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Anotações sobre crise e democracia

Da coluna Caixa Zero, publicada nesta quarta-feira, na Gazeta do Povo:

1-A sorte do atual governo do PT é não ter na oposição o PT de 1989.

2 – Se o PT do Lula Paz e Amor causa todo esse ódio no poder, imagine o do Sapo Barbudo. O próprio Lula já deu a entender que teve mais sorte que juízo ao chegar à presidência só mais tarde. Num período em que pôde, entre outras coisas, ter o apoio do senador Fernando Collor.

3 – A atual oposição simula os mesmos gestos da oposição que o petismo fazia a FHC. Mas o tom incendiário contra os incendiários convertidos dá à cena um ar farsesco – e para muitos, que sabem a conta matemática de que menos com menos dá mais, facilita o discurso sobre o suposto reacionarismo da turma de Aécio.

4 – Michel Temer tem uma agenda e por isso seu apelo para que aparecesse alguém capaz de unir o país não pôde ser levado a sério: parecia autopropaganda. E, no atual cenário, qualquer autopropaganda do vice-presidente fica parecendo um apelo para que cortem de vez a cabeça da chefe.

5 – No entanto, Temer tinha razão – quase certamente pelo motivo errado. O que falta, entre tantas outras coisas, é algo que una os vários lados desse embrulho. Numa democracia imperfeita como a nossa, costuma-se pensar que a solução para isso é uma pessoa. Numa democracia perfeita (que não existe), poderia ser uma ideia. Poderia ser a própria ideia da democracia.

6 – O problema é que não somos democratas. A crise atual é só uma lupa que permite ver: há um pequeno ditador dentro de cada um de nós.

7- Sim, de você, inclusive. Deste que escreve também.

8 – Democracia é quando se consegue sufocar esse pequeno ditador e se aprende que a vida coletiva anda melhor quando ouvimos uns aos outros. Democracia “adolescente”, como se diz às vezes da nossa, é aquela em que se pensa que viver democraticamente é forçar os outros milhões de eleitores a aceitar que nossa definição de democracia deve prevalecer a todo custo.

9 – Pense: dos atores de Brasília, quais você viu dizendo que era preciso parar e ouvir o outro lado para ver se, por acaso, ele não tinha um pouco de razão. Assim, nem que fosse da boca para fora.

10 – Ok: Napoleão dizia que em política jamais se deve admitir fraqueza. Sob pena de parecer que o adversário sabe mais do que você. Mas às vezes não precisava nem se dizer nada – um gesto bastaria. E não um gesto como o da presidente Dilma, que só admitiu que talvez tenha cometido algum erro quando viu o laço da forca no pescoço.

11 – O governo não cede. A oposição é igualmente inflexível. E a população dá mostras de afeto ainda menor pela democracia. Nem se fale dos cartazes de SOS para as Forças Armadas. Basta menos. A guerra sem limites nas redes sociais é um exemplo. Quem diverge deve ser calado, senão expulso da cena. Quem age por reflexo e doutrina, por ideologia fixa mais do que tentando compreender o mundo à sua volta, está só alimentando o ditadorzinho interno.

12 – Três coisas para pensar. O publicitário Bill Bernbach, diz a lenda, carregava um cartão dizendo o seguinte: “Ele pode ter razão”. Em muitas reuniões, passava o cartão para seu funcionário. Em outras, para o cliente. Várias vezes ele foi pego lendo discretamente, debaixo da mesa, a mensagem do próprio cartãozinho.

13- O escritor norte-americano Jonathan Franzen fez a seguinte pergunta: “O que te faz ter tanta certeza de que você não é o mal?” Enquanto não nos fizermos essa pergunta, estamos fritos.

14 – O escritor italiano Umberto Eco disse que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. Todo mundo usa a frase. Nas redes sociais, inclusive. Não vi ninguém se questionando se um dos imbecis podia ser o próprio repetidor da frase. Seria bom se fizéssemos essa perguntinha também.

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