Camille Paglia observou com razão que suas colegas feministas não se dão conta da dependência da sociedade – ou, diria eu, da civilização, qualquer civilização – do trabalho dos homens. Não como líderes, manda-chuvas, acadêmicos ou qualquer outra coisa assim chique. Ela referia-se aos operários que instalam e reinstalam, após acidentes naturais, toda a infraestrutura necessária para a vida moderna: eletricidade, água, esgoto. Pode não fazer sentido que o corpo docente de uma dada faculdade seja composto apenas de homens, mas faz tremendo sentido que quase não se encontrem mulheres entre os operadores de máquinas pesadas ou no vasto corpo de técnicos que garante o funcionamento das entranhas da infraestrutura de que dependemos, mas em que raramente pensamos. Não, claro, por conta de algum tipo de preconceito, mas pelo simples desinteresse delas em participar desse tipo de trabalho.
Tive recentemente uma visita que me fez repensar tais assuntos: uma moça muito querida, que foi minha aluna e cuja formação acadêmica em Psicologia acompanhei, veio apresentar-me seu noivo. O rapaz é engenheiro mecânico. É quase um exemplo do que venho falando acima, e isso veio à baila nos papos que tivemos. Na turma dela da faculdade havia apenas dois rapazes, bendito-é-o-frutos numa vastidão borbulhante de mocinhas. E, dos dois, um tinha gostos e aparência, digamos, também borbulhantemente minoritários entre o sexo a que pertence. Na turma dele de Engenharia, nada curiosamente, a proporção era exatamente inversa. Lembrei-me, de minha parte, que na minha classe da escola técnica de Mecânica Industrial éramos 300 e tantos marmanjos para duas moçoilas. Já na faculdade de Engenharia de Produção, coisa nova e muito fina, ao que eu ouvi falar a proporção feminina quase chega à da Psicologia.
Pusemo-nos, à mesa, a conversar sobre tais aparentes desequilíbrios. Sugeri que a engenharia de produção, que de todo o campo das engenharias é talvez a mais voltada a processos que requerem manutenção e refinamento permanente, atraia as moças justamente pela complexidade. As demais engenharias, por outro lado, que buscam basicamente propor uma solução engenhosa para um determinado problema, jogar às mãos dos técnicos sua confecção e passar a outro assunto, tendem a atrair os rapazes.
Na minha classe da escola técnica de Mecânica Industrial éramos 300 e tantos marmanjos para duas moçoilas. Já na faculdade de Engenharia de Produção, coisa nova e muito fina, ao que eu ouvi falar a proporção feminina quase chega à da Psicologia
Ficamos a conversar até que deu a hora de eles saírem. Como vinha chovendo sem parar havia um bom tempo, dei-lhes a dica de pegar embalo antes de uma dada ladeira, para garantir que a fubequinha de tração dianteira não ficasse agarrada na lama. Debalde. Não tendo o rapaz o hábito de dirigir em estradas de terra, em breve voltaram os dois, pés sujos de lama, pedindo que eu rebocasse a fubequinha com nosso carro tracionado. E lá fomos nós, e lá mais uma vez se demonstrou a natureza diversa dos sexos, tão bem apontada por dona Camille.
Estávamos lá, debaixo de chuvas torrenciais. O engenheiro, debaixo d’água e enlameado até a medula, tentava achar o ponto de fixação de reboque do veículo. A bolotinha de lata, por sua vez, tinha uma roda em cima de um barranco e as demais na pista, fechando-a por completo. A psicóloga dentro do carro tracionado, a seco, sem saber o que fazer. Eu, aleijado, mas com experiência de jipeiro, também no seco, mas frustradíssimo por não poder sair à lama com o rapaz e fixar eu mesmo o bendito cabo.
Finalmente, ele conseguiu prender o cabo de tal modo que pudemos ao menos liberar o caminho para colocar-nos estrada acima e puxarmos para a frente o carrinho. Pusemo-nos à obra, e a barulheira dos motores imediatamente atraiu um morador das proximidades, cujo sexo creio ser desnecessário apontar. Afinal, que sexo seria atraído pelo barulho de motores e berros de “mais pra lá” ou “mais pra cá”, no meio da lama e debaixo de um temporal?! Seria sequer imaginável que uma moça saísse do conforto doméstico para, debaixo de chuva, ficar tentando empurrar na lama os carros de desconhecidos? É provável que haja uma que outra exceção a confirmar a regra, mas infelizmente não é o caso dentre as de minhas relações.
A coisa, claro, continuou a não ser nada simples. A lama não obedece às regras de atrito nas mesmas proporções que o asfalto, e quem tenta dirigir nela como se no asfalto estivesse tende a ir para todos os lados, menos para onde quer. Daí termos tido de prender e desprender – sempre em lugares aleatórios, já que ninguém sabia onde fica a bendita alça de reboque da fubequinha – o cabo algumas vezes. Com a calma sobrenatural das psicólogas, a noivinha pôs-se a tentar achar na internet a localização da tal alça, mas não conseguiu por falta de sinal.
Depois, então, atraído pelos feromônios de testosterona e pelos rugidos dos motores, eis que surgiu outro ser humano do sexo que se diverte com tais coisas. Comentei com a moça que, para homens, a lama e os motores a rugir, com cabos de aço potencialmente perigosos, barrancos e quetais, têm atrativo semelhante ao que uma moça indignada por ter sido traída tem para suas amigas. Assim como vão elas todas embeber-se das emoções da amiga traída e derramar as suas em compaixão, vão os homens atrás de oportunidades de heroicamente fazer força, masculamente encher-se de lama e inutilmente empurrar carros atolados. O inverso, claro, seria impensável.
E éramos, então, três homens jovens, na plenitude de suas forças e jorrando testosterona às mancheias, assistidos por um velho aleijado porém experiente a controlar a maior máquina presente, com o mais grave rugido. A chuva continuava a cair aos cântaros. A lama dificultava a movimentação até mesmo a pé. Mas, ao cabo de algumas horas, conseguimos não apenas livrar a estrada para que fosse possível ao próximo louco a enfiar-se nela (provavelmente meu filho, que ainda estava no trabalho) escorregar por ela abaixo, mas também acomodar, a duras penas, a pobre fubequinha num lugar de onde lhe seria possível tentar novamente pegar embalo e subir. Mas estávamos, como seria mais que previsível, exaustos.
Que sexo seria atraído pelo barulho de motores e berros de “mais pra lá” ou “mais pra cá”, no meio da lama e debaixo de um temporal?
Daí ter o casalzinho resolvido voltar para meu lúgubre tugúrio, onde tomaram banho, vestiram roupas emprestadas e passaram a noite. Em quartos separados, claro; o rapaz estava exalando testosterona, a moça sentia-se resgatada de um dragão feroz, e a tentação naquele momento seria a mais forte. No dia seguinte, pela manhã, as montanhas de testosterona fumegante que são meu filho e o rapaz foram levar o carrinho ao asfalto; tudo é mais fácil à luz do dia. Até agora, confesso, não sei se acharam ou não a alça de reboque daquela urbaníssima bolinha de lata.
O mesmo se vê em tantas e tantas outras ocasiões, e em tantas ocasiões se comprova o evidente: o ser humano é dividido – ou mesmo, como queria Platão, cindido ao meio – em seres diversíssimos. “Mulher é outro bicho”, observou sabiamente Tom Jobim. Mas ai de um sem o outro! A pobre feminista que originou o flatus vocis segundo o qual “a mulher precisa do homem tanto quanto um peixe precisa de uma bicicleta” jamais olhou para cima para observar quem consertava a fiação que lhe permitia ler à noite, ou para dentro de um buraco para ver a testosterona em ação, a garantir que quando desse a descarga os produtos de suas fabulações não voltassem pela torneira da pia.
Somos diferentes, graças a Deus; imensamente diferentes, com uma diferença que faz com que física, psicológica e espiritualmente precisemos um do outro como o outro precisa do um. Completamo-nos, tanto no casal, quanto na família, quanto na sociedade como um todo. Sem a mulher, o homem é um selvagem, dado a inutilidades absolutas. Basta ver, por exemplo, os soldadinhos a pintar os meios-fios de branco: é uma tentativa perfeitamente artificial de criar uma ordem, como a de um lar, numa aglomeração exclusivamente masculina. Ou o oposto, que se vê em cada “toca” de solteirão ou república de rapazes, onde via de regra imperam o caos e a desordem.
Isto, evidentemente, não faz de um sexo o “melhor” ou o “pior”; somos diferentes e complementares, e o pior é o que não encontra sua complementaridade no outro e se vê forçado a viver sem ter quem coíba seus exageros tóxicos (para usar o termo da moda), quem ordene seus impulsos vãos. Pois temos, ambos os sexos, nossas toxicidades. Tanto o homem só quanto a mulher só tendem à desordem, uma desordem que o sexo oposto foi feito para reordenar. A mulher é como um maratonista para o sprinter masculino; sempre digo que para levantar cem quilos por dez metros precisa-se de um homem, mas para carregar dez quilos por cem quilômetros precisa-se de uma mulher. Nós, homens, desistimos; elas não. Por outro lado, nós temos a mania, que sem a mulher não encontra seus devidos limites, de inventar novidades. Imagino o desespero da pobre mulher das cavernas quando seu esposo decidiu trocar a caverna por uma choupana de folhas de bananeira para ficar mais perto da origem da comida da família.
Só um homem ao ver um tronco queimado descendo o rio poderia ter a ideia de jerico – que nos levou as grandes navegações, quiçá à Lua! – de pular dentro e ver aonde ele ia. Mulher alguma seria idiota a tal ponto. Mas, por outro lado, o apego exagerado, desordenado, a uma dada ordem é atributo normalmente feminino. Vejam-se tanto as casas de solteironas (que jamais poderiam ser confundidas com uma casa de solteirão, convenhamos) quanto a atuação política do belo sexo. O Estado de Bem-Estar Social surgiu em decorrência do voto feminino, e a atuação político-ideológica da mulher é assustadoramente pura e radical. Nem Rosa de Luxemburgo nem Ayn Rand poderiam pertencer ao sexo oposto.
A mulher é muito mais inteligente que o homem, mas, como sua visão de mundo é muito mais complexa, é comum que ela leve muito mais tempo que um homem a chegar à mesma conclusão. Enquanto o homem no ponto A vê o ponto B e parte célere para ele, ignorando completamente tudo o mais que exista, a mulher tende a levar em consideração tantos fatores, tantos outros pontos, que entre A e B pode se perder. Daí a importância do grosseirão a puxar-lhe pela mão. Por outro lado, o homem tem a tendência a perder o interesse por aquilo que ocupou sua mente pouco antes; explica-se assim que tenham sido homens a criar foguetes que vão à Lua, mas todos os cálculos matemáticos necessários para que lá chegassem tenham sido feitos por mulheres. Os homens bolaram as fórmulas, mas não tinham a persistência tenaz do sexo feminino para aplicá-las a enorme quantidade de variáveis imensas. Há quem defenda, inclusive, que o autismo seria uma espécie de supermasculinidade neuronal, o que faz algum sentido.
Para levantar cem quilos por dez metros precisa-se de um homem, mas para carregar dez quilos por cem quilômetros precisa-se de uma mulher. Nós, homens, desistimos; elas não
O fato é que somos, felizmente, diferentes. E, mais felizmente ainda, somos complementares. E complementares em tudo, em todos os níveis: assim como raro é o homem que não estaria melhor com uma mulher, crianças estão melhor com pai e mãe e a sociedade depende de que as mulheres tenham voz e participação. Veja-se, por exemplo, as sociedades hipermasculinas como o Talibã, em que justamente o que é mais tóxico na masculinidade passa por ordenação social. O oposto – uma sociedade só de mulheres – é uma lenda antiga, mas que dificilmente terá um dia existido em forma desenvolvida justamente pela diversidade de interesses dos sexos. É demasiadamente alheio aos interesses femininos criar e manter semelhante sistema.
Já ouvi dizer, inclusive, que o maior desincentivo à participação de mulheres no programa nuclear americano tenha sido a declaração de Oppenheimer, ao ver a explosão da bomba atômica que vinha de criar: “tornei-me Morte, o Destruidor de Mundos”. E é possível; é o tipo de boutade que fascina os molequinhos e horroriza as meninas. A mulher, por ser o primeiro ninho da vida, prefere geralmente defender a vida. A destruição generalizada só lhe agrada quando o que é destruído é algo que ela perceba como uma ameaça a quem ela ama (formigas, baratas e ratos em casa, por exemplo... ou membros de alguma classe odiada na política ideológica). Já o homem, especialmente quando desprovido dos freios que lhe pespega a mulher amada, ama destruir, desmontar, desfazer. Matar.
Somos diferentes. Somos diversos. Somos complementares. E isto é ótimo, pois é o que nos possibilita o amor real – que não é mera emoção, mas entrega de si, reordenação do próprio ser. Sem que o amor nos ordene, é impossível que ordenemos o mundo. E sem a complementaridade dos sexos, qualquer tentativa de amor será mais próxima de Narciso que de Afrodite (que, na lenda, puniu-lhe o pecado do desamor). O um ordena o outro, e o outro ordena o um. E dos dois cria-se uma só carne, e daí uma família, e daí uma sociedade. Sempre complementarmente.
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