segundo lamento irreparável não se deu por reverência, mas por birra. No dia 12 de maio de 2010, seis dias depois do não-encontro com Geoffrey Hill, o jornalista Christopher Hitchens foi a Oxford participar de um debate com o professor John Haldane sobre secularismo e fé no espaço público. Quando soube, corri para conseguir um ingresso. Eu admirava o trabalho de Hitchens, menos a sua cada vez mais insuportável fé no ateísmo. Fui com a esperança de que vê-lo debater arrefeceria minha crescente reticência. O que aconteceu, entretanto, foi pior.
Ao final do animado debate realizado no teatro Sheldonian, dirigi-me à livraria Blackwells, localizada do outro lado da rua, onde Hitchens autografaria seu recém-lançado Hitch-22. Fui, aguardei, até tolamente permitir que o ateísmo do jornalista se sobrepusesse a todo o seu trabalho de comentarista político e crítico cultural. Num rompante, decidi ir embora sem livro nem autógrafo. Deixei que a parte menor do seu labor intelectual superasse a parte maior, mais interessante, mais significativa.
Quando comecei a subir as escadas para deixar a livraria, dei de cara com o homem. Ao ver a quantidade de jovens que o aguardavam, Hitchens soltou um “uau!” e perguntou para uma pessoa que vinha logo atrás a que horas era o jantar e se daria tempo de atender a todos. Olhei para o jornalista com uma vontade irresistível de dizer-lhe o quanto a fé na inexistência de Deus é o pior tipo de fé, uma antifé, uma estupidez.
O máximo que consegui foi dar de ombros e tomar o caminho de casa fingindo não pensar que eu queria mesmo era ter continuado na Blackwells, comprar um exemplar, pedir-lhe um autógrafo, dizer-lhe que era um seu leitor brasileiro e voltar feliz. Mas não. Preferi emergir na minha própria irritação.
No final de junho de 2010, um mês e meio depois do debate em Oxford, Hitchens anunciou que estava com câncer no esôfago. Tomei um susto quando li. Ele parecia tão bem, pensei. Em dezembro do ano seguinte, ele morreu. Foi um choque. Eu não parava de pensar na oportunidade perdida de trocar breves palavras com um intelectual que eu admirava. Mais do que isso: lembrei da célebre boutade do Samuel Johnson sobre as duas únicas certezas da vida: a morte e os impostos. Eis que o sentido de urgência, mais uma vez, acendeu a luz vermelha.
Por outro lado, chega a ser insólito pensar que uma morte pode ser um recomeço. Se não fosse uma morte anterior, ocorrida 3 anos antes, eu provavelmente não teria chegado a Lisboa ou a Oxford.
Em 2007, eu trabalhava como jornalista no Rio de Janeiro. Um amigo em visita faleceu no meu apartamento: enfarto do miocárdio. Porque eu estava insatisfeito com o jornalismo, passar por aquela experiência me impulsionou a tomar a decisão de abandonar o ofício.
Incentivado pelo João Pereira Coutinho, que na época fazia o doutorado, pedi demissão, entreguei o apartamento, raspei uma modestíssima poupança e fui para Lisboa cursar o mestrado em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos (IEP) da Universidade Católica Portuguesa. Em 2010, graças a uma bolsa de estudos do IEP, fui para a Universidade de Oxford pesquisar para a dissertação e não ter os encontros com Hill e Hitchens.
Antes de me fazer tomar a decisão de ir para Lisboa, a morte do meu amigo me fez perceber que é a brevidade da vida que a torna tão própria para, enquanto é possível, tomar decisões, construir relações amorosas e afetivas duradouras, desenvolver com paixão projetos profissionais, perseguir a vida boa de que fala John Kekes, buscar o sentido da vida de que fala Victor Frankl.
Na vida pessoal e profissional, um dos mais dolorosos sentimentos é o da impossibilidade de reparar algo que se deixou de fazer. Estejam certos de que o desgastado dito popular “não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje” é mais do que verdadeiro.