Todo mundo tem um ditadorzinho dentro de si. Há quem consiga domá-lo melhor, há quem seja dominado por ele, feliz da vida por ceder ao impulso. Esse ditador, invariavelmente, quer que você obrigue os outros a se comportar de uma maneira que te agrade.
Há quem queira que os outros ouçam um tipo de música, vistam um estilo de roupas, torçam para um time. Esses são males menores. Os impulsos mais perversos são os que dizem como as pessoas devem se comportar em relação à política, à sexualidade, à religião.
Ao longo dos séculos, sempre quem chegou ao poder deu um jeito de fazer com que os súditos se comportassem dentro de certos limites. Pense na Inquisição. Pense no que sofreram os primeiros reformados na mão dos católicos – e no que sofreram os católicos na mão dos primeiros reformados.
Com o tempo se chegou a uma ideia genial, chamada liberalismo político. Um dos caras que defendeu isso no século 19 se chamava John Stuart Mill. Num livrinho curto e necessário, “Sobre a Liberdade”, ele mostrava o que obrigar todos a seguirem certos comportamentos causou ao longo dos tempos: levou à morte de Sócrates; levou à morte do Cristo.
A ideia passou a ser de que se devia deixar cada um levar a vida que quisesse, desde que não interferisse na vida dos demais. John Rawls, talvez o sujeito mais importante na construção desse “liberalismo político”, costumava dizer que é tão importante que cada um decida o que fazer que o Estado não deve interferir nem se o sujeito tomar uma decisão estúpida, como passar a vida contando folhas de grama.
A vida é dele. Deixe ele fazer o que quiser. O que é bem diferente, claro, de dizer que tudo vale – ou que tudo tem o mesmo valor.
Você pode muito bem achar que há coisas melhor para fazer com a vida. Pode defender isso. O que não pode é obrigar a pessoa a desistir do plano de vida dela só porque você e as pessoas de que você gosta acham aquilo uma bobagem.
Claro que o exemplo da grama é um caso extremo. Vale muito mais para outras coisas. Deixando claro: se a pessoa quer ter um caso homossexual, isso diz respeito apenas a ela e seu amante. Se quer praticar uma religião que não é a da maioria (ou que seja só dela) ninguém tem absolutamente nada a ver com isso. Se quer ser ateu? No que isso afeta a vida do vizinho?
Esse liberalismo ganhou espaço. Claro que é contestável filosoficamente, e vem mesmo sendo contestado. Mas trouxe avanços fenomenais, principalmente a garantia de que você tem o direito de ser diferente sem ser oprimido por isso.
Mas o que isso tem a ver com o “politicamente correto”? Tudo.
A expressão era quase desconhecida até o fim dos anos 90. Veio à tona num debate sobre um livro do conservador Allan Bloom, em que ele criticava as universidades americanas.
De início, a preocupação do politicamente correto era principalmente com o uso de expressões que pudessem ofender as pessoas em função de características físicas dela. Quem viveu os anos 90 lembra que se começou a pegar no pé com expressões como “viado”, “preto” ou “balofo”.
Em algum momento, claro, houve exageros que tendiam ao cômico: não se poderia, diziam, chamar alguém de baixinho, só de “horizontalmente prejudicado”. Como tudo na vida, dizia dona Nenê, o que passa de ordem é desordem.
Mas havia um princípio interessante por trás daquilo: tentar deixar de lado expressões que serviam apenas para expressar preconceito e que certamente tornavam a vida de algumas pessoas um verdadeiro inferno.
Com o tempo, a ideia foi se expandindo e passou a simbolizar uma preocupação mais ampla, justamente ligada a esse liberalismo. Não era só evitar expressões: era evitar julgar nosso estilo de vida superior simplesmente porque era nosso.
Claro que somos ensinados desde cedo a achar que nosso modo de vida é o melhor. Nossos pais dizem isso. Nossa escola. A tevê. Os vizinhos. Ou às vezes nos rebelamos e criamos um estilo de vida que se contrapõe a tudo isso. E nesse caso nos aferramos ainda mais àquilo que defendemos.
Mas o ponto é que nosso ditadorzinho vai afiando as unhas para dizer que aquilo é intrinsecamente melhor – e não apenas uma escolha entre várias.
Ser hétero é melhor do que ser gay. (Pode-se alegar algum princípio biológico. Ou simplesmente citar a Bíblia.)
Ser de uma religião é melhor do que ser ateu.
Ser bela, recatada e do lar é melhor do que ser feminista.
Achar que um modo de vida é melhor já é passível de discussão. Forçar que os outros concordem é uma violência. Ainda mais se as práticas do outro não afetam mais ninguém.
O politicamente correto passou a defender que, sim, precisamos respeitar o estilo de vida alheio. Por mais que nosso ditadorzinho chegue a ficar roxo de raiva.
Aí começou a ranzinzice: o mundo está ficando chato! Não se pode dizer mais nada! A geração de vocês é cheia de mimimis, vocês são uns mimados que não aceitam críticas!
Claro: o ditador quer poder se dizer superior, quer poder enquadrar a feminista que se recusa a seguir o padrão, quer dizer que os gays não podem querer se igualar aos héteros em direito.
E aqui vem uma distinção importante. Uma mulher que queira o direito de definir o próprio plano de vida (e, não se deixe iludir, esse é o cerne do feminismo) não está afetando a vida do vizinho.
O vizinho que diz que ela não pode fazer isso está afetando a vida dela.
O gay que quer exercer sua homossexualidade não afeta a tua vida. Mas se você, por algum motivo bizarro, achar que deve detê-lo, está se metendo onde não foi chamado.
O politicamente correto é a defesa de que cada um tenha o direito de se autodeterminar sem ter de se dobrar aos xingamentos, às ofensas, aos ditadores alheios.
E, sim, se o feminismo ultrapassar essa linha, não terá o respaldo do liberalismo.
Mas a negação do politicamente correto (não por acaso um alvo preferencial de Trump e seus protoditadores) é a negação dessa possibilidade de autodeterminação.
Não são as minorias que estão de mimimi. A raiva contra o politicamente correto é o ódio que o ditador dentro de você sente por estar sendo condenado ao silêncio.
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