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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

A construção da feiura

(Foto: Oga_red/Pixabay)

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Ri muito, por estes dias, quando numas dessas raras rupturas de bolha de rede virtual uma enorme multidão de maquiadores e maquiadas descobriu, de algum modo, uma irrelevante postagem minha em que eu criticava a transformação efetuada pela farta aplicação de massa colorida no rosto de uma linda mocinha, numa espécie de releitura da banda Kiss efetuada por Romero Britto tentando imitar o estilo de Picasso. Em outras palavras, lascaram tanta maquiagem na cara da moça que ela ficou parecendo outra coisa, bem mais feia. E esta outra coisa, diga-se de passagem, está muito na moda: trata-se de um rapaz exuberantemente fantasiado de uma certa visão do sexo oposto, à la Pabllo Vittar.

Quando o saite feices retirou do ar minha postagem (por supostamente violar as regras que proíbem o bullying!, ou, antes, por violar a lacratividade geral das redes), havia mais de 1,7 mil comentários ofensivos. Foram lá fazer bullying comigo, em suma. Os mais gentis diziam “OK boomer” (assim, sem vírgula), mas a grande maioria simplesmente enfileirava palavrões ou me ameaçava. Pelo dito entre um palavrão e outro, era evidente que quase nenhum dos bulidores havia lido minha postagem. Tratava-se de puro comportamento de manada. Em todo caso, ri muito ao lê-los, e no fim das contas fiquei contente por o júri da lacração ter-me poupado o trabalho de apagar, um a um, todos aqueles comentários com termos saídos do esgoto. Convenhamos que algo tão absurdamente desimportante quanto a minha opinião sobre maquiagem não merece tanto trabalho.

Duas coisas, todavia, ficaram claras para mim. Da primeira eu já sabia: a mulher percebe a beleza como algo fabricado. A segunda, todavia, para um sujeito distraído como eu, estava ainda obscura, tendo-me sido contudo coloridamente esfregada na cara pelas reações das matilhas de maquiadores furiosos, acompanhados de uma que outra vítima complacente. É que a estética “drag” – a imitação do Pabllo Vittar e outros avatares da caricaturização do feminino sobre um suporte masculino – passou a ser buscada e aceita por muitas moças. Note-se que não estou falando simplesmente de maquiagens fantasiosas ou carnavalescas, como as da própria banda Kiss que usei na comparação visual acima, e sim de maquiagem “normal”, mas tão pesada, tão carregada, que na prática consiste em outro rosto superposto ao belo rostinho da moça. Vejamos, então, estes dois elementos, que merecem uma análise antropológica por sua importância no diagnóstico do quadro de decadência geral da nossa sociedade.

A maquiagem faz parte de um esforço deliberado e lindamente feminino de construir uma beleza para ela mesma

O primeiro deles é eterno. Sempre foi assim, e sempre será; faz parte da natureza feminina a percepção da beleza como algo construído. Lembro-me de minha avó dizendo à minha filha, décadas atrás, que “se doer está bonito”. Do mesmo modo, é fácil lembrar inúmeros exemplos extremos deste comportamento, dos sapatos que deformavam o pé das mulheres chinesas ao ponto de elas não conseguirem andar (não que pareça muito fácil andar num sapato de salto agulha em ruas de paralelepípedos, mas aquilo ia muito além do meramente doentio do salto agulha atual) ao envenenamento em massa das romanas pelo uso de chumbo como base branca para maquiagem, ou tantas outras formas de “construir” uma beleza para que as mulheres a reconheçam.

Afinal, como me foi lembrado inúmeras vezes pelo povo que veio bulir comigo, a mulher não se maquia para o homem, sim para ela mesma. Surpresa: eu já sabia. A maquiagem faz parte de um esforço deliberado e lindamente feminino de construir uma beleza para ela mesma (e, claro, talvez principalmente, mesmo, para as inimigas!). Poucas coisas são mais ofensivas para a mulher que elogiar – ou, horresco referens, preferir – a beleza de seu rosto assim que ela acaba de se levantar.

O homem, ao avaliar (e como avaliamos!; é quase impossível forçar-se a não o fazer) a beleza feminina, tende a observar o “conjunto da obra”: se a moça está bonita ou não, e não muito mais que isso. Os elementos que constroem a beleza que o homem reconhece, dos cremes que dão aparência jovem à pele da mulher às roupas, passando pelo corte de cabelo e tudo o mais, simplesmente não registram na mente do homem como tendo existência própria. São acidentes, que só existem em outro ser, não neles mesmos, dir-se-ia no vocabulário filosófico clássico. Já para uma mulher, a outra mulher é uma espécie de “pilha” de elementos a medir tanto intrinsecamente (“que cabelo horrível, cheio de pontas duplas!”) quanto na interconexão (“isso não combina com aquilo”). É toda uma outra forma de perceber a beleza, em suma, tão radicalmente díspar entre os sexos que é como se nós, homens, víssemos outro ser feminino, diferente do que as mulheres percebem.

É interessante observar que não se trata de algo, por assim dizer, solto no ar: é exatamente o mesmo mecanismo que a mulher usa para perceber, por exemplo, a ordem doméstica em todos os seus elementos, da limpeza às combinações estéticas. O homem, por seu lado, faz com a ordem doméstica coisa assaz semelhante ao que faz com qualquer outra ordem, percebendo-a em termos muito mais utilitaristas que estéticos, e não ligando muito para a coordenação dos elementos no que isto não tanja a fluidez dos processos.

As diferenças entre a percepção masculina e a feminina, afinal, vêm sempre de uma mesma base, de uma mesma diferença primordial que não há como negar ou inverter. Já dizia Tom Jobim que mulher é outro bicho. Somos, em muitos aspectos, como cães e gatos, vivendo no mesmo tempo e no mesmo espaço, mas em universos radicalmente diferentes. Temos enorme quantidade de comportamentos voltados apenas para os membros do mesmo sexo, assim como outros voltados para os do sexo oposto, sendo tudo, todavia, sujeito a uma ótica toda peculiar, em que os comportamentos voltados para o sexo oposto muitas vezes não são nem sequer reconhecidos conscientemente por este.

É por estas e outras que costumo dizer que, se existissem apenas mulheres, nós continuaríamos a viver em cavernas, mas seriam cavernas tremendamente aconchegantes e confortáveis. Já se houvesse apenas homens, dificilmente, tampouco, teríamos chegado a desenvolver casas de alvenaria, na medida em que para o homem “está bom assim” quando os processos em que nós vemos o ambiente doméstico podem fluir a contento. Tenho enorme pena da pobre mulher pré-histórica que, por amor e só por amor, seguiu o cônjuge na aventura tresloucada de abandonar a caverna para construir um abrigo de folhas de bananeira num lugar mais próximo à caça e à coleta. Ele certamente achou aquele primeiro passo rumo aos arranha-céus não apenas brilhante, como o viu como sendo de fato um presente para a moça, que teria de andar quilômetros a menos a cada dia para chegar àquela região em que as frutinhas eram fartas. Já para ela aquilo só poderia ser uma manifestação de loucura. Todo o cuidado por ela encetado na transformação do abrigo em um lar para dar conforto a seu cônjuge, entretanto, jamais terá sido reconhecido por ele.

Toda decadência é perfeitamente igual, recaindo sempre nos mesmos elementos de negação da realidade e valorização das pulsões e apetites mais básicos

Este processo de manejo e conexão de diferenças, contudo, que sempre proporcionou aos membros de ambos os sexos oportunidade e incentivo para a intercooperação e complementariedade demandadas pela dimorfia sexual da espécie, num momento de decadência terminal como o nosso vê-se desmanchado e sabotado. Lembro que toda decadência é perfeitamente igual, recaindo sempre nos mesmos elementos de negação da realidade e valorização das pulsões e apetites mais básicos. Pabllo Vittar estaria perfeitamente à vontade na decadência do Egito Antigo ou de Roma. A confusão sexual e a subsequente desvalorização das diferenças entre os sexos (em que se chega mesmo a negá-las liminarmente, ou transformá-las em fugidias impressões subjetivas, como na “ideologia de gênero”) é uma constante em toda decadência, e o que escrevo aqui poderia perfeitamente ser escrito acerca de acontecimentos e fenômenos sociais ocorridos em qualquer outra decadência social terminal, seja ela chinesa ou asteca.

Isso é basicamente o que ocorre quando se chega a esta fase da história duma civilização; a nossa é peculiar por ter ocorrido uma espécie de sobrevida, ou antes animação artificial de cadáver, durante os 500 anos da Era Moderna, em que sobrevivências da civilização que a modernidade tentou desmanchar puderam servir de apoio para as loucuras modernas. Foi apenas a partir do século passado, por exemplo, que o tremendo avanço tecnológico proporcionado pela visão moderna do mundo como objeto de propriedade e dominação ilimitada chegou a seu corolário lógico no genocídio high-tech dos campos de extermínio nazistas, dos bombardeios “em tapete”, ou dos atuais robôs assassinos voadores (que, para confundir, dizem-se equivocadamente “drones”, como se se tratasse dos simpáticos quadricópteros com câmera que pululam pelos nossos céus).

Sempre houve a imitação caricatural de membros de outro grupo, em geral com o objetivo de rebaixá-los ou percebê-los como menos poderosos. Quase toda tribo animista faz procissões com fantasias dos seres sobrenaturais que o mais os apavoram, como meio de diminuir-lhes o poder. Os “brancos” americanos costumavam pintar a cara de preto com rolha queimada para encenar espetáculos humorísticos em que se faziam de “pretos”. Até hoje, na procissão do fogaréu em Goiás, os romanos e judeus são representados de tal forma que fica fácil à audiência vaiá-los.

Sempre foi desta natureza a impersonificação do feminino por atores masculinos, visando, de uma certa maneira, “proteger” os homens da imprevisibilidade feminina e do imenso poder que tem a mulher núbil sobre o sexo oposto. Nos tempos de Shakespeare, por exemplo, tal como hoje ainda acontece em vários tipos de teatro clássico (o kabuki japonês, por exemplo), os personagens femininos são interpretados por homens. Ora, não é à toa que “personagem” seja a construção daquele ou daquilo por que soa (per-sona) não uma voz própria, mas as vozes do ator e do autor. A per-sonagem não é feminina em si, não é uma voz feminina; ela é, antes, uma aparência feminina pela qual se ouvem homens. E quanto maior o medo que ele tem mais caricatural, claro, será a feminilidade da personagem, exatamente como ocorria com os absurdos “judeus” representados na imprensa nazista, em caricaturas tão absurdamente extremas que apenas quem já estivesse imbuído daquele ethos poderia reconhecê-los como personificando judeus.

O fenômeno decadente (e repetido, já tendo estado presente em toda decadência anterior) do drag queen, literalmente a “rainha dragão”, é um exemplo claríssimo disso. A mulher, ou antes um suporte feminino caricatural pelo qual soará a voz dum homem, é nada mais nada menos que o monstro telúrico por definição. Sua majestade (“queen”) é ser um dragão (“drag”) que arrasta (igualmente “drag”) mesmo quem não quer ser arrastado. Enquanto para um homem normal, de sexualidade ordenada, a mulher é ao mesmo tempo um mistério inatingível, uma presença terrena de uma beleza que só pode ser transcendente, um ser telúrico de que magicamente surge a vida humana das próximas gerações, como a colheita da terra fértil, e uma mãe, uma irmã e uma filha, numa trama complexíssima de modos de complementariedade, para o homem que nunca tenha saído duma fase de medo e atração pela mulher, típica do início da puberdade, a mulher é antes uma rainha e um dragão, e é dragão na estrita medida em que é rainha. Afinal, ele não vê possibilidade de “domá-la” ou “domesticá-la”, não sendo sequer capaz de perceber que seria ela a domesticá-lo, jamais o contrário.

É esta a realidade por trás das personas ou personagens pseudofemininas do universo drag, de Divine, Ru Paul, Rogéria, ou Pabllo Vittar. Nota-se claramente a diferença entre esta visão agressiva e amedrontada do feminino e a assumida, por exemplo, por Roberta Close, que sempre tomou cuidado extremo em representar sem caricaturar. Mas esta ficou na noite dos tempos, e o avanço do processo de decadência, trazendo consigo o terror do feminino real, a inveja mesclada a ódio do útero e, mais ainda, a redução social forçada da complexa sexualidade feminina a uma emulação pauperizada e simplificada da masculina, surgida a partir da revolução sexual e da facilitação dos meios de contracepção hormonal, fez do drag o modelo da mulher.

A beleza é algo real e objetivo. Ela não está nos olhos do observador apenas, ainda que sejam eles os instrumentos de sua descoberta

A maquiagem, então – e é esta a afirmação minha que me valeu o bullying extremado por parte de tanto maquiadores quanto de suas vítimas contumazes –, passa forçosamente a não ser mais uma forma de ressaltar a beleza realmente feminina, na medida em que é justamente esta a fonte do terror de quem ficou preso numa fase anterior da descoberta das diferenças entre os sexos. Ao contrário: o maquiador usa de sua arte para esconder a feminilidade real da mulher, para transformá-la em uma caricatura do feminino tão melhor quanto mais se afastar da sua amedrontadora beleza inicial pela caricaturização extrema.

A moça da foto, que lamento enormemente não ter como usar neste texto por ter sido retirada sem autorização do portfólio dum maquiador, era extremamente feminina. A foto era apenas do rosto, mas parecia, ao menos nela, tratar-se de moça de físico mignon, toda pequena, macia, curvilínea e sensual, cujo maior trunfo na foto eram olhos tristes, mas acolhedores e cálidos. E foram seus olhos a vítima primeira da maquiagem com que ela foi transformada numa “diva” (na estrita medida em que Ru Paul ou Pabllo Vittar o seriam), seguidos pelo seu nariz de batatinha, que a afastava da caricatura como um nariz arrebitado num judeu o tornaria incompreensível para um nazista.

Ao fim e ao cabo, o que a maquiagem fez foi além do que já é um hábito comum entre os maquiadores atuais, de transformar sua vítima em uma Barbie genérica, desprovida das peculiaridades pessoais (como o nariz de batatinha) que fazem de cada mulher um ente fascinante e único. Ela revestiu a pobre moça de tamanha camada de tinta que a reduziu àquela caricatura, àquela mesmíssima caricatura, da beleza feminina que encontramos em qualquer drag: uma caricatura em que não é possível conceber a presença de um útero ou de capacidade de amamentação, cuja suposta feminilidade é antes um dragão ameaçador que uma terra fértil. Uma vagina dentata, devoradora, assustadora e totalmente desprovida de potencial maternal ou mesmo matrimonial.

Juntam-se, assim, a beleza como construção voltada a outras mulheres (e, no máximo, àqueles percebidos como “Aliados”, como o próprio maquiador ou estilista) e um fenômeno de decadência social que diminui a mulher pela elevação de uma caricatura do feminino, criando uma escola de maquiagem que diminui a tremenda distância entre a mulher e quem dela tem medo pelo expediente de negar a feminilidade real, substituída por uma caricatura originalmente feita para servir como forma de fazer soar vozes masculinas em corpos que imitam os femininos. Para os apaixonados pelo belo sexo, como eu, é uma tristeza. Para quem tem medo de mulher, pode ser uma boa notícia. E, finalmente, para quem não percebe nem tem como perceber inconscientemente o fato de estar servindo de bucha de canhão numa briga que não é sua, como as moças transformadas em drag, é simplesmente uma estética que não afirmaria nada que não um desejo de beleza.

A beleza, todavia, é algo real e objetivo. Ela não está nos olhos do observador apenas, ainda que sejam eles os instrumentos de sua descoberta. E esta beleza, no mais das vezes, passa pela adequação do percebido pelos sentidos àquilo que a coisa realmente é. Esta moda, por fazer exatamente o contrário, acaba por ter um efeito – não buscado conscientemente pelas moças, mas também não essencial – de diminuir a beleza feminina aos olhos masculinos, que percebem claramente o quanto a suposta beleza construída neste momento se afasta da iluminação sensível da mulher em si. Vicissitudes de vivermos em tempos interessantes, como na proverbial praga chinesa, diria eu. É apenas mais um, entre tantos outros elementos, em que a dissolução da sociedade cria vítimas de modo quase automático, sem que ninguém tenha tomado a decisão deliberada de vitimizá-las.

Note-se que não estou condenando o fenômeno da maquiagem em drag, apenas contextualizando-o e explicando suas origens e seu papel na determinação prática do estágio em que está a nossa civilização. Fazê-lo seria, aliás, como amaldiçoar as nuvens de granizo quando chega a sua estação; algo entre o patético e o inútil. É tão impossível evitar que esta fase da decadência ocorra quanto absurdo achar que pela condenação se a poderia reverter. Só o que se pode fazer é, percebendo claramente o que é sinalizado por ela, lidar com isto de maneira mais ordenada, procurando, ao menos em nossa vida e em nossas escolhas pessoais, tomar decisões acertadas. Ao menos quanto a como e quanta tinta aplicar no rosto duma bela moça.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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