Da coluna Caixa Zero, publicada nesta quarta-feira, na Gazeta do Povo:
Num anfiteatro de Harvard, o professor tenta convencer os alunos de que eles podem não ter chegado até ali por méritos próprios. Embora eles resistam à ideia, Michael Sandel, o popular professor de Filosofia afirma que a origem deles, a renda de sua família e outros fatores que fugiam completamente ao controle dos estudantes poderiam ter sido importantes para que eles entrassem em uma universidade de primeiro time. A turma, porém, parece se render quando o professor, ao fim da aula, faz a seguinte pergunta: quantos ali eram primogênitos? Quase todos levantam a mão.
A discussão sobre mérito não é meramente filosófica. Tem grandes implicações políticas. Quantas vezes você já não ouviu a história de que quem se empenha, se dedica e faz tudo direitinho consegue o que quer? E que, por consequência, quem não conseguiu “chegar lá” é porque não se empenhou o suficiente? Essa é a história que ouvimos desde que nascemos. E está por trás de muito do que pensamos sobre a sociedade. Quem acredita que “querer é poder” pode ser tentado a achar que os beneficiários de programas sociais, por exemplo, só não saem dessa condição porque não querem.
A situação é bem mais complexa. E claro que ser o primogênito (sabe-se lá por quais motivos) é apenas um dos fatores que pode beneficiar o desempenho do indivíduo. A classe social da família também tem peso – e grande. Um estudo apresentado neste mês em Boston por dois pesquisadores em um evento do Fed (o Banco Central americano) mostra o seguinte, segundo a tradução feita pelo repórter do Washington Post: “Gente pobre que faz tudo certo não se sai melhor do que gente rica que faz tudo errado”.
Os pesquisadores Richard Reeves e Isabel Sawhill acompanharam a evolução financeira de meninos e meninas pobres que concluíram o ensino superior. E compararam com o resultado com o de alunos ricos que desistiram da escola no Ensino Médio. Descobriram que nos dois grupos a proporção de pessoas que chegam aos 40 anos ainda na pobreza (dentre os 20% mais pobres dos Estados Unidos) é a mesma: 16%. E a proporção de pobres que continuam pobres (16%) é muito parecida com a de ricos que continuam ricos (14%).
A pergunta que o analista do Washington Post faz é: é disso que falam quando falam em meritocracia? A pergunta é tremendamente importante, principalmente quando há uma discussão vigente sobre como o Estado deveria se posicionar diante dos mais pobres. É preciso corrigir as desigualdades de maneira mais enérgica ou é preciso deixar o Estado de fora da vida das pessoas, deixando que elas sejam recompensadas pelos próprios esforços. O estudo parece dizer que é necessário fazer algo: não freando os que têm mais, mas impulsionando os que partem mais de trás na corrida, para que eles já não comecem em desvantagem.
Mesmo porque, a diferença começa já nos primeiros anos. Outro estudo norte-americano mostra que os pais de famílias ricas passam três horas por semana a mais falando com seus filhos pequenos, o que faz com que eles se desenvolvam mais rápido. E passam uma quantidade muito maior em atividades “enriquecedoras” com seus filhos (aulas de música, de idiomas etc), o que aumenta ainda mais o desenvolvimento (e a vantagem) de suas crianças.
Se queremos que todos tenham isso, parece que não é possível deixar apenas que os mais pobres se esforcem por conta própria. É preciso fazer mais, para que não condenemos desde cedo algumas crianças a terem um destino pior do que o de outras, mesmo antes de elas terem qualquer possibilidade de mostrar mérito, de se esforçarem, de irem adiante com as próprias pernas.
PS: Para quem tiver interesse, a aula de Michael Sandel está disponível em inglês aqui. O trecho citado ocorre lá pelo minuto 22.
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