Tenho precisado começar estes posts sempre com uma nota de esclarecimento, o que mostra como o assunto é sensível para muita gente. Quero explicar o seguinte: assim como quase todo mundo, acredito que os animais têm direitos. Que não devemos maltratá-los. Que devemos evitar o sofrimento deles. E que em muitos aspectos devemos a eles o mesmo tratamento que damos aos humanos.
Mas acredito que é inegável o fato de haver algumas situações em que precisamos tomar escolhas e nos quais precisamos estabelecer prioridades. Situações em que os direitos dos animais e os direitos dos humanos entram em conflito. Ontem coloquei aqui três perguntas que pretendiam mostrar isso. Há situações em que devemos agir e em que parece haver a necessidade de decidir se os humanos têm ou não uma preferência sobre os animais em geral.
Para exemplificar ainda mais: recentemente, o deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ) propôs formalmente a criação de um SUS Animal. O projeto retira verbas da saúde pública (da saúde humana para dar aos animais. É um dos casos em que precisamos decidir. Isso é justo? Tratar todos os animais como iguais poderia exigir que retirássemos quanto do SUS? Vivemos num mundo de escassez, e é preciso tomar decisões. O que estou propondo nesses textos é: em quais casos parece haver motivo para darmos prioridade aos humanos.
Propus ontem três perguntas. A partir de hoje, pretendo analisar cada uma delas e dizer o porquê me parece que, nessas situações (e talvez só nelas) deva haver uma prioridade para os humanos. Houve várias respostas e contestações ao post de ontem. Na maioria dos casos, porém, não se contestava o fato de que, naqueles exemplos a prioridade deveria ser dos humanos. Em todo caso, o debate está aberto. Não estou, afinal, querendo impor nada, mas pensar junto com vocês. É assim que as coisas evoluem.
A primeira pergunta que sugeri ontem era:
Imagine uma situação em que um homem, que não tenha provocado o animal, seja atacado na rua por um cachorro. Suponha que você tenha condições de intervir na situação, e que seja a única pessoa por perto a poder fazer isso. Você tem um instrumento (um pedaço de pau, por exemplo), e pode atuar ajudando um dos dois lados. Causará danos ao outro. Qual seria a atitude moralmente correta? Ajudar o homem é moralmente equivalente a ajudar o animal? Ou o homem tem certa prioridade?
A resposta intuitiva é de que devemos ajudar o humano. E apesar de ter havido bastante contestação sobre os posts, fio raro ver alguém negar isso. Vou tentar argumentar em favor dessa resposta intuitiva evitando ao máximo usar argumentos que impliquem qualquer ideia de superioridade humana, já que parece que isso mais causa controvérsia do que ajuda a achar um consenso possível.
Vou chamar essa primeira prioridade de prioridade de defesa. Sempre que nossa espécie, ou um representante dela, estiver em situação de risco e esse risco for causado por outra espécie, todo o resto sendo igual, e tivermos de optar qual dos dois iremos defender, acredito que a prioridade seja dos humanos.
Começando pela parte de baixo da cadeia. Ninguém questiona, acho, que se alguém for infectado por um vírus ou uma bactéria, temos o direito de combater a infecção. Dificilmente, nesse caso, alguém pedirá que se respeitem os direitos do invasor. Ninguém defenderá o direito à vida do invasor em detrimento do humano. Há um livro de Philip Roth, Pastoral Americana, em que ele conta a história de uma menina que, por aderir a uma seita que pregava a total não violência em relação a qualquer ser vivo, se recusava inclusive a fazer sua higiene, para não matar bichinhos. Óbvio que não acaba bem.
Toda espécie tem o direito de tentar prosperar. E toda espécie faz isso sobre a terra. Desde as plantas, passando por micróbios até animais vertebrados. Nós também temos esse direito. Não precisamos negar a nós mesmos o que nenhum ser vivo nega a si e a seus semelhantes. Se atacados por um vírus, podemos nos defender. O mesmo se formos atacados por qualquer outro animal.
Veja bem: não se trata de um direito de aniquilamento ou de maus tratos. O direito é de defesa. Ninguém está dizendo que um homem tem o direito, só por ser homem, de sair jogando pedras nos bichos ou lhes dando pauladas sem razão.
O direito à defesa explica por que podemos tomar antibióticos, por que podemos usar inseticidas, por que podemos combater infestações de ratos ou pombos (se elas causarem riscos reais à saúde humana), ou por que podemos sacrificar animais que possam transmitir doenças a humanos.
Só duas coisas poderiam, me parece, negar esse direito. Uma é a conclusão de que o homem, por ser racional, deveria escapar à regra da natureza em geral. Outra é a conclusão de que somos inferiores aos outros seres e não merecemos o mesmo que eles. Nos dois casos, me parece que estamos praticando uma espécie de suicídio coletivo. Mas, claro, posso estar errado.