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O século 20 foi o momento de centralização máxima do poder estatal, assim como o século 21 vem sendo o de maior centralização do poder paraestatal (grandes conglomerados, hipercapitalistas, essa gente que hoje manda nos políticos eleitos). Tanto um quanto o outro são um péssimo negócio, mas ambos têm seu fã-clube. Um amigo querido, comunista de colar decalco, estava outro dia dizendo que há uma chance de os militares brasileiros (os mesmos incompetentes que não largaram o osso do poder, mas eliminaram completamente a representação política conservadora por medo de “competição”, brindando-nos assim com uma Nova República em que só havia políticos de extrema-esquerda) podem instaurar uma ditadura em breve. Para ele, isso seria um bem, pois aumentaria a planificação central.
Ora, catapimbas, o problema é que essa planificação não funciona nem teria como funcionar. O argumento econômico é bem simples: sem um mercado livre, não há como averiguar o preço real de cada coisa, o que faz com que todas as economias planificadas tenham o tempo todo quantidades absurdas de um que outro produto e falta completa de todos os demais. Na Rússia comunista, as pessoas não saíam de casa sem uma bolsinha de barbante, para que pudessem comprar algo na rua. Afinal, sabia-se que havia algo à venda vendo-se uma fila enorme. Aí cada um comprava aquilo que estivesse à venda (que hoje poderiam ser luvas cirúrgicas e amanhã batatas, mas jamais ambos), pois sabia que dali a uma semana aquele produto desapareceria completamente das prateleiras.
Mas o problema maior nem é este. O problema da hipercentralização é que ela ignora a natureza humana. Vindo da parte dum marxista, que acredita que toda a psique humana seja um reflexo de uma superestrutura de classe, mudando assim que essa superestrutura é substituída por outra, ainda dá para entender. Entender, vejam bem; jamais aceitar. Afinal, a natureza humana é a mesma desde Adão e Eva, e continuará sempre sendo a mesma, superestrutura ou não.
O problema da hipercentralização é que ela ignora a natureza humana
A centralização, para poder ser feita, demanda que o ser humano seja o ser médio. Medíocre, portanto: é o governo da mediocridade, pela mediocridade (os mais inteligentes acabam sendo expurgados rapidinho), para a mediocridade. Todas as características humanas, afinal, apresentam-se numa distribuição que em estatística se diz “normal”, ou “gaussiana”. É uma curva em forma de sino, em que os que apresentam aquela característica em pequeníssimo grau são um começo baixo da curva; a imensa maioria – que a apresenta entre pequeno e grande grau –, uma curva que ascende a um ponto máximo (onde fica a média, medíocre por natureza) e desce rapidamente, deixando do lado direito do gráfico um rabicho semelhante ao do lado esquerdo.
O que temos, na prática, assim, é uma curva que nos mostra visualmente o que é de senso comum: há uma pequeníssima quantidade de pessoas excepcionalmente brilhantes (ou fortes, ou belas, ou dotadas de capacidade matemática, linguística ou talento artístico), e uma igualmente pequena quantidade de gente quase completamente desprovida daquela característica. Por vezes a curva toda varia para um lado ou para outro; por exemplo, num gráfico de força física nos membros superiores, a curva masculina tem sua média situada mais à direita, já que via de regra os homens são um pouco mais fortes. Assim, uma mulher que esteja exatamente na média será mais fraca que um homem exatamente na média de seu sexo, mas boa parte das mulheres – a parte mais forte, à direita ou acima da média no gráfico – será tão forte quanto os homens mais fracos – os do lado esquerdo do gráfico masculino. As distribuições dentro da totalidade das mulheres e dos homens, todavia, permanecem na mesma forma de sino.
A centralização, para funcionar, precisa tratar as pessoas como sendo mais ou menos intercambiáveis. Um engenheiro ou marceneiro deve ser considerado igual a todos os demais engenheiros ou marceneiros, para que se os possa alocar de modo centralizado, sem os conhecer individualmente. Isto, porém, jamais ocorre. Entre os engenheiros teremos a mesma curva, assim como entre os marceneiros, com uma minoria péssima, uma minoria ótima e uma média medíocre. Isto faz com que na prática o processo de centralização tenha de fingir que todos fazem parte da mesma média medíocre, aumentando o emprego dos maus engenheiros e desperdiçando a capacidade dos ótimos. Isto, aliás, é também o problema das escolas de hoje, com turmas com dezenas de alunos, em que esta distribuição fica perfeitamente nítida: os mais espertinhos dormem na aula, que é lenta demais para eles, enquanto os mais limitadinhos são deixados para trás, para que a média medíocre vá mais ou menos acompanhando as explicações bem o suficiente para regurgitá-las numa prova antes de as esquecer.
Quando se tem uma quantidade enorme de pessoas, um país inteiro, todavia, as pontinhas da distribuição gaussiana passam a ser significativamente grandes. Passa a haver uma quantidade gigantesca de pessoas que simplesmente não se encaixam no padrão de mediocridade. Tomemos por exemplo a curva de distribuição de QI (aquele teste que mede a capacidade das pessoas de responder testes de QI, normalmente usado em sistemas tecnocráticos como medida de “inteligência”). Num país inteiro, por definição, ter-se-á dezenas ou mesmo centenas de milhões de pessoas com QI de dois dígitos (a média é 100, igualmente por definição). Dentre estes, alguns milhões de pessoas tão limitadas intelectualmente que sujeitá-las ao ensino médio é não apenas inútil, mas cruel. Ora, eles certamente estarão, todavia, em outros pontos de outras distribuições. O mesmo sujeito que não consegue nem por reza braba entender uma equação de segundo grau pode ser um músico talentosíssimo, um excelente marceneiro, um escritor brilhante, ou o que for: o fato de ser ruim nalgo não o torna necessariamente ruim em nada doutro.
Mas a centralização demanda homogeneidade, e por isso não aceita brilhantismo. Em nada. Quanto mais centralizado for o sistema de organização social, menos preparado estará para o brilhantismo e para a incompetência absoluta (que será mais ou menos equivalente em termos de número de pessoas; são as duas pontas do mesmo gráfico de sino). Antes que venha alguém lembrando os gênios da música, da matemática e do atletismo russo, aponto que se trata da exceção que confirma a regra. Com todas as crianças sendo necessariamente testadas para estas coisas num sistema escolar centralizado, é relativamente fácil encontrar as exceções – o “rabicho” do gráfico – e forçá-las a treinar como loucos, mesmo que contra sua vontade.
Em outras palavras, torna-se grande músico, matemático ou atleta quem o governo centralizado percebe como tendo talento bastante para ajudar na economia ou na propaganda, ainda que a pessoa sonhe com algo completamente diferente ou mesmo tenha talento incomensuravelmente maior em algo que não é medido por desinteresse governamental. Não só não se trata de um desenvolvimento natural, como na verdade acaba sendo o oposto disso, na medida em que é perfeitamente possível que uma pessoa tenha grande talento, mas pouco interesse em algo; sendo forçada a dedicar-se exclusivamente àquilo, ela na verdade definha como pessoa.
Quanto mais centralizado for o sistema de organização social, menos preparado estará para o brilhantismo e para a incompetência absoluta
Mais ainda: como o número de especialidades buscadas pelo governo central é extremamente pequeno e voltado para áreas ainda menores dentro do mesmo padrão, não apenas grandes talentos de áreas correlatas ficarão de fora (como, por exemplo, um grande melodista, como Tchaikovsky ou Paul McCartney, em favor de pianistas que mais parecem sequenciadores em forma humana, tocando com grande velocidade e sem beleza), como enormes áreas do gênio humano, muitas delas essenciais para a cultura, serão ignoradas. Basta ver, por exemplo, a medonha produção dos “poetas oficiais” soviéticos.
Numa sociedade organizada de baixo para cima, ao contrário, não só há espaço para o brilhantismo, mas será ele que a conduzirá. Isso por uma razão simples: cada pessoa pode cavar para si um nicho ecológico em que ela possa ser plenamente ela mesma, o que é a própria definição de desenvolvimento humano. Os brilhantes, exatamente por terem tais talentos, conseguem sempre, ou quase sempre, sobressair de algum modo. E, mais ainda, como a genialidade e a loucura frequentemente andam de mãos dadas, é provável que aqueles que têm enorme talento numa coisa, mas são idiotas completos em todas as demais, consigam quem os mantenha e ajude a “ordenhar” seu talento. Do mesmo modo, numa sociedade descentralizada, os laços sociais e familiares da ponta esquerda da curva do sino, ou seja, aqueles que são especialmente incapazes, conseguirão sempre torná-las membros ativos da sociedade, na medida de suas possibilidades.
Lembro-me, por exemplo, de um rapaz com Síndrome de Down numa cidadezinha onde morei. Ele era sempre chamado para descarregar caminhões e outros serviços que era perfeitamente capaz de desempenhar, recebendo em troca comida, roupas e o que mais lhe fosse necessário. Sabia-se que não se podia dar-lhe dinheiro ou comida para levar para casa, pois seus familiares os tomariam dele. É uma vergonha que eles o fizessem, mas ao mesmo tempo a sociedade inteira o ajudava a ultrapassar mais este obstáculo, numa vida já tão difícil. Este tipo de coisa é praticamente impensável numa sociedade centralizada, em que ele provavelmente acabaria sendo morto “para não pesar no bolso do Estado”.
Numa sociedade organizada de baixo para cima, não só há espaço para o brilhantismo, mas será ele que a conduzirá
O argumento mais forte dos defensores da centralização é que ela permitiria a racionalização da economia e da distribuição de bens. Já vimos, todavia, como essa racionalização na prática é impossível pela impossibilidade de discernimento do valor real dos produtos, causada pela ausência de um mercado flutuante. O mesmo, todavia, aplica-se também aos bens de natureza incorpórea, como os talentos, e é isso que vimos imediatamente acima. A centralização, portanto, na prática, acaba sendo uma forma de penalização dos que não se situam na média – na máxima mediocridade – social. E isso sem que ela seja de alguma forma benéfica para os que não se situam nas extremidades do espectro, na medida em que o que “puxa” a cultura (para nem falar da economia) de uma sociedade é justamente quem está situado à direita no gráfico, quem tem um talento muito acima da média. Uma sociedade centralizada, assim, torna-se uma sociedade estagnada, como se pôde facilmente perceber nas experiências de socialismo real do século passado.
Além disso, há ainda outro fator importantíssimo: o medo e a mentira, que andam de mãos dadas. Numa sociedade centralizada, é necessariamente feito um cálculo de produção futura de bens (a fazenda número tal produzirá tantas toneladas de batatas, por exemplo). Ora, esses exercícios de futurologia, além de inúteis economicamente por não se ter como prever a demanda de batatas (logo, determinar seu valor real, resultado da relação oferta/demanda), também são a causa imediata de um culto à mentira. Afinal, se houver por qualquer razão uma produção menor que a planejada (o que é ainda mais fácil acontecer quando a fazenda é comunitária, e não há um olho de dono para engordar o boi), o gerente de nível médio estará em maus lençóis se entregar a seus superiores uma produção (no papel) inferior à prevista. A culpa será sua, pois numa burocracia centralizada é sempre necessário que haja um bode expiatório, nem que seja pour encourager les autres. Assim, a única solução para ele será mentir. Mentir muito e sistematicamente. Apresentar sempre papéis em que a produção foi exata e precisamente a prevista. Por sua vez, o pessoal que trabalha com a previsão e com a distribuição, vendo chegar aos silos governamentais quantidade menor que a esperada, terá também de mentir. Mentir parece mais fácil que ir para a Sibéria por não ter como explicar a ausência de tantas toneladas de batatas!
A mentira passa, então, a ser parte integrante de todas as relações sociais. O temor da polícia política (pois sem uma polícia política não dá para centralizar nada; mesmo a miserável Cuba, que não produz quase nada, tem 1/17 da população trabalhando de uma forma ou outra para a polícia política!) faz com que o discurso de todo e cada cidadão seja não a constatação da realidade tal como percebida pelos sentidos, mas a reafirmação das mentiras sistemáticas, as mesmas mentiras que fazem com que a produção no papel seja igual à produção planejada, e as batatas faltantes que se lasquem.
Em uma sociedade centralizada, o medo e a mentira andam de mãos dadas
A sociedade, aprisionada pelo medo, passa a expressar sistematicamente uma falsa realidade, que convive a duras penas com o real. O discurso passa a ser quase uniforme, com cada cidadão sabendo o que deve dizer a cada momento, e um medo permanente de ser flagrado dizendo uma verdade leva muitos a introjetar a mentira de tal maneira que é a própria realidade que se torna duvidosa. Não são poucos os estudiosos que se debruçaram sobre o assunto, após a derrocada da Cortina de Ferro no século passado. O mesmo fenômeno do medo e da mentira erigidos em modo de viver, da mediocrização forçada da sociedade e da aparente irrealidade da própria realidade dos fatos foi identificada em cada um dos sistemas totalitários e centralizadores daquele século, inclusive o nazista.
Isto significa que um golpe militar no Brasil levaria forçosamente a tal estado de coisas? Não necessariamente, mesmo porque os governos militares que já tivemos jamais se interessaram por uma dominação totalitária da sociedade; eles foram regimes autoritários, jamais totalitários. Mas, por outro lado, quanto mais centralizada é a sociedade, mais medíocre e estagnada ela se torna, mais fácil e fluente surge a mentira nos lábios de seus cidadãos, e menos capazes se tornam os mais brilhantes de sobressair e os mais deficientes de sobreviver. Assim, não seria uma boa notícia nem um golpe militar levando a um crescimento da centralização governamental, nem um golpe liberal levando a um crescimento da centralização financeira típica do capitalismo. O ser humano não foi feito para viver numa sociedade planejada de cima para baixo; não somos formigas nem abelhas, indistinguivelmente fazendo nossa parte em prol duma rainha gorda, dedicada apenas à reprodução.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos