A gripe espanhola faz 100 anos este ano. Cem anos, exatamente um século atrás, uma forma mutante do vírus da gripe matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas, provando-se quase tão mortífera quanto o comunismo. Um terço da população do planeta foi contaminado, e cerca de 5% dela pereceu. Uma pessoa em cada 20, para ser mais simples. Duas pessoas em cada sala de aula de escola ou ônibus. Uma dúzia ou mais por edifício ou vila. Alguns milhares de mortos por torcida dum jogo de futebol. Os corpos, em muitos lugares, tiveram de ser deixados à porta das casas, para que um caminhão os recolhesse à noite e os enterrasse em covas comuns, pois tamanho era o seu número que não havia nem funerárias nem coveiros que dessem conta. Na minha família, minha bisavó foi contaminada. Meu bisavô foi ao médico, chamá-lo para tratar da esposa. O médico recusou-se a ir, com medo de ser, ele também, contaminado. Meu avô tirou o revólver do bolso (eram tempos mais civilizados) e disse “vai, sim”. Ele foi, e minha avó se salvou. Bendito revólver!, mas maldita gripe.
O que causou a gripe espanhola continua no ar: a medicina moderna não faz a menor ideia de como lidar com doenças virais, e o vírus da gripe a cada ano apresenta formas novas, que hoje dizem vir, de alguma maneira, das aves do Extremo Oriente. Naquele tempo não se tinha este conhecimento, e a pobre Espanha levou a fama de uma doença de que foi vítima igual a qualquer outra nação. Hoje seria a gripe H9J15b, ou sei lá como é que arranjam essas letras e números, e rapidamente alguém descobriria que o paciente zero, a primeira vítima humana, a teria contraído de um pato num brejo na Mongólia, ou coisa parecida. Mas o fato é que continua tudo pronto para que ela venha, a sucessora, a Gripe Espanhola 2.0, a Gripe Para Acabar com Todas as Gripes, fazendo no terceiro milênio estrago ainda maior que o feito 100 anos atrás, quando era muito mais difícil a um vírus mal-intencionado viajar de lá pra cá e de cá pra lá. Hoje, do paciente zero na Mongólia a um paciente 15 em Pequim passar-se-iam dois dias, e dos contaminados pelo 15 nas vastas multidões pequinesas a novas contaminações em Nova York, Londres, Moscou, São Paulo, Cidade do México e onde mais se quiser seria questão de horas, não mais sequer de dias.
Vivemos num ambiente de controle artificial intenso, tanto do clima – o ar-condicionado, este amigo do peito dos vírus, é hoje ubíquo ao ponto de haver prédios e mais prédios que só são habitáveis com ele ligado – quanto da própria luminosidade ambiente, que faz com que se possa trocar o dia pela noite sem grandes dificuldades. Vivemos como se controlássemos o mundo.
De vez em quando aparece uma ou outra lembrancinha de que não é bem assim: um atropelamento, ou mesmo uma doença, nos leva alguém que acreditávamos, de algum modo, eterno. Mas a sociedade do controle vai enterrar – primeiro metaforicamente, no fundo de um hospital onde as visitas são controladas e ninguém precisa ver o doente se não tiver muita, mas muita vontade mesmo; e depois, literalmente, num cemitério – o afetado, e vamos conseguir continuar a fingir que temos o mundo em nossas mãos. Até mesmo a aids, que quando apareceu chegou a motivar piadas de mau gosto acerca de ser um fim natural para os homossexuais, com o coquetel de medicamentos atual chegou ao ponto de fazer com que haja gente que procure ativamente a contaminação, apenas para não ter mais de se preocupar com isso, tão pequena seria a diferença de qualidade e duração de vida entre contaminado e não contaminado. Para este público há hoje orgias profissionalmente organizadas, com centenas de pessoas, soropositivas e ainda-não-soropositivas, unidas na alegria de entregar-se ao prazer sem camisinha. É o controle. Nenhuma dessas pessoas consegue sequer conceber que não esteja tudo – a situação, o mundo, a doença – sob controle.
Pois é numa sociedade assim como a nossa que uma Gripe Espanhola Redux pode fazer mais estrago. Vivemos na falsa higiene dos restaurantes, em que o garçom pode usar luvas brancas, mas na cozinha reina a promiscuidade dos germes. Vivemos na falsa segurança dos hospitais, em que o sangue é, sim, já testado para aids – quantas mortes inúteis aconteceram até isso começar a ser feito! –, mas os técnicos não seguem as precauções de contato preconizadas nem nas doenças comuns. Imagine na próxima gripe espanhola.
Dizem que o Grande Terremoto de Lisboa chegou – em 1755 – para baixar um pouco a bola da sociedade iluminista que se acreditava já a petulante controladora do mundo. Sem ar-condicionado nem antibióticos, imaginem, eles já tinham esta arrogância que, arrogantemente, cremos ser os únicos a ter. Uma nova gripe espanhola, ocorrendo no nosso insolente século 21, seria psicologicamente ainda mais devastadora. E fisicamente, dada a nossa completa falta de preparo, provavelmente também se espalharia mais rápido e causaria uma devastação infinitamente maior. Espero em Deus que não nos venha nada assim; nossa sociedade certamente precisa de um cutucão, mas deixar os cadáveres de parentes e amados na porta de casa para o caminhão levar parece-me bastante além do desejável. Só não esqueçamos de que aconteceu, e pode acontecer de novo. Nem tudo está sob controle.
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