Da coluna Caixa Zero:
Os sociólogos Pedro Bodê e Marcilene Garcia publicaram em 1999 um artigo afirmando que os negros de Curitiba eram “invisíveis”. Eles sempre estiveram por aqui. Segundo o IBGE, são 23% da população, incluída aí a região metropolitana. Tiveram participação inegável na construção da cidade desde o seu começo (embora isso já tenha sido ocultado em outras épocas). Mesmo assim, sua presença na Curitiba oficial sempre foi pequena.
Em seu artigo, Bodê e Marcilene lembravam um fato que a outros olhos poderia passar despercebido: Curitiba tem praça da Ucrânia, da França, da Espanha e do Japão. Tem Bosque de Portugal e homenagem ao Papa polonês. Mas quem aí é capaz de dizer quais as homenagens que os dois acharam aos negros 11 anos atrás? Apenas uma modesta placa na Praça Santos Andrade e uma outra praça, muito menos conhecida, no Pinheirinho – a Zumbi dos Palmares.
Como pode ter acontecido isso? Como uma multidão que representa um quarto de todos os eleitores pode ter passado debaixo do radar de tantos prefeitos, de tantos vereadores? A resposta poderia estar no gosto que temos por declarar que Curitiba é uma capital europeia – uma exceção ao Brasil mulato de outras regiões.
O fato, porém, é que isso está mudando. A distante Zumbi dos Palmares, por exemplo, acaba de ganhar uma revitalização. A inauguração da nova praça, com direito a homenagem aos 54 países africanos, teve direito a pompa e circunstância. O prefeito Luciano Ducci, que terminou a obra iniciada por Beto Richa, fez questão de dizer o quanto o local era importante e de homenagear a comunidade afro da cidade. Reflexos da Copa? Parece ser mais do que isso.
Vejamos outro fato: há duas semanas, foi protocolada na Câmara de Curitiba uma proposta reservando 10%, no mínimo, de todas as vagas de concurso público no município para negros e índios. O projeto, do vereador Francisco Garcez, pode trazer para a capital uma idéia que já foi adotada pelo estado: o Paraná foi pioneiro no país em adotar cotas em concursos públicos.
Tudo indica que prefeitos e vereadores estão se importando mais com o lado africano da capital europeia. Por um lado, pode parecer natural: um eleitorado deste tamanho despertaria a cobiça de qualquer político em busca de novos mandatos. Mas não pode ser simplesmente natural: se fosse, teria acontecido antes. Qual a diferença?
O que mudou foi a força do movimento negro, diz Marcilene. Faz sentido. Antes de os políticos descobrirem a força do eleitor negro, foram os próprios negros que descobriram a sua força. Criaram cursinhos pré-vestibulares para afrodescendentes. Passaram a pesquisar suas origens e tradições, como no Instituto de Pesquisa da Afrodescendência. Lutaram pelas cotas na UFPR.
Não foram os governantes sozinhos que descobriram um novo eleitorado. O movimento negro é que criou um grupo que se reconhece como força nova. A ideia de pôr cotas na prefeitura, a reforma na praça, o projeto de mapear quilombos no interior do estado e tudo o mais são uma tentativa de correr atrás desse “novo público”.
Nos Estados Unidos, por exemplo, onde os negros se veem como um grupo de pressão há muito tempo, as eleições são marcadas por essa discussão. Muitas vezes são eles que decidem as eleições em favor dos Democratas. E, segundo Paul Krugman, o genial Nobel norte-americano de Economia, foi o ódio aos negros que manteve o Partido Republicano no poder durante muito tempo.
Por aqui, as discussões sempre foram incipientes, senão nulas. Ainda hoje, há quem tente jogar o assunto para debaixo do tapete, dizendo que o Brasil não é racista, e que nem existe um problema a ser resolvido. O movimento negro mostrou que não é bem assim.
O que ficou claro é que o eleitor, a partir de agora, pode ser contra as cotas ou a favor delas. Pode gostar do fato de a discussão sobre raça ter se tornado um fator importante na cidade ou odiar isso. O que não há mais como fazer é negar a existência de 23% da população. Capital europeia? Pode ser. Mas com um pé na África, com certeza.
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