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Viva o povo brasileiro

Da coluna Caixa Zero, publicada hoje, na Gazeta do Povo:

“É preciso ver as coisas com clareza! No mundo, alguns foram feitos para mandar, a maioria para obedecer, esta é que é a realidade!”

“Mas mandar pode querer dizer governar honestamente e não oprimir.”

“Que é que você chama de opressão? Que se pode fazer mais por esse povo? Dar-lhe banheiros? Continuarão a fazer suas necessidades nos matos! Dar-lhe dinheiro? Gastarão tudo com cachaça e farras! É preciso ver a realidade, é preciso conter a ação de progressistas delirantes como você, para que o país não caia na anarquia e no desgoverno! As poucas conquistas que conseguimos não serão tomadas! Vocês não tomarão nada de nós!”

O diálogo acima pertence ao livro Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. E foi a primeira coisa que me veio à cabeça quando li a declaração do deputado Sérgio Moraes – aquele que admitiu estar “se lixando” para a opinião pública. “Até porque parte da opinião pública não acredita no que vocês escrevem. Vocês batem, mas a gente se reelege”, disse Moraes.

Na verdade, é preciso parabenizar o deputado. Ele disse o que realmente pensa – sobre o povo, sobre a imprensa e sobre a democracia. Disse também, indiretamente, o que pensa sobre a atuação do colega que deveria estar julgando (a frase foi dita depois de o deputado anunciar que não viu indícios de quebra de decoro por parte de um parlamentar acusado de usar notas frias em sua prestação de contas ao Congresso Nacional).

Políticos, em geral, não dizem o que pensam. Dizem o que imaginam que vai agradar a seu eleitorado. Quando um deles realmente fala o que se passa em sua cabeça, cria o escândalo que Sérgio Moraes criou. Elimina-se o jogo de esconde que os políticos fazem – e que nossa população alegremente finge não perceber.

Normalmente, para achar exemplos genuínos daquilo que os poderosos pensam sobre os outros, é preciso recorrer à ficção. Lá, os escritores podem colocar na boca de seus personagens as afirmações que, na vida real, soariam escandalosas. E meu exemplo favorito de discurso é esse de João Ubaldo Ribeiro.

O diálogo ocorre durante o conflito em Canudos, no fim do século 19. Mais de cem anos atrás, a discussão era se o povo mereceria alguns “privilégios”, como banheiros ou acesso a dinheiro. E havia quem defendesse que não, como sempre haverá. O conservador da história garante que é preciso manter cada um no seu lugar – para que as “poucas conquistas” do Brasil não sejam perdidas.

O tempo passou, e embora Canudos tenha sido arrasado, as coisas avançaram. O povo hoje tem banheiros (90,4%, segundo o IBGE) – não se pode dizer o mesmo em relação a dinheiro, claro. E depois que chegaram os banheiros, o povo exigiu democracia. Veio o voto, e o povo pediu terra. A terra ainda nem veio e agora aí está a imprensa exigindo que os políticos tenham… transparência!

Bonifácio Odulfo, o personagem conservador do livro, tinha razão em ter medo de perder aquilo que sua classe havia conquistado. Com o tempo, o mundo muda, e aqueles-que-nasceram-para-obedecer começam a fazer cada vez mais exigências, a ponto de ameaçar a soberania dos que nasceram-para-mandar.

O desabafo do deputado Sérgio Moraes não é nada mais do que isso. O grito de desespero daqueles que percebem que seu mundo de privilégios está sendo contestado. Daqueles que se agarram ainda na falta de maturidade política do povo (que continua reelegendo sempre os mesmos figurões) como último argumento para a sobrevivência do tipo de política que fazem – e do tipo de país em que vivemos.

Pode demorar mais um pouco. Mas assim como tiveram de dar banheiros ao povo, os integrantes da elite brasileira um dia terão também de dar conta de seus atos aos eleitores. E esse dia, ao que tudo indica, está quase chegando.

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