Recentemente, Gabriel Arruda Castro, editor de Educação aqui nesta Gazeta, reabriu uma velha discussão sobre a pertinência de alguns temas de estudo na academia. A polêmica começou com uma lista de pesquisas meramente classificadas pelo autor como “incomuns” e que foram pagas com dinheiro público. Não havia qualquer argumentação: parecia que a estranheza dos temas falava por si e que não haveria, talvez, alguém capaz de não se espantar com tal rol de mestrados e doutorados “bizarros”.
O que parece unir as pesquisas é a escolha de temas contemporâneos e, em geral, ligados ou à periferia (Mr. Castra, o sertanejo universitário, pagode, estética negra); à cultura pop e jovem (Felipe Neto, aplicativos de pegação, Big Brother); ou à sexualidade. Todos temas que parecem, ao leigo, estranhos à academia, que muita gente ainda imagina ter como ideal a torre de marfim onde se estudam os clássicos da antiguidade: a universidade seria o lugar de se estudar, preferencialmente, o pensamento do homem europeu, branco e morto.
Ou, segundo outra visão, que parece ser a que mais se aproxima da visão do repórter, o lugar onde deveriam se estudar coisas “úteis” – ou seja, as matemáticas e as ciências exatas, as engenharias e tudo aquilo que pode levar a avanços práticos, desde a ida à Lua até a construção de procedimentos industriais que criem emprego, renda etc.
Claro, que não se deixe ninguém iludir. Tudo isso faz mesmo parte do papel da universidade. Produzir conhecimento sobre Sexto Empírico ou Francis Bacon, sobre Shakespeare e os pré-rafaelitas; desenvolver metodologias industriais e procedimentos matemáticos que facilitem a vida de todos; tudo isso é parte desse mundo fascinante da academia. Porque a academia, de fato, tem um único propósito: conhecer o mundo em que vivemos.
O que é um mestrado?
E é para formar pessoas capazes de investigar este mundo que existe a pós-graduação (os mestrados e doutorados); e é por entender que esse tipo de conhecimento é fundamental para o desenvolvimento de uma nação culta, capaz de dialogar em uma era de grande produção científica e produtora de autocrítica que todos os governos de grandes nações investem em pesquisa universitária. De todos os tipos.
Questionado por gente que pensa assim, Gabriel escreveu um texto publicado nesta quinta em que tentou, finalmente, articular uma defesa do porquê de, na sua visão, ser necessária uma reforma do ensino superior brasileiro para que se deixe de fazer estudos “alternativos”.
A grande premissa equivocada que leva o texto a uma série de outros erros conceituais é a de que a universidade, na pós-graduação, tem como missão produzir pesquisas; na verdade, sua missão é produzir pesquisadores. E, na verdade, embora a diferença pode parecer sutil, ela é praticamente o centro da questão.
O que se pretende de um aluno de mestrado ou de doutorado, seja em que área for, é que ele aprenda a pesquisar o mundo usando as ferramentas de um campo de conhecimento. Se for um candidato a mestre nas engenharias, deve aprender a desenvolver um trabalho sólido e consistente nessa área; se for um interessado no mestrado de Direito, deve saber debater argumentos jurídicos e entender como se constroem os procedimentos legais.
Se for estudar as Ciências Sociais (que não por acaso estão no centro de debate, como sempre acontece), o que se espera é que o aluno compreenda como se utilizam as ferramentas de estudo de uma sociedade. Que compreenda como se faz uma pesquisa, como se levantam os dados, como se escolhe um universo delimitado; que aprenda a fazer a tabulação desses dados e a usar softwares especializados; que compreenda as discussões metodológicas e saiba como aplica-las; e que aprenda a comparar seu trabalho com o corpo já existente de pesquisas para criticar o que já há e fazer a autocrítica de sua pesquisa.
É depois de sair da academia que se espera que o aluno continue pesquisando a partir do ferramental adquirido. E que possa passar adiante esse conhecimento ao ensinar outras pessoas.
Catra ou o que for
Sendo assim, o tema de um mestrado é absolutamente variável. Tanto faz se o sujeito quiser estudar a formação das elites ou das favelas; se voltar seu olhar para o recrutamento de membros de orquestras sinfônicas ou para o baile funk; se quer estudar uma sala de aula universitária ou as relações de Mr. Catra com sua comunidade e seus fãs.
Embora aparentemente a pesquisadora de Catra tenha gosto pelo seu tema, isso não é nem deveria ser relevante. Aprende-se tanto sobre nosso mundo estudando a favela e suas normas, a estética negra ou os aplicativos de pegação, o Big Brother e Felipe Neto quanto se aprende estudando temas mais clássicos. Ou, pelo menos, pode-se aprender, desde que a pesquisa seja bem feita.
Utilidade, um fetiche
A ideia de que a pesquisa universitária deve ter uma finalidade prática imediata ou um propósito tecnológico (pior ainda, a ideia às vezes tida de que deve ter viabilidade ou fim comercial) é quase escandalosa. A universidade não pode jamais ser transformada num grande Senac – a ideia não é nem pode ser essa. A atividade é a de formação de pesquisadores, de massa crítica, de cientistas (sejam sociais ou de outro tipo).
A ideia de que mestrados e doutorados devem ser úteis cortaria desde cedo a possibilidade, por exemplo, do estudo da filosofia, a mãe de todas as disciplinas e de toda a cultura clássica Ocidental. Porque, convenhamos, seria difícil exigir uma finalidade prática de se estudar Platão.
Se for para aplicar o conceito defendido pelo autor – de que em situações de recursos escassos é preciso optar pelo mais urgente – chegaremos ao pretexto ideal para eliminar qualquer estudo das humanidades, já que a agronomia, a engenharia civil e a medicina tomarão de assalto todos os recursos – e qualquer atividade de reflexão sobre nossas vidas do ponto de vida histórico, sobre nossas relações sociais será deixada para a iniciativa privada.
Seremos assim tão pequenos?
Preconceito acadêmico
O que muitas vezes transparece nesse tipo de crítica á universidade é um forte preconceito contra a ideia de que devemos estudar tudo o que houver para estudar sobre quem somos. Como se houvesse alguém capaz de determinar o que é e o que não é importante para que sejamos o que somos, para compreender o nosso mundo.
Esse preconceito vem principalmente de uma formação conservadora, de direita, que vê nas Ciências Sociais um perigoso aglomerado de esquerdistas interessados em questionar os valores de uma sociedade capitalista. Tudo entre muitas aspas aqui, claro. Um núcleo de pessoas que, ao invés de contribuir para o bom desenvolvimento da sociedade como ela é parece mais interessado em debater como se chegou até aqui e quais são os mecanismos que nos levam a funcionar socialmente como funcionamos.
É um preconceito contra a atividade crítica que classifica de tolas as pretensões de estudar aquilo que não seja prático. Como se fosse uma infantilização tentar pensar o mundo de outras formas e olhar para nossa sociedade com olhar diferente daquele defendido como “certo” pelas pessoas em condições de estabelecer o que é o ensino clássico.
O que não quer dizer que qualquer pesquisa sobre um tema alternativo seja válida e boa. Pode ser meramente bobagem, evidente. Assim como uma pesquisa sobre Hegel pode ser tola. Assim como um mestrado sobre lançamento de foguetes pode dar chabu. Assim como um doutorado sobre Camões pode ser digno da lata de lixo.
Melhoria moral
O argumento mais espantoso de todos os usados por Gabriel, no entanto, é o de que a universidade deve servir para melhoria moral de uma sociedade. Em primeiro lugar, como já deve ter ficado claro, o dever da academia é produzir pesquisadores: nem santos nem profetas. Quem está no negócio de desenvolver virtudes são os monastérios. As faculdades devem desenvolver capacidades técnicas.
Até porque, a não ser que se esqueçam todas as principais contribuições feitas à ética e à t teoria do conhecimento pelo menos desde Kant, fica difícil estabelecer qual é a moral “certa” a desenvolver. Seria necessário estabelecer um ideal de moral (o católico? o luterano? o comunista? o de Gabriel) para que ele fosse perseguido. Cabe isso às universidades Convenhamos.
E estudar Catra não quer dizer transformar-se nele. Assim como estudar uma tribo indígena não implica passar a vestir cocar.
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