O post de uma juíza paranaense relativizando seu próprio mérito por passar no concurso da magistratura fez ressurgir o velho debate sobre a “meritocracia” – a ideia de que cada um deve ser recompensado de acordo com o que é capaz de produzir, sem que se levem em conta outros fatores.
A principal discussão entre quem defende e quem critica esse tipo de raciocínio está na crença sobre a existência do mérito. A nossa intuição costuma dizer que se alguém conseguiu algo é porque teve mérito. O esforço é recompensado etc.
Lógico que isso tem lá seu sentido. E a própria juíza Fernanda Orsomarzo, em seu post que fez dela uma celebridade na internet, admite. Diz que teve de “ralar” muito para conseguir seu posto atual. Estudou. Batalhou. Deu duro.
Mas esforço, ela reconhece, não é tudo. Se ela não tivesse tido as chances que teve, podia dar o mesmo duro e não chegar a lugar nenhum. Orsomarzo diz que saiu na frente por ter três refeições por dia, uma família estruturada, condições econômicas para se dedicar ao estudo…
Não há dúvidas de que ela saiu na frente. E nada disso se deve a mérito dela. Ela não “escolheu” nascer naquela família. Não “escolheu” ter aquelas condições. Como diria o filósofo John Rawls, padroeiro dos críticos da meritocracia, ela deu sorte na loteria da vida.
Rawls vai mais longe e contesta a própria ideia de que o esforço revela um caráter que deve ser recompensado. Segundo ele, ninguém escolhe nascer com certas predisposições, como a tendência a perseverar. Uma visão bastante radical.
A direita costuma condenar essa crítica à meritocracia. Todo mundo conhece o discurso: quem tem é porque se esforçou. O corolário, porém, é inevitável, e cruel: quem não tem é porque não se esforçou.
Muita gente acredita nisso, por mais que seja fácil desmentir. Facílimo. Basta ver uma criança numa família desmontada pela pobreza, sem condições de ir à escola, sem tempo para estudar, que é obrigada a parar a escola antes, que não consegue ter três refeições por dia e pensar se ele teria condições de competir com a juíza Orsomarzo.
Mas há uma outra argumentação liberal no pedaço. Leandro Narloch, aproveitando a deixa dada pela juíza, expôs brevemente a tese em seu blog no site de Veja. Diz ele que a meritocracia é sim um mito. Mas que o Estado só piora as coisas.
“Uma coisa é perceber a ‘injustiça cósmica’ (como o economista Thomas Sowell chama o fato de alguns nascerem com mais sorte que outros) e tentar atenuá-la; outra é acreditar que o Estado um dia será capaz de garantir igualdade de oportunidades.”
Leandro defende que o caminho poderia ser apoiar ongs que dão bolsas de estudo em escolas particulares, ao invés de apostar em um Estado que fornece a educação gratuitamente.
“É mais correto afirmar o contrário: o Estado aumenta ainda mais a desigualdade ao nascer. A pessoa já nasce mal, numa família miserável, com pais bêbados e negligentes, e nós ainda a obrigamos a frequentar escolas públicas decrépitas e a pagar impostos para financiar burocratas, empreiteiras, aposentadorias especiais e uma Justiça cara e ineficiente. Se o jovem sai da escola e tenta trabalhar, o Estado o proíbe ou exige diplomas e certificações. Se tenta empreender, o Estado manda fiscais para coibir o comércio ilegal.”
O argumento de Leandro é meio que uma mistura de todos os preceitos dos extremistas liberais, mas que podem ser reduzidos a uma simples frase: o Estado só piora as coisas, sempre. A crítica à solução estatal, como mostrada acima, confunde vários temas em um só. A exigência de certificações vira parceira da escola ruim. Como se tudo colaborasse para cercear o espírito empreendedor que, este sim, poderia tirar a pessoa da situação ruim em que a loteria da vida a jogou.
Num mundo em que as discrepâncias fossem menores, isso poderia ter sentido. No mundo real, nunca. A criança do exemplo acima, na Vila Torres, no Capão Redondo, na Cidade de Deus, teria realmente chances melhores de ascensão social sem escola pública? Teria como ter um início de vida mais parecido com o da juíza Orsomarzo simplesmente porque não se cobram dele uma certificação para que possa empreender?
Até que ele chegue a formar um negócio, precisará dar muitos passos. Haja ong para ajudar os milhões de brasileiros que estão muito, muito atrás da juíza na linha de partida da vida. É evidente que um esforço de toda a sociedade é necessário.
A crítica à solução estatal tem origem no ranço libertário de que o Estado é sempre ruim. Os libertários tendem a ver o Estado sempre como o caminho para o coletivismo, para o totalitarismo, no famoso argumento do perigo crescente – coisa de quem vê comunista embaixo da cama.
Algum Estado é sempre necessário para corrigir as desigualdades intrínsecas de uma vida necessariamente injusta. Podem-se discutir mecanismos mais ou menos justos e até é saudável que não degeneremos para uma solução em que o Estado PRovidência vire algo assustador.
Mas “a cada um de acordo com a sua produção” continua sendo algo muito, muito cruel.
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