Da coluna Caixa Zero, publicada nesta quarta-feira, na Gazeta do Povo:
Houve um tempo em que era moda escrever para um suposto “arqueólogo do futuro”, alguém que imaginamos que nos lerá daqui a cinquenta, cem ou duzentos anos. Pode bem ser que alguém, daqui há muito tempo, vá querer saber algo sobre Curitiba na época em que recebeu a sua segunda Copa do Mundo. Como imagino que, se alguém for fazer isso, vai procurar justamente os jornais deste período, facilito a vida do tal arqueólogo ao escrever um breve resumo sobre quem somos nós hoje. Pelo menos, do ponto de vista político.
1 – Curitiba é uma cidade de quase dois milhões de habitantes. Muita gente por aqui ainda acredita na propaganda de que somos diferentes do resto do Brasil – supostamente em função de sermos mais “europeus”, com grande número de imigrantes. Dia desses, já durante a Copa, houve toda uma alegria ufanista porque um jornalista espanhol recém-chegado à cidade teria dito exatamente isso: nem parecia estar no Brasil. Entendeu-se que ele quis dizer que parecemos mais remediados que nossos irmãos. O ufanismo local vibrou.
2 – Apesar disso, a cidade tem vários problemas sociais. Só para dar um exemplo: dois terços do lixo reciclável da cidade são recolhidos diariamente por homens e mulheres que, sem ter opção melhor de emprego e de vida, puxam caçambas de madeira improvisadas às costas. Vivem do lixo que recolhem. Levam a locais como a Vila Torres, uma antiga ocupação irregular (costumava-se usar o termo “favela”, mas hoje isso não é politicamente correto) quase no centro da cidade.
3 – Em função da pobreza e de tantos problemas sociais, muita gente questionou se deveríamos gastar tanto dinheiro na Copa. Só o estádio (particular) saiu por mais de R$ 200 milhões. Daria para comprar carrinhos elétricos para o pessoal que carrega nosso lixo, por exemplo. Mas preferiu-se a Copa. A atual gestão da prefeitura (que se elegeu dizendo ser de oposição) afirma ter herdado dívidas de meio bilhão de reais com a Copa. Mas resolveu tocar tudo adiante.
4 – O prefeito resolveu inclusive continuar o inacreditável viaduto estaiado na Avenida das Torres: uma obra de quase R$ 100 milhões paga pelo governo federal sob o pretexto de embelezar a cidade para a Copa. Beleza é questão de gosto, claro. Talvez o arqueólogo do futuro conheça a obra como um padrão de uma nova arquitetura mundial. Mas a obra era desnecessária, já que podia ser feita no formato normal (não passa água embaixo, portanto não precisava ser feita como ponte). E muita gente acha que não ficou lá o cartão-postal que foi prometido. Os carrinheiros que andam pela avenida catando recicláveis dificilmente verão aquilo como um benefício estético para seus dias.
5 – Todo mundo também aproveitou para tirar uma lasquinha do dinheiro público. Mesmo quem obviamente não tinha nada a ver com a Copa deu um jeitinho de dizer que era preciso agradar turistas, ou algo do gênero, e conseguiu um milhãozinho aqui e outro ali para embelezar praças em bairros nobres da cidade.
6 – Por tudo isso, alguns bárbaros acharam que era o caso de sair quebrando coisas pela rua achando que esse era um modo válido de protesto. Alguns foram presos, com justiça.
Se fizemos bem em aceitar a Copa apesar de tudo isso? Bom, se alguém realmente estiver lendo isso depois de várias décadas provavelmente terá uma resposta melhor.
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