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A passeata do dia 25 de fevereiro correu sem intercorrências. Felizmente. Foi uma manifestação gigantesca e pacífica. Não pode ser subestimada. Mostra, mais uma vez, um país dividido e uma sociedade mobilizada. Foi muito além do apoio a Bolsonaro.
Parcela considerável dos que lá estavam não são radicais ou extremistas. São cidadãos que têm saudade de um Brasil aberto, miscigenado, livre, sem repressões infundadas e à margem da lei. Querem respeito à Constituição, à liberdade de expressão e às leis. Estão, talvez sem perceber, cansados de uma corda permanentemente esticada e nostálgicos de uma liderança alternativa que seja capaz de devolver aos brasileiros a capacidade de sonhar com um projeto grande de país. Há, estou certo, uma demanda reprimida de um estadista com autoridade e serenidade.
Vêm-me à cabeça um livro que permaneceu um bom tempo na lista dos best-sellers do New York Times: Um Cavalheiro em Moscou. Seu autor, Amor Towles, apresenta com humor e leveza um elogio aos valores e tradições deixados para trás pelo avanço da história.
Lula e os ministros do STF não parecem realizar o quanto estão testando os limites da obediência e do respeito às autoridades instituídas que são muito comuns e arraigados na população brasileira
Nobre acusado de escrever uma poesia contra os ideais da Revolução Russa, Aleksandr Ilitch Rostov, “o Conde”, é condenado a prisão domiciliar no sótão do hotel Metropol, lugar associado ao luxo e sofisticação da antiga aristocracia de Moscou. Mesmo após as transformações políticas que alteraram para sempre a Rússia no início do século 20, o hotel conseguiu se manter como o destino predileto de estrelas de cinema, aristocratas, militares, diplomatas, bon-vivants e jornalistas, além de ser um importante palco de disputas que marcariam a história mundial.
Mudanças, crises e questionamentos não paravam de entrar pelo saguão do hotel, criando um desequilíbrio cada vez maior entre os velhos costumes e o mundo exterior. Graças à personalidade cativante e otimista do Conde, aliada à gentileza típica de suas origens, ele soube lidar com a sua nova condição.
O clima é tenso, as relações vão se complicando, as ironias e os julgamentos precipitados contaminam o ambiente, a capacidade de dialogar vai desaparecendo no ralo das paixões humanas. Com sua experiência de vida, carregada de sabedoria, Rostov comenta com um de seus interlocutores: “Se um homem não dominar suas circunstâncias, ele é dominado por elas”. Uma pérola de realismo e de capacidade de liderança. Tem tudo a ver com o dramático momento que estamos vivendo.
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Seria bom que nossas lideranças – muito especialmente os representantes do Judiciário, os políticos e os governantes – meditassem no conselho do prisioneiro do hotel Metropol. A perda de domínio das circunstâncias pode transformar a liderança em algo vazio, contestado e perigoso.
Como já escrevi neste espaço opinativo, Lula e os ministros do STF não parecem realizar o quanto estão testando os limites da obediência e do respeito às autoridades instituídas que são muito comuns e arraigados na população brasileira. Parecem não perceber que algumas de suas decisões e atos são cada vez menos vistos como justos, legítimos e constitucionais e podem provocar um desfecho muito perigoso: uma atitude crescente de enfrentamento e desrespeito à corte. Se o cidadão sente que o Estado não lhe representa, que afronta a Constituição em benefício de um grupo que o domina, e que crescentemente lhe oprime, pode cair na tentação da desobediência civil ou, pior, da transgressão. E isso é muito preocupante. O Brasil, um país polarizado e radicalizado, precisa recuperar a tranquilidade e a segurança jurídica. Este foi, sem dúvida, um forte recado da passeata da Paulista.
O conservadorismo, flagrado na imensa passeata, não apenas tem direito de existir, como tem se mostrado muito representativo de boa parcela, talvez a maior parcela da sociedade, da população brasileira. Trata-se de um fato sociológico. Não deve ser desconsiderado.
O conservadorismo, flagrado na imensa passeata, não apenas tem direito de existir, como tem se mostrado muito representativo de boa parcela, talvez a maior parcela da sociedade
O Brasil, não esqueçamos, é um país de consenso. Não foi só a roubalheira que fez água no projeto lulopetista de perpetuação no poder. Foi o cansaço provocado pela interdição do diálogo e pela estratégia do “nós contra eles”. A agressividade como forma de intimidação e de comunicação pode dar resultado no curto prazo. Mas desgasta, e muito, numa perspectiva de médio prazo. Provoca antipatia e acaba transferindo o controle da narrativa para as mãos dos que se apresentam como vítimas da comunicação metralhadora giratória. Em política, o mocinho pode virar vilão muito rapidamente. No mundo da pós-verdade o que importa não é a objetividade dos fatos, mas a força emocional das percepções.
Nós, jornalistas, precisamos analisar os fatos com serenidade. Estou, a cada dia que passa, evitando pendurar etiquetas simplistas numa realidade que parece complexa. Tenho procurado pensar e refletir. Com esforço de compreensão da realidade, com mente aberta e sem preconceitos. Penso que nós, jornalistas, precisamos fugir do jornalismo de fofoca e de polêmica superficial e gratuita e mergulhar na análise dos fatos.
Ao mesmo tempo, precisamos sentir o pulso da opinião pública. Na verdade, vez por outra, estamos de costas para a sociedade real.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos