Bolsonaro prometeu mudar a embaixada brasileira em Israel para sua capital, Jerusalém. A medida, a princípio, faz todo o sentido do mundo; afinal, é lá que fica o governo junto ao qual os diplomatas brasileiros são credenciados para cuidar de nossos interesses. O que está em disputa, contudo, é algo muito maior que a mera praticidade de o embaixador não ter de pegar duas ou três horas de estrada para sair de Tel-Aviv, a “capital” de fancaria onde hoje fica nossa embaixada, para ir ter com os governantes em Jerusalém.
Jerusalém – onde o batucador destas mal-traçadas já teve o prazer de morar – é provavelmente a cidade mais famosa do mundo. Até a Era Moderna, ela era literalmente considerada o “umbigo do mundo”. O mundo girava em torno de Jerusalém, que ocupava o centro de todos os mapas. Os cruzados lutaram por séculos por aquela terra. O reino cruzado de Jerusalém, que durou 192 anos (1099–1291), persistiu como um enclave cristão num oceano muçulmano por quase três vezes o tempo que perdura o Estado judeu que hoje cava a duras penas a sua persistência no mesmo ambiente inóspito.
Foi lá que Melquisedeque ofereceu o sacrifício de pão e vinho e recebeu de Abraão o dízimo. Foi lá que morreu e ressuscitou Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi lá que o povo bíblico de Israel construiu seus templos. Teria sido lá que Maomé teria feito uma viagem celestial. A cidade foi destruída pelo menos duas vezes, sitiada 23 vezes, atacada 52 e capturada 44 vezes. Ela é considerada a cidade mais sagrada pelos judeus, a terceira mais sagrada pelos muçulmanos e, pelos cristãos, é o centro deste mundo – sendo que o foco maior é no outro mundo, na Jerusalém Celeste de que a terrestre é pálida figura. Para os pagãos romanos ela se tornou alvo justamente pela sua sacralidade para os judeus; o Império Romano a destruiu para punir os judeus por sua revolta contra a dominação romana.
Em suma, a luta por Jerusalém é e sempre foi constante, e perdurará até a Parusia. Conquistar e dominar Jerusalém, para enorme parcela da população do mundo, é um sonho e uma maneira de manter e respeitar a sacralidade de um lugar conspurcado ao permanecer nas mãos de seguidores de outra religião. Atualmente, a cidade é a capital do Estado judeu, mas a população árabe tradicional do local, dividida em cristãos e muçulmanos, ambiciona tê-la como capital de um Estado árabe não confessional (ou mesmo, para os muçulmanos, confessional). A ONU, apoiada pela imensa maior parte dos países – com a exceção dos EUA –, desejaria ver a cidade dividida, com a parte oriental capital de um Estado árabe e a ocidental, capital do judeu.
Israel não é a Israel bíblica, com que em comum só tem o nome. É um país artificial, mas necessário, inventado em 1948 por mandato da ONU para dar uma terra própria aos judeus, então recentemente objeto do infernal genocídio perpetrado por Hitler e seus seguidores. Teria sido, sem dúvida, melhor se houvesse sido feito em outro lugar tal Estado, justamente para eliminar as dificuldades desnecessárias advindas da peculiar importância espiritual da cidade e da região – a Terra Santa – para os seguidores das três grandes religiões monoteístas. Mas, se lá foi feito e lá está, é com esta realidade que temos de conviver. Foi um país construído pela força; assim que sua independência foi declarada, o território foi atacado pelos exércitos de todos os países da região. Os judeus sobreviventes do Holocausto desembarcavam dos navios e recebiam uma arma, aprendiam algumas poucas palavras – avançar, recuar, esquerda, direita, atirar, cessar-fogo – e lançavam-se à batalha. Todo o território do país foi assim arrancado das mãos de seus habitantes e dos ditadores dos países em seu entorno, repetindo de uma certa maneira o que ocorrera quase mil anos antes, na conquista cruzada daquela mesma sacratíssima região.
O Estado judeu nunca teve paz. O serviço militar lá é obrigatório para homens e mulheres, e até a meia-idade todos têm de voltar ao Exército para treinamentos anuais. Os fuzis e uniformes ficam guardados na casa dos reservistas, que são a quase totalidade da população. As guerras lá se sucedem constantemente, e mesmo quando não há guerra aberta os cidadãos sofrem com ataques de mísseis e homens-bomba.
De todos os países do mundo, os Estados Unidos são o único que apoia abertamente Israel. No século passado, o Estado judeu tinha ainda o apoio do governo branco da África do Sul, mas este felizmente foi substituído por um governo negro que se alinha com as forças anti-israelenses. O apoio americano, contudo, mais que compensa a falta de apoio dos demais países. Os auxílios monetários dos EUA – que no século passado, quando lá vivi, eram na faixa de US$ 4 milhões por cidadão israelense por ano – auxiliam enormemente o Estado de Israel, e é a diplomacia americana que conseguiu construir a insólita parceria entre o Estado judeu e o Estado muçulmano sunita radical saudita.
Esta é a situação em que Bolsonaro prometeu mudar a embaixada brasileira. É um imenso vespeiro. Nenhum outro país com alguma significância geopolítica, com a exceção dos EUA, respeita a realidade dos fatos segundo a qual é em Jerusalém que se situa o governo. Todos os demais mantêm – como o Brasil até agora, e os próprios EUA até a entrada de Trump na Casa Branca – embaixadas em Tel-Aviv, a cidade que foi a capital de Israel até a conquista pelas armas de Jerusalém, quase 20 anos após a invenção do país. A mudança da embaixada, prometida pelo nosso futuro presidente e confirmada recentemente por seu filho ao visitar a Casa Branca – de onde saiu com um boné de campanha do Trump –, será inevitavelmente lida como um alinhamento fortíssimo do Brasil aos EUA, em primeiro lugar, e em segundo como uma mudança radical na linha cuidadosamente costurada da diplomacia brasileira, que sempre pisou em ovos para manter boas relações tanto com os países árabes quanto com o judeu.
Muitos lerão a mudança de embaixada como significando apoio do Brasil à manutenção de Jerusalém como capital indivisível do Estado judeu. Isto, para os países árabes, será percebido como uma afronta direta e uma negação aberta de seu sonho de – não conseguindo conquistá-la por completo pela força das armas – dividir a cidade santa e manter nela duas capitais. O resultado imediato há de ser um corte radical nas relações comerciais do Brasil, especialmente na exportação de carne, que conta mais de dezena de bilhões de dólares para nossa balança comercial.
A cidade é santa. Os que nela habitam, todavia, de ambos os lados, árabes e judeus, cristãos, muçulmanos e israelitas – todos descendentes espirituais do mesmo pai Abraão –, não são nada santos. Como escrevi acima, o povo israelense não é o Povo de Israel bíblico. Suas políticas para com os árabes, em muitos aspectos, são asquerosas, com uma legislação que trata os não judeus como, na melhor das hipóteses, cidadãos de segunda classe e com constantes e repetidos homicídios propositais perpetrados por snipers do exército israelense, com um estado de sítio permanente dos habitantes da Faixa de Gaza, no sudoeste israelense, e outras práticas nada morais. Do lado árabe, os atentados e mísseis fazem a sua parte no festival de iniquidades que assola a região.
Os países árabes que ficarão ofendidos com a mudança da embaixada também entram nisso. São, quase sem exceção, ditaduras ferocíssimas. O dinheiro que para eles vai cai todo nas garras dos inescrupulosos governantes, não da população. A meu ver, não há razão alguma para dar valor a tais regimes; convenhamos que a moral, por vezes, pode e deve sobrepujar os interesses comerciais mais estritos, e é lamentável que tratemos tais regimes como se fossem o equivalente das democracias europeias. Além disso, a carne que o Brasil exporta para esses países é, por exigência deles mesmos, de animais abatidos segundo o ritual sacrificial muçulmano. Em outras palavras, nossos abatedouros dedicados à exportação não apenas matam as galinhas, vacas e ovelhas, mas as sacrificam a um deus que demanda sangue de cristãos, ao mesmo deus que justificaria os horrendos atentados controlados a partir da região que assolam a Europa e outras partes do mundo. Existe, assim, o perigo de atrair esses mesmos atentados para o nosso território.
Sopesando tudo isso, sou a favor da mudança da embaixada, mesmo não valendo absolutamente nada a minha opinião. Israel, com todos os seus problemas, tem em Jerusalém a sua capital e é uma palhaçada diplomática, para não dizer uma mentira, sustentar a ficção absurda de que sua capital seria Tel-Aviv. Nossos diplomatas podem e devem estar próximos fisicamente do governo junto ao qual representam nossos interesses. Além disso, a mudança da embaixada apertará os laços de amizade que unem Brasil e Israel, país que tem muitíssimos habitantes de origem brasileira. Não se trata, repito mais uma vez, de confundir o Estado judeu atual com a Israel bíblica, sim de sustentar os interesses de nossos compatriotas que para lá se mudaram, de reconhecer o direito dos judeus a ter um Estado próprio, especialmente depois dos horrores perpetrados contra eles no século passado, e de reconhecer a situação de fato: Jerusalém é a capital do Estado de Israel, como foi a do Reino cristão de Jerusalém, e, se é lá o governo, lá devem ser as embaixadas.
A oposição à mudança da embaixada, do mesmo modo, vem de países cujos regimes de governo não merecem em nada o nosso respeito. Não há razão alguma para apaziguar ditadores sanguinários que, se pudessem, nos matariam todos em nome do seu Alá. Finalmente, será para o Brasil uma coisa excelente, do ponto de vista espiritual, deixar de ter, ou ao menos diminuir radicalmente, a oferta de milhares, quiçá milhões, de vítimas animais a um deus sequioso de sangue cristão.
Em suma, quem defende a mudança da capital em geral o faz por razões erradas. Seja por confundir a Israel bíblica com seu homônimo geopolítico atual, seja por mero instinto de imitação dos EUA, o que não falta é gente querendo fazer a coisa certa pelas razões erradas. Do outro lado, os argumentos comerciais, a meu ver, de nada valem diante do panorama espiritual e geopolítico em que o alinhamento do Brasil com regimes ditatoriais e inimigos da Cristandade deveria ser-nos causa de vergonha, não de orgulho.
Que seja mudada a embaixada, preferencialmente para um lugar que mesmo os que defendem a partição de Jerusalém considerem território judeu. Que se deixe de sacrificar bichos a um falso deus em nosso território. Que se reforcem os laços de amizade entre o Brasil e o Estado judeu, que com todos os seus inúmeros problemas é ainda bem menos mau que os Estados muçulmanos que o circundam. Será, sem dúvida, um sacrifício para nosso país, mas creio que ao fim lhe será algo benéfico.
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