Continuando a série sobre a ideologia nas universidades brasileiras, o blog entrevistou mais um professor. Desta vez é o professor Luiz Eva, da Filosofia da UFPR. Veja o que ele tem a dizer:
1- Há um predomínio de intelectuais de esquerda nas universidades públicas brasileiras? Por quê?
Só posso me pronunciar aqui acerca de minhas impressões cotidianas do setor de humanas da nossa UFPR e das demais universidades que conheço. Infelizmente o contato entre áreas diferentes da universidade, em nível pessoal ou mesmo científico, é quase inexistente. Concordo basicamente com o que disse o meu colega Adriano Codato, da Ciência Política: entre nós, é visível uma certa predominância de pessoas com uma tendência “à esquerda”, mas ela não corresponde à imagem que pode eventualmente ser transmitida à sociedade pelos movimentos organizados de esquerda que se fazem representar na universidade pública. Não me parece nenhuma novidade que, talvez mesmo em um sentido mais amplo, a figura do intelectual engajado tenha perdido espaço e o engajamento, não sei se dos intelectuais, mas dos pesquisadores em ciências humanas na universidade pública seja, de modo geral, pouco ou nada relevante para a aferição de sua qualidade ou do seu prestígio. Acho que, cada vez mais, a questão central, ao menos na minha área (que é a Filosofia) tende a ser a de saber se o pesquisador domina ou não, ou em que grau, os critérios de qualidade para tratar do objeto de que trata, estude ele um pensador de esquerda ou não.
A inclinação à esquerda a que eu me referi talvez possa ser explicada a partir de causas (a história recente, a maneira como professores e alunos se posicionam diante dela, a atitude com que as vozes discordantes são ou não capazes de articular o que pensam) que escapam à minha competência. Mas penso que ela reflete, basicamente, uma posição de simpatia acerca da necessidade de transformações reais na sociedade civil capazes de produzir mais justiça e igualdades de condições (com a qual, aliás, me alinho). Por outro lado, ainda que essa inclinação pode por vezes se converter em uma espécie de senso comum que ocupa o lugar de um aprofundamento no debate, existe, de todo modo, um nível de liberdade intelectual no interior da universidade graças ao qual é perfeitamente possível, ao menos em tese, que esse debate se aprofunde. O problema maior parece-me dizer respeito à formação básica dos alunos que chegam à universidade e, consequentemente, à sua capacidade de usar as ferramentas pertinentes para um debate intelectual relevante.
2- A direita acusa a esquerda de “aparelhar” as universidades. Isso seria possível? Como?
O concurso público para professores tem sido uma instituição acadêmica cada vez mais respeitada ao longo das últimas décadas. Cada vez mais um número expressivo de professores defende e promove a realização de concursos que busquem o melhor candidato disponível para exercer uma função intelectual específica, independentemente de suas filiações partidárias. Ademais, realmente existe liberdade de cátedra na universidade pública. Esse é o nosso universo e, nesse sentido, não me parece possível falar em “aparelhamento”: o que há, em vez disso, se não estou enganado, é a presença cada vez mais clara de um “ethos” intelectual que compreende o respeito a valores fundamentais a serem reconhecidos e respeitados como condições da qualidade da pesquisa acadêmica, no qual se incluem a isenção e a busca da concorrência pública em nome do aprimoramento dessa qualidade, independentemente de posições político-ideológicas.
Mas a vida intelectual na universidade tem outros aspectos. Existem grupos intelectuais que se pretendem representações da “esquerda” no interior da universidade e que buscam essencialmente preservar estruturas de poder, isto é, grupos que ainda atuam segundo a lógica da estrutura de cátedras, agregados em torno de um líder feudal, certamente brilhante, que buscam garantir hegemonia pela imposição de um determinado estilo teórico. Naturalmente, é de se esperar um conflito, em algum nível, entre esse modo de conceber a atividade intelectual e o tipo de atitude a que me referi. De todo modo, a relação com a esquerda num caso como este me pareceria ser casual, posto que tal atitude não decorre propriamente dessa orientação política e se faz presente de outras maneiras e por parte de grupos diversos.
Além disso, os sindicatos usualmente pretendem mobilizar um ideário de esquerda pela defesa de certos “direitos fundamentais” cujo beneficiário nem sempre é necessariamente a Universidade, ao menos compreendida como instituição pública voltada ao aprimoramento de seus critérios de eficiência e qualidade. Mas esse discurso se alimenta principalmente da omissão de pesquisadores que optam, compreensivelmente, por permanecer em seus laboratórios a tentar fazer suas posições terem alguma repercussão nas assembleias. Também aqui há um conflito latente (que geralmente eclode nos momentos finais da greve) entre as posições mais tradicionais do sindicato e aqueles que, em defesa de certos valores acadêmicos, acabam por ser tachados de “direitistas”.
Neste sentido específico, ainda que talvez a universidade tenha sido preservada por essa “esquerda” de reformas que poderiam ter sido nocivas, a sua atuação é hoje essencialmente conservadora e seu efeito, a meu ver, é negativo no que tange às eventuais transformações que se fariam necessárias para conferir maior excelência à nossa universidade pública, ao menos a partir de uma perspectiva de excelência menos provinciana.
3- Questões de vestibular, Enade e Enem, segundo parte da direita, seriam usadas como instrumento de doutrinação e de seleção de alunos que corroboram teses do atual governo. Isso faz sentido?
O vestibular normalmente é elaborado por uma comissão local de cada universidade, e usualmente os próprios departamentos colaboram com a formulação das questões. Ao menos na nossa área, essa suspeita é absurda. Quanto ao Enem e o Enade, tenho menos contato com o processo de elaboração, mas tendo a pensar, como o Adriano Codato, que as questões refletem principalmente o “cânone de pedagogos”. Isso não significa que a prova não possa ser aperfeiçoada, ou mesmo, especialmente, esse próprio cânone. Mas veja-se que neste mesmo caldo de críticas os próprios alunos do curso de Filosofia (como de outros cursos) embarcaram no boicote das provas, muitos deles decerto por acharem que a ideia da avaliação não seria suficientemente à esquerda. Acho que esse tumulto em torno dos exames é lamentável, pois eles são o resultado de um esforço de racionalização extremamente importante no processo de avaliação do ensino, sem o qual pouco se pode esperar em termos de aprimoramento da qualidade.
4- Por que a direita não tem mais representantes nos cursos de humanas? Faltam intelectuais à direita? Por quê?
Eu diria antes que faltam intelectuais, sem mais. Mas para responder à sua pergunta eu diria que é preciso olhar para a história recente do país. Durante o regime militar, a liberdade crítica esteve seriamente limitada, não apenas mas especialmente nas Universidades. Lembremos de episódios como os narrados pelo falecido geógrafo Aziz Ab’Saber, que repreendeu publicamente, durante uma aula, um agente do regime militar que frequentava seu curso e havia sequestrado uma colega de classe para torturá-la. Parece-me moralmente compreensível, num clima desses, que entre os interessados pela defesa de algum espírito crítico e da liberdade intelectual se desenvolvesse ojeriza pela “direita” e pelo que ela representa. Se assim é, boa parte da responsabilidade se deve à nossa direita.
Mas como você sabe esses conceitos são elásticos. Por vezes, partidários da esquerda imbuídos da crença de que todo e qualquer evento tem uma significação intrínseca no sentido de avançar ou de reter a realização do ideal pensam que toda reflexão que não se alinha com um pensamento da esquerda é necessariamente de “direita”. Do ponto de vista dessas pessoas decerto que a universidade está hoje dominada pela direita, na medida mesma em que nem a investigação nem o objeto de estudo estão diretamente atrelados a esse ideal.
5- Há risco de “doutrinação ideológica” dos alunos nas universidades?
Claro que sim, sempre há, mas não apenas na universidade, nem especialmente na universidade. Mas, novamente, é delírio achar que haveria um risco decorrente de um movimento orquestrado pela esquerda para esse fim nas salas de aula da universidade pública. Acho que temos um nível de liberdade acadêmica na vida universitária que favorece, ao menos potencialmente, o desenvolvimento de espírito crítico – compreendido aqui como a capacidade de distanciamento necessária para que se possam considerar adequadamente razões favoráveis e contrárias – e penso que muitos dos meus colegas atuam nesse sentindo. Muitos alunos, é verdade, vão à universidade (como a outros locais) em busca de doutrinação e a acabam encontrando, posto que muitos professores também se sentem bem na posição de pastores da verdade, mas isso novamente não é privilégio da esquerda nem da direita. Em síntese, acho que existe espaço suficiente para convidar os alunos a refletirem sobre essa situação e mesmo perceberem que as seduções doutrinárias de diferentes tipos poderia ser uma ocasião para aguçar o espírito crítico. O que nem sempre há é disposição de aceitar esse convite, novamente em parte, acho eu, por falta de um contato prévio mais adequado com o universo da reflexão intelectual.