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Estar fora do país, em contato com pessoas de várias nações diferentes, aguça a identidade brasileira. Diante da pluralidade de idiomas, modos, formas de ver o mundo, a natureza da nossa cultura aflora imperialmente. É uma maneira singularíssima, e de certa maneira transcendente, de descobrir o quão brasileiro efetivamente somos a partir do diálogo com estrangeiros.

Tenho esse tipo de experiência há uma década por razões profissionais e acadêmicas. Na semana passada, novamente, porque participei como palestrante do Estoril Political Forum 2018, evento internacional realizado pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Profissionais e estudantes de países da Europa, da África, da América do Sul e do Norte estavam presentes para discutir populismo, patriotismo e democracia, e era grande o interesse deles pelo Brasil.

Todos com quem conversei, alarmados pelas notícias veiculadas na imprensa internacional, perguntavam se as informações condiziam com a realidade. Eu, então, separava e explicava o que era verdade, exagero ou até mesmo uma leitura equivocada da realidade brasileira por parte de correspondentes internacionais que partem das reportagens publicadas em parte da grande imprensa brasileira para realizar as suas próprias apurações.

Essa experiência recente me fez pensar num comportamento bastante nosso – e aqui estou a fazer um exercício de generalização –, que é o de pensar e falar sobre o nosso país de maneiras distintas a depender do interlocutor, se compatriota ou se estrangeiro.

Quando somos instados a falar sobre o Brasil no exterior, as respostas são, portanto, costumeiramente distintas daquelas que daríamos se estivéssemos em solo pátrio. No exterior, podemos ser mais críticos ou mais apaixonados, a depender do momento do país ou da percepção individual sobre as nossas virtudes e vicissitudes.

E aqui há duas questões que devem ser vistas separadamente. A primeira é o esforço para explicar o Brasil para um estrangeiro. O busílis é que não temos o hábito de refletir acerca dos nossos problemas e das eventuais soluções para explicar a nossa realidade para um terceiro, que não faz ideia sobre o que nos acomete.

A segunda questão é doméstica: premidos pela dura realidade, quando o assunto vem à tona em conversas sociais ou profissionais, temos o singular costume de reproduzir o que sai na imprensa – em reportagens ou colunas de opinião. Por isso mesmo, a partir daí ou expressamos o ódio de costume contra o Brasil, aquele Brasil que é reduzido ao Estado e aos grupos políticos, ou celebramos acriticamente o país baseados em certas mitificações (povo alegre, pacífico, etc.).

Quero dizer com isso que temos uma tendência a não pensar sobre o que nos afeta e também a reagir emocionalmente a respeito das questões mais prementes. É compreensível, em parte, que assim o seja. É difícil nos distanciarmos das urgências que nos afligem: insegurança pública, custo de vida, Congresso, STF, decisões de Gilmar Mendes.

Trata-se, porém, de esforço que não deveria estar restrito a quem deve fazê-lo profissionalmente – e não estou dizendo que todos os profissionais da área sejam bem-sucedidos nessa responsabilidade. E digo que não deveria porque a compreensão de um povo sobre si mesmo e sobre a sua pátria (cultura, história, tradição, heróis, valores) é condição sine qua non para reconhecer adequadamente seus equívocos e desafios, mas também suas virtudes e qualidades.

Sem esse conhecimento, mesmo que superficial, os indivíduos que compõem a sociedade ficam presos a uma visão corrompida do país onde vive. No nosso caso, o ódio contra o Brasil é uma espécie de jaula psicológica dentro da qual somos prisioneiros de uma visão deturpada da nossa natureza e da nossa nação.

Ao falar de literatura, T. S. Eliot escreveu a respeito do legado literário algo que pode ser ampliado para a nossa relação com o país: a tradição, que é dinâmica, “não pode ser herdada, e se a quisermos”, temos de conquistá-la “com árduo labor”. E porque a tradição tem um significado muito mais amplo, não pode consistir unicamente “em seguir os caminhos da geração imediatamente precedente” (Ensaios de Doutrina Crítica, Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p. 22). O corolário dessa escolha é perder-se na trajetória e fazer da novidade um fim em si mesmo.

Como aqui a tradição é ignorada ou insultada como expressão de conservadorismo, há um hábito de achar que o novo é sempre necessário para que o Brasil, “um país sem solução”, recomece do zero eternamente. Porque desconhecemos a nossa tradição e ignoramos o que é conservadorismo, temos o hábito de propor regularmente uma revolução permanente para acabar com tudo aquilo para o qual não vislumbramos solução (corrupção, impunidade, degradação moral, pobreza). Nesse esforço destrutivo, que é, portanto, revolucionário, não aprendemos a construir. Pelo contrário.

Nosso país não é só isso, entretanto: há todo um universo positivo de uma tradição viva que se manifesta no presente, mas que é a todo o tempo maltratada ou alienada. Quando é dado a um estrangeiro conhecer a realidade brasileira sob esse prisma que decompõe várias faces e nuances e revela um monumental arco-íris (numa inversão à boutade de John Keats à descoberta de Newton), e também a nossa extraordinária capacidade de equilibrar antagonismos, como observou o conservador Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala, São Paulo: Global Editora, 2003, p. 116), o interesse pelo nosso país é ainda maior, assim como a expectativa de que superemos o momento difícil.

Se reduzimos o país aos nossos dramas, elevamos os dramas à natureza da nossa nação. Desconheço método mais eficiente para sermos piores do que somos aos nossos olhos e aos olhos dos estrangeiros.

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