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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

"Democracia"

A hora da farsa

Região Sudeste é onde Lula obteve maior crescimento de votos na comparação com 2018
Lula faz discurso a apoiadores na Avenida Paulista após resultado das eleições. (Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação PT)

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“A História se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa”, escreveu Karl Marx – que, dizem, era conhecido como “o subversivo Marques” nos tempos da ditadura militar. Como é coisa rara que eu concorde com o supracitado subversivo, sendo outras minhas subversões, cito-o pelo nome. Afinal, poucas coisas são mais verdadeiras que isso, como podemos testemunhar em primeiríssima mão nestes nossos tempos interessantíssimos de dissolução e ressignificação pós-modernas das barbaridades ideológicas que tantos inocentes chacinaram no século passado.

A tragédia do século 20 foi ideológica, e as mesmas ideologias servem agora à farsa, ressignificadas e transformadas em nonsense digno dos irmãos Marx (sem parentesco) na pós-modernidade. Afinal, o que é a pós-modernidade a não ser a redução ao absurdo da mesma modernidade que nos deu as ideologias? Estas partiam do pressuposto moderno de que qualquer um pensando com força chega às mesmas conclusões. Pressuposto delirante, claro, como praticamente tudo o que é da modernidade, como comprovado pela necessidade moderna de matar no atacado quem não chegasse às mesmas conclusões. Como costumo dizer, Auschwitz, o gulag e as cadeias americanas são espécies do mesmo gênero.

Já na pós-modernidade esse pressuposto foi abandonado, ou mesmo invertido: hoje o pressuposto é que cada um vive numa realidade própria. Continua sendo delirante; afinal, se João bate em José, o mundo supostamente próprio do José é invadido pelo soco de João, e isso já mostra haver pelo menos algo que é próprio a ambos os mundos, o de José e o de João. Aquilo que os esquecidos aristotélicos chamamos de “realidade”. Mas o fato é que hoje cada um se acha livre para ignorar o que não quiser ver, dar foros de verdade àquilo em que quer acreditar e, mais ainda, ressignificar os termos que usa para tratar de coisas, dando-lhes um sentido novo, todo seu. Eis a receita para fazer farsas do que no século passado formaram-se tragédias.

Hoje, ao contrário do que se defendia antes, “antidemocrático” é fazer protesto na rua, “antidemocrático” é querer que os votos sejam contados ou recontados, e por aí vai. Uma ressignificação brutal

É, por exemplo, o caso da famosa “democracia”. É bem verdade que no século passado havia pelo menos dois sentidos radicalmente diferentes para a mesma palavra, a “democracia representativa”, com eleições e quetais, e a “democracia popular” em que um Partidão único mandava em tudo e em todos. Os sentidos, contudo, raramente se misturavam. Por aqui, na parte do mundo que não sofreu as agruras e tragédias do comunismo, o sentido era pressupostamente o primeiro.

Já agora, em meio à viagem lisérgica de ressignificação da pós-modernidade, a palavra ganha sentidos inauditos; alguns dentro do amplo espectro entre os dois sentidos do século passado e outros ainda mais doidos. Nos EUA, por exemplo – e nossa política vem copiando a de lá; vale a pena, por isso, tampar o nariz e examinar aquela –, apontam-se chusmas de supostas ameaças à tal democracia. É agora, por aquelas bandas, “ameaça à democracia” tudo o que difira do pacotinho de tabus próprios à esquerda daquele momento – pois outro elemento interessante da pós-modernidade é a transitoriedade extrema dos tabus, sempre trocados por novos, de tal forma que a adesão ideológica não é mais dada aos próprios tabus, mas à adesão àquela cadeia sem fim de substituições tabuísticas. Taí o caso da autora de Harry Potter, cancelada por manter-se fiel àquilo que seus canceladores hodiernos forçosamente afirmavam poucos anos atrás.

Essa “democracia” ressignificada como o projeto mutante da esquerda gringa abre portas a uma retórica que quem se mantenha preso ao sentido da palavra no século passado só pode ver como assustadora. Lá na gringa, uma récua de trumpistas patéticos, incluindo um sujeito vestido de vaca, deu num belo dia um rolê coletivo pelo Capitólio. Como escrevi aqui mesmo que aconteceria, a esquerda fez daquela turnê da Carreta Furacão um novo Incêndio do Reichstag, que serviu a Hitler de desculpa para tomar todo o poder na Alemanha. Aquelas figuras caricatas, mais desorganizadas que galinhas decapitadas e armadas apenas com a própria imbecilidade, viraram imediatamente “ameaça à democracia”, justificando medidas, estas, sim, frontalmente contrárias àquilo que era dito “democracia” na modernidade. Até hoje há um monte de presos políticos por lá, coisa que costumava ser o triste apanágio daquele lado do mundo em que “democracia” significava obediência ao Partidão.

O mesmo está ocorrendo aqui, claro. Afinal, a esquerda brasileira virou filial da americana, e basta olhar para o norte para ver qual será a próxima gracinha da esquerda brasuca. Ressignificaram “democracia” por lá? Então o mesmo forçosamente ocorre aqui. Já deram entrada no TSE tupiniquim, por exemplo, pedidos de inelegibilidade não apenas do bolsopresidente, mas também de praticamente todos os direitistas que tiveram votação excepcionalmente estrondosa. Difícil achar negação mais clara e mais aberta da famosa Voz do Povo que tentar impedir a eleição de quem tem mais votos; difícil, portanto, achar sinal mais claro da ressignificação do termo “democracia”.

Quando isso aconteceu no século passado – ainda que com o sinal trocado, com os milicos no poder cassando mandatos de esquerdistas –, foi unânime a grita de que aquilo foi antidemocrático. Já hoje, ao contrário, “antidemocrático” é fazer protesto na rua, “antidemocrático” é querer que os votos sejam contados ou recontados, e por aí vai. Ressignificação brutal. Seria uma tragédia se acontecesse no século passado, quando isso sinalizaria uma mudança da “democracia representativa” para “democracia popular”. Hoje é farsa.

É farsa, em primeiro lugar, pelo simples fato de não haver mais como sequer tentar impor um credo ideológico suficientemente estável para que possa servir de parâmetro pseudomoral para mais que uma meia dúzia de lacradores. No século passado, o cidadão soviético aprendia ainda criança aquele catecismo marxista-leninista que o guiaria a vida inteira, bastando aplicá-lo a cada situação nova para se manter nas boas graças do Partidão. Já hoje a única coisa constante no credo da esquerda é a própria inconstância. Uma senha que é mudada duas vezes ao dia é coisa assaz eficiente para garantir que a massa ignara seja alijada e assim identificar os membros daquela elite. Já para que se tenha controle sobre a massa o necessário é o oposto: a repetição constante, diuturna, de uma mesma coisa é o único meio de se obter a massa crítica popular necessária para a sustentação de um esquema de poder. Mais ainda num país como o nosso, em que felizmente o grosso da população tem mais o que fazer e não fica perdendo tempo com ideologias em perpétua mutação.

O que se terá há de ser a falência do Estado brasileiro, que mal se sustenta, que dirá consegue bancar as ditaduras dos amiguinhos do Lula América Latina afora

Daí, inclusive, o incontestável apelo do populismo, que em termos de voto foi o grande vencedor desta eleição. Até a persona do Lula que lhe deu votos era populista, quase tão populista quanto seu bolso-opositor. O discurso do populismo é muito mais atual, muito mais pós-moderno que o discurso jurássico das ideologias do século passado que ainda regem as maquinações petistas; esconder a ideologia e superpor-lhe um verniz populista foi simples questão de bom senso para os marqueteiros do PT.

Enquanto a ideologia tenta reduzir toda a riqueza da realidade a um único truquezinho retórico de base (“luta de classes”, “propriedade privada”, “despertar da nação”... cada ideologia tem o seu), o populismo reduz a política a apagar incêndios apontados por seus eleitores. Veja bem meu paciente leitor que o processo é oposto: o ideólogo precisa convencer uma massa crítica da população de que ele identificou acertadamente o problema (supostamente único) e sabe como combatê-lo, mas ao populista basta ficar esperto e fingir que cuida dos problemas que incomodam seus eleitores (criminalidade, saúde, imigração...). Dentro daquela visão de democracia representativa do século passado, o populismo seria a forma mais bruta de democracia. O populista não tem uma receita para a utopia, ao contrário do ideólogo, e por isso mesmo pode dizer o que o eleitorado quer ouvir. Lula negou apoiar a liberalização do aborto, por exemplo, mesmo isso sendo um dos pontos-chave da ideologia de seu partido. Nisso ele agiu como populista, exatamente como o bolsopresidente fez ao abandonar a plataforma eugenista ao percebê-la impopular.

Mas a farsa está aí, em curso. Foi uma farsa o esquema montado e orgulhosamente exposto na grande mídia, pelo qual tudo quanto é líder globalista mundo afora ligou para o Lula assim que foi anunciado o previsível resultado desta estranhíssima eleição. Foi uma farsa apresentar um Lula populista, quando sabemos todos que o Brasil – ou melhor, o suado contribuinte brasileiro – vai voltar a financiar os governos dos países que a esquerda faliu América Latina afora, vai voltar a fomentar a luta de classes, vai voltar, em suma, a tentar aplicar todo aquele bestialógico ideológico que nos fez tanto mal antes.

E, o que configura mais precisamente a farsa, vai tentar fazer isso não só sem ter massa crítica como sem ter sequer legitimidade aos olhos da maioria esmagadora da população que não lhe deu seus votos. Afinal, entre votos nulos e em branco, abstenções e bolsovotos, pelos números oficiais, foram 102 milhões de votos contra Lula versus cerca de 60 milhões a seu favor. A própria metamorfose ambulante que tomou o lugar das supostas verdades históricas do discurso da esquerda ideológica impede a conquista de uma base maior que aquela pequena parcela da classe média urbana que ainda dá ouvidos à lacração. Na prática, só o que eles têm além da paquidérmica máquina estatal é a mídia e – enquanto não divergirem os interesses – o STF.

Em outras palavras, o que se terá há de ser a falência do Estado brasileiro, que mal se sustenta, que dirá consegue bancar as ditaduras dos amiguinhos do Lula América Latina afora. Ao mesmo tempo, a irritação do grosso da população com os delírios lacrativos cada vez mais alucinados do discurso da esquerda tende a aumentar. O esforço já iniciado para garantir que não sejam mais apeados do poder – inelegibilidade dos direitistas mais populares, prisões de políticos não alinhados, sistema eleitoral opaco... – tende a acirrar-se, com devassas fiscais de opositores e demais armas burocráticas que estarão à disposição do PT a partir de janeiro. Isso tudo, no entanto, é tremendamente frágil pela falta não apenas de uma massa crítica de população que dê apoio a tais projetos como das preferências pessoais abertamente direitistas da maior parte dos membros das forças de segurança.

Mesmo sendo sempre possível “comprar” grande parte do oficialato com promoções e outras medidas burocráticas ao alcance dos donos da caneta, o grosso da tropa há de continuar irritada, e ter a irritação aumentada com o aumento do caos social que é praticamente certo. Quando a isso se somarem os projetos de desmanche das instituições militares e policiais já anunciado, a coisa tende a feder. Como disse a um amigo quando comentávamos sobre a ordem à PF de “ouvir” Marcos Cintra sobre seus tuítes, vai que eles realmente lhe dão ouvidos!

O que se configura, assim, é uma divisão digna da França pré-revolucionária, em que uma pequeníssima “nobreza” de petistas no comando da máquina do Estado perde em velocidade alucinada qualquer conexão com o grosso da população – que inclui não apenas os 100 milhões que votaram contra o Lula, mas também as dezenas de milhões que votaram num Lula populista que não durou nem até o dia da posse.

Quanto mais a máquina do Estado for orientada à transformação do Brasil numa imensa Cuba, menos capaz será o Estado de fazer o pouco bem que ainda faz

Já era de se esperar, como venho escrevendo há literalmente décadas, que o Estado moderno fosse deslizando aos poucos, na pós-modernidade, para uma situação semelhante à dos “reis vagabundos” franceses, que não mandavam nem nas próprias casas. O PT terá a máquina do Estado, mas não terá os meios de fazer com que suas decisões sejam seguidas, como se pôde ter uma prévia no caso da Polícia Rodoviária Federal no dia das eleições e nos dias imediatamente subsequentes. Tal tipo de desobediência militar e paramilitar tende a aumentar, mormente quando as ordens forem abertamente contrárias aos interesses dos grupos que deveriam fazer com que fossem cumpridas. Quando começar a atrasar pagamento, então, sai de baixo. E, tendo de bancar os governos esquerdistas de toda a região, isso não deve demorar.

A infame declaração de José Dirceu, no primeiro mandato do Lula, de que tinham o governo, mas ainda não tinham o poder torna-se ainda mais verdadeira hoje, pelo simples fato de que governo e poder vêm se descolando cada vez mais rapidamente. Se até o resultado da eleição o bolsopresidente tinha o governo, mas quase não tinha poder, depois dele é provável que até mesmo o bolsocafezinho chegue gelado, se chegar. E isso no caso de quem foi o Grande Eleitor, de quem criou um Congresso à sua imagem e semelhança, de quem tem – ou tinha – o apoio pessoal da quase totalidade dos militares e policiais do país. Imaginem como não há de ser para alguém que só tem gogó (mídia, apoio internacional, o amor infinito-enquanto-dure do STF...), sem Congresso, sem fuzis, sem gulag.

Estamos, em suma, mergulhando em mares tremendamente turbulentos, em que o desmanche pós-moderno das instituições modernas – que forçosamente segue o desmanche das narrativas que lhes davam justificativa – só tem como acelerar. Infelizmente, isso há de acontecer justamente pela tentativa esquerdista de voltar ao século passado, não por uma queda mais progressiva na irrelevância nas mãos de um incompetente não ideológico. Quanto mais a máquina do Estado for orientada à transformação do Brasil numa imensa Cuba, menos capaz será o Estado de fazer o pouco bem que ainda faz, sem que aumente um jota sua capacidade de “construir o socialismo” jurássico com que sonham os ideólogos a quem será dado o governo na virada do ano.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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