Distopias podem ser difíceis de digerir: eventos apocalípticos, mundos que mostram um futuro distante e aterrador para o planeta (e claro, para nós meros mortais que o habitamos). Mas como proceder quando a imaginação parece prestes a alcançar a realidade? Pois esse sentimento de identificação – dada as devidas proporções – vem acontecendo com o livro O conto da Aia, da canadense Margaret Atwood.
Desde a eleição de Donald Trump, o livro teve um aumento de vendas de 200% nos EUA, chegando às listas dos dez mais vendidos. Em junho, o livro, que estava esgotado, chega a ser vendido por R$ 185 em sebos e será relançado em junho pela Rocco.
O livro, escrito em 1984, previa um futuro obscuro para os Estados Unidos. Sofrendo com os males que causou a si mesmo, o país passa por uma radical queda na taxa de natalidade; uma das razões seriam as altas taxas de poluição. Na vida real, o mundo aguarda em suspense a provável retirada do Estados Unidos do Acordo de Paris, assinado em 2015 por diversos países, com o compromisso de reduzir emissões de carbono.
A falta de nascimentos acarreta uma série de medidas que tem a intenção de – usando o slogan de Trump, “Make America great again” (Fazer da América grandiosa de novo). Em meio à crise, um golpe teocrático e totalitário transforma os Estados Unidos em uma nova nação: Gilead. Esse é o ponto de virada na obra, com a imersão do país no conservadorismo extremo. As mulheres que ainda são férteis são forçadas a cumprir “seu destino biológico” tornando-se aias. Mulheres que devem servir única e exclusivamente para gerar os filhos dos novos comandantes da nação.
Obviamente nada é consentido, as mulheres são expulsas de seus empregos, proibidas de ter qualquer tipo de propriedade, perseguidas, presas, devidamente “reeducadas” e designadas para as casas de seus comandantes onde são estupradas mensalmente em um ritual horrendo, porém sancionado pelo governo. Nenhuma minoria é bem-vinda em Gilead: a comunidade LGBT é assassinada, sob a acusação de “traidores de gênero”, as mulheres que tentam fugir são mandadas para uma morte lenta limpando lixo tóxico.
Livro e série
O relançamento do livro O Conto da Aia e o lançamento de uma série adaptada para o canal de streaming Hulu reacenderam o debate em torno dos temas abordados na obra. Na série, Elisabeth Moss (a Peggy, de Mad Men), interpreta a personagem principal, June, rebatizada de Offred ao ser designada para a casa do Comandante Waterford. Acompanhamos a mulher em sua caminhada de horrores para tentar sobreviver e reencontrar a família.
Dizem que o diabo mora nos detalhes, e são eles que amplificam as pequenas crueldades do dia-a-dia de June. Yvonne Strahovski, que interpreta Serena Joy, a esposa de Waterford, consegue ser tão cruel quanto o marido e ao mesmo tempo provocar empatia, afinal de contas ela é também (só) mais uma mulher, que apesar de seu status não pode cumprir seu dever sagrado.
“Quando pensamos em um mundo melhor, não significava melhor para todos”, diz o comandante Waterford à Offred em uma cena da série. A obra ressoa em temas espinhosos da atualidade, como a recepção dos refugiados, ironicamente os americanos que conseguem fugir para o Canadá moram em “Little America”.
Em uma entrevista ao jornal britânico The Guardian, Atwood disse que a ideia do livro era falar sobre o risco de perdermos a democracia liberal. “Nós pensamos no progresso como sendo uma linha reta sempre indo adiante. Mas nunca foi assim. Você pode achar que está em uma democracia liberal mas daí – bang – você está na Alemanha de Hitler. Pode acontecer muito de repente.”
Não precisamos ir à América de Trump para entender o impacto do livro e sua importância. Em tempos onde existem manifestações pela volta da ditadura militar (e em que uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança mostra que a cada hora 503 mulheres sofrem algum tipo de violência), é sempre bom lembrar que essa é a nossa realidade e não uma distopia.
Leia mais:
No New York Times: A era de Trump e O Conto da Aia
No El País: Uma Profecia Maldita
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