É batata: basta reunir uma turma de amigos que logo o assunto futebol emerge como poderosas brotoejas. Na semana passada fui réu numa roda de torcedores – juízes implacáveis –, que me cobraram posição firme, fatal, absoluta: qual o seu time? Conheço o roteiro. A depender da resposta, eu sou tratado como irmão de sangue ou inimigo ancestral. Tudo parte do ritual do torcedor.
Nesse mister, porém, não canso de decepcionar amigos e recém-conhecidos. “Não vejo futebol”, respondo, sem orgulho nem enfado. A decepção nos rostos dos interlocutores é velha conhecida, que, de tão antiga, virou íntima. Para que o choque não dure mais do que o necessário, costumo, para quebrar o silêncio, perguntar coisas importantíssimas como: “você acha que Hamlet, se fosse carioca, jogaria no bicho?”
Já vi amigos e familiares brigarem por futebol. Jamais entendi. Talvez porque falte em mim essa paixão que um time desperta. Porque adoro esporte, compreendo o sentido de pertença que vincula torcedores aos seus clubes. Mesmo nos países em que há uma identidade nacional, da qual o patriotismo é fruto virtuoso e o nacionalismo sua fruta podre, o futebol é fonte de veneração. Mas em mim, repito, nenhum esporte tem o poder de me fazer brigar ou chatear quem quer que seja.
Sempre foi assim? Obviamente, não. Joguei muito (mal) futebol na infância e adolescência. Tinha o meu time do coração, um time que tive a sorte de ver brilhar e ganhar tudo, inclusive mundial de clubes, naquele início da década de 1980. Sabia (ainda sei) a escalação de cor, tinha os meus ídolos numa equipe com vários (quase todos). E, claro, satirizava os perdedores. Depois, vi esse time gradualmente desvanecer até se transformar no que é hoje: uma imagem pálida e triste do que um dia foi. O time mudou, eu também.
O que não mudou – e não mudará – é não apenas essa paixão bonita que traz um encanto especial ao jogo, mas a ação violenta de parte dos torcedores contra torcedores adversários. No dia anterior ao jogo do Flamengo contra o Independiente pela final da Copa Sul-Americana, na semana passada, houve confusão criada por flamenguistas perto do hotel onde os jogadores argentinos estavam hospedados.
No dia seguinte, horas antes da partida, brigas, agressões, pedradas contra ônibus nas imediações do estádio e, na parte interna, torcedores do Independiente imitaram macacos para provocar os torcedores do Flamengo, que revidaram com a gentileza de sempre. Depois do jogo e com a perda do título, mais cavalheirismo: confusão e roubo praticado por flamenguistas.
A violência no futebol não está restrita à torcida. São vários os casos de pancadaria dentro de campo envolvendo alguns ou todos os jogadores. Entre parte dos torcedores, porém, atos violentos parecem ser instrumentos de sua própria existência, principalmente quando reunidos numa torcida organizada.
Há várias tentativas teóricas para explicar a violência entre torcidas. Uma delas é “a teoria da catarse, que foi identificada como a teoria de ‘purificação’ ou de ‘sublimação’ de algumas potencialidades humanas, a exemplo, a violência”. A teoria da catarse subdivide-se em: 1) teoria terapêutica: “o torcedor sairia do jogo, pelo menos durante certo período, sublimado da violência”; e 2) teoria perpetuadora: “não seria garantido que o torcedor sairia do jogo purificado da violência, sendo o mínimo que se garanta a realização simbólica da violência potencial ou real do torcedor” (A violência nos estádios de futebol: uma análise dos pontos de vista intrínseco e extrínseco, de Fernando Afonso Mendes Junior e Silvia Maria Saraiva Valente Chiapeta).
Como motivador do comportamento violento está tanto a certeza de que o próprio time é técnica e moralmente superior a todos os demais quanto um conjunto de sentimentos alimentados pelo que acontece na vida de cada torcedor, de frustrações individuais e econômicas a ressentimentos sociais de várias ordens até elementos racialistas e nacionalistas.
No caso do Brasil, onde questões raciais e nacionais estão ausentes, além “da banalização da violência e da transgressão”, como analisou em artigo acadêmico Luiz de Henrique de Toledo, também existe a infiltração de bandidos ligados ao tráfico de drogas e de armas e a incompetência do Estado para lidar com o problema, como apontou o sociólogo Maurício Murad no livro A Violência no Futebol: Novas Pesquisas, Novas Ideias, Novas Propostas.
Essas paixões que geram ou potencializam a brutalidade não são exclusividade de torcedores de países com baixo grau de desenvolvimento econômico. Os hooligans, os temidos torcedores ingleses que viraram adjetivo para qualquer torcida violenta na Europa, são um grande exemplo de que a violência de torcidas organizadas independem do grau de prosperidade de um país.
Sobre o tema, há duas excelentes séries que vi anos atrás: The Real Football Factories e The Real Football Factories International. Apresentadas pelo ator Danny Dyer, que protagonizou o filme The Football Factory (que no Brasil virou Violência Máxima), as séries mostram quem são, o que pensam e o que fizeram líderes e integrantes das torcidas mais violentas do mundo em nove países (Reino Unido, Itália, Holanda, Polônia, Rússia, Croácia, Sérvia, Turquia, Brasil e Argentina).
É tudo assustador. A começar pelos ingleses, ficará aterrorizado quem tem uma visão idealizada de um país onde supostamente pululam somente nobres e cavalheiros. Em duas ocasiões, topei com torcidas inglesas, de times diferentes, em Londres e em Lisboa. Acredite: é de dar medo. A minha primeira vontade foi correr sem olhar para trás e como se não houvesse amanhã. Um tanto paralisado e com medo de parecer ridículo, respirei fundo, rezei o Pai Nosso e segui em frente.
Mesmo para quem não gosta ou não acompanha mais futebol, o que é o meu caso, recomendo vivamente que veja The Real Football Factories e The Real Football Factories International. São ambos os filmes uma experiência sociológica e psicológica sobre a violência entre torcidas que em certas dimensões ajudam a entender a expressão da violência em manifestações políticas ancoradas em ideologias e naquilo que Francisco Razzo chamou em seu livro de A Imaginação Totalitária. Outro livro que fornece bons elementos para análise da violência entre torcidas é The True Believer: Thoughts On The Nature Of Mass Movements, de Eric Hoffer.
Sobre o meu antigo time do coração? Comprovou mais uma vez ser a imagem pálida e triste daquilo que um dia foi: voltou para casa com mais um objetivo frustrado.
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