Da coluna Caixa Zero, publicada nesta quarta, na Gazeta do Povo:
Dizem que até um relógio quebrado está certo duas vezes por dia. Faz sentido. O deputado Marco Feliciano, até ele, também pode estar certo às vezes. Duas vezes por dia, no caso dele, seria demais. Mas às vezes acontece. Como no fim de semana passado, quando durante uma manifestação de cristãos ele apareceu com uma camiseta onde se lia: “Eu represento vocês”.
Foi uma resposta à altura para um comentário um tanto curioso que tem aparecido com frequência nas redes sociais. Vê-se muita gente dizendo que “Feliciano não me representa”. Mas é claro que não. O deputado está lá para representar alguns grupos de pessoas, não todos. Assim, um evangélico teria de andar com um cartaz dizendo que Jean Wyllys não o representa, e assim por diante.
Numa democracia, cada grupo, cada eleitor, tem o direito de escolher os seus representantes no Parlamento. Você não pode querer que todos os deputados e todos os senadores representem você. Seria absurdo. Feliciano está lá porque representa centenas de milhares de evangélicos. E, quer saber? Possivelmente, do ponto de vista deles, representa bem. Tem mais: se o deputado atuasse diferente, estaria de certo modo traindo seu eleitorado.
No fundo, talvez os demais eleitores tenham algo a aprender com o caso Feliciano. Afinal de contas, por mais que você deteste todos os posicionamentos adotados pela bancada religiosa no Congresso Nacional, talvez seja hora de admitir: ao contrário dos outros eleitores, os evangélicos realmente conseguiram um grupo consistente e que representa seus interesses.
Um dos grandes dramas que parece estar por trás das manifestações de junho, do descontentamento da população em geral, é o fato de que as pessoas não se sentem representadas em Brasília, nem no poder local. Acham que os políticos trabalham apenas pelos próprios interesses. E ficaram espantadas por saber que, ao ir às ruas e pressionar, os políticos passaram a agir, pelo menos temporariamente, de modo um pouco diferente.
As pessoas, e não só os políticos profissionais, costumam se comportar com base em incentivos e punições. Sem pressão popular, o político depois de eleito tem todo o incentivo para se locupletar, e nenhuma punição caso vote de acordo com interesses escusos. Se o eleitor vai à rua, ainda que de maneira pouco organizada, e diz que não aguenta mais, o político é obrigado a dar um passo atrás até que a situação se acalme.
Os evangélicos não dariam uma segunda chance a alguém que votasse a favor do aborto ou do casamento gay. Muitos outros eleitores não prestam atenção àquilo que se faz com o mandato concedido por eles. Ficam quatro anos sem fiscalizar e depois, sem saber o que se passou, votam em alguém que não fez nada do que havia dito que faria. Não há identidade entre as partes e nem há um compromisso seguido e fiscalizado. Eis o caminho para uma crise de representatividade.
Ao invés de lamentar o crescimento da bancada evangélica, os eleitores que pensam diferente de Feliciano deveriam atuar para que seus próprios representantes fizessem pressão em sentido contrário. Foi o que aconteceu dessa vez, e o bizarro projeto da cura gay foi arquivado. É assim que se joga o jogo. Mas política acontece um dia depois do outro. E não só de quatro em quatro anos. Será que a lição foi aprendida?
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