O momento atual do Brasil é de paixões exacerbadas: eleições que se aproximam, candidatos em campanhas sem limites, nervos à flor da pele. Pouca razão e excesso de emoção. É em momentos assim que se exige uma maior ponderação de todos. Também de nós, jornalistas. Hoje, mais do que nunca, é importante que se viva a virtude da prudência, no sentido tomista: a arte de, serenamente, coletar todos os dados da realidade que possam ser úteis para a sua compreensão.
Mas não podemos esquecer que as eleições passam, as paixões esfriam, as candidaturas e os mandatos também se esvaem. Todavia, há coisas que permanecem, e muitas vezes causam danos de difícil reparação para a vida de um país. Uma delas é a destruição da ordem jurídica que, no Brasil de hoje, é visível a olho nu, e infelizmente está sendo causada pela conduta de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que é – ou ao menos deveria ser – o principal responsável pela garantia do cumprimento e da estabilidade do ordenamento jurídico.
Várias decisões de ministros do STF (na maioria das vezes monocráticas), em vez de estabilizarem a ordem jurídica, destroem-na, atropelando direitos fundamentais
O que se vem observando, lamentavelmente, é exatamente o contrário: várias decisões de ministros do STF (na maioria das vezes monocráticas) que, em vez de estabilizarem a ordem jurídica, destroem-na, atropelando direitos fundamentais e, muitas vezes, também as instituições incumbidas da preservação e do cumprimento do Direito, juntamente com o Poder Judiciário, como é o Ministério Público. São precedentes perigosos, que acabam servindo de mau exemplo, e pouco a pouco se propagam para outros órgãos do Judiciário.
É o que se vê com a instauração do assim denominado “inquérito das fake news” (posteriormente, de forma jocosa, chamado por Marco Aurélio Mello – ele mesmo ex-ministro do STF – de “inquérito do fim do mundo”). Esse inquérito foi instaurado em 2019, pelo então presidente da corte, o ministro Dias Toffoli. Depois da instauração, sem que se fizesse nenhum sorteio do ministro responsável pela condução do inquérito, ela foi atribuída ao ministro Alexandre de Moraes.
O que motivou a instauração desse inquérito foi a publicação de uma matéria da revista Crusoé, que trazia uma referência ao ministro Dias Toffoli durante apuração feita na Operação Lava Jato. A abertura do inquérito deu-se mediante uma interpretação bastante alargada do artigo 43 do Regimento Interno do próprio STF, que prevê a possibilidade de instauração de inquérito, em caso de infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, e se isso envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição.
Esse inquérito – que ainda tramita até hoje, já decorridos mais de três anos – tem permitido a tomada de uma série de medidas flagrantemente ilegais e inconstitucionais, contra pessoas que nem mesmo são julgadas no STF – o que, por si só, torna abusivas as medidas determinadas por seus ministros. Acrescente-se que não pode haver a acumulação das posições de vítima, investigador, acusador e julgador que profere a decisão final. Tal poder, inconstitucional e autoritário, tem ocorrido com uma frequência assustadora. Atualmente, em um evidente desvirtuamento da interpretação deste artigo 43 do Regimento Interno, tudo é trazido para o arbitrário inquérito: blogueiros, jornalistas, partidos políticos, “empresários bolsonaristas” etc. A liberdade de expressão, garantia maior da Constituição, foi para o ralo do autoritarismo judicial.
As decisões de Alexandre de Moraes ferem o princípio do juiz natural, previsto na Constituição Federal de 1988. Em poucas palavras, este princípio significa que todas as pessoas têm o direito de serem julgadas pelo tribunal estabelecido na Constituição e nas leis, que preveem expressamente quais são as matérias e quais são as pessoas que podem ser julgadas por um determinado magistrado. É importante registrar que um juiz que não tenha competência para julgar uma pessoa não pode determinar medidas cautelares e coercitivas contra ela (uma prisão preventiva, ou busca e apreensão, por exemplo). É isso, rigorosamente, o que está acontecendo.
A liberdade de expressão, garantia maior da Constituição, foi para o ralo do autoritarismo judicial
Já se vão semanas desde que o STF, na figura do ministro Alexandre de Moraes, deu mais uma cartada em seu assalto às liberdades e garantias individuais ao ordenar uma série de medidas cautelares contra empresários, devido a conversas privadas entre eles em um grupo de WhatsApp. O fim do sigilo sobre os documentos relativos a essa operação apenas escancarou o que já se intuía: a ausência completa de base legal para medidas como busca e apreensão de celulares, quebra de sigilo bancário e telemático, suspensão de contas em mídias sociais e até bloqueio de contas bancárias.
Além disso, os advogados dos investigados no inquérito das fake news do STF e em alguns de seus desdobramentos, como os inquéritos dos “atos antidemocráticos” e das “mídias digitais”, completaram dois anos sem vistas e sem acesso à íntegra dos autos desses processos. Uma ilegalidade e flagrante desrespeito ao direito de defesa.
É hora de todos, também os ilustres ministros do STF, fazerem uma sincera autocrítica. Golpes não dependem apenas de tanques. Podem ser desfechados pelo medo, pela leniência e pela omissão.
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