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A liturgia do cargo

Foto: Marcelo Andrade/Arquivo Gazeta do Povo (Foto: )

É bem verdade que José Sarney está longe de ter sido um presidente emblemático, ou mesmo decente. A indecência do senhor feudal do Maranhão (com outro feudo mais tardio no Amapá), contudo, manifestou-se quase que só na política porca e na corrupção que subiu a níveis estratosféricos em seu governo. A ele, todavia, é atribuída uma expressão que veio bem a calhar nos desgovernos petistas, e que agora, infelizmente, também se tornou algo de que aparentemente os maiores interessados se esqueceram: a “liturgia do cargo”. Esta liturgia, aos olhos de Sarney, talvez justificasse o jaquetão e, de certa forma, os fartos desvios do erário ocorridos em seu plantão. Vale tudo menos assustar os cavalos, algo assim. Não se tem como saber.

O que se sabe, contudo, é que o cargo de presidente da República herdou do trono imperial que por um golpe de Estado ele veio a substituir uma função cívica importante. O presidente da República brasileira não é um semideus como o da americana; ele é frequentemente alvo de charges e comentários, mesmo na grande imprensa, que seriam impensáveis naquelas terras cujo presidente é percebido como o sucessor de seres quase míticos, como Lincoln e Washington. Aqui, graças a Deus, não temos tais superstições. Ao contrário, até: tornou-se infelizmente comum que maus professores de História e mesmo cineastas dediquem-se a “desmitificar” o que jamais fora mitificado, mostrando dom João VI – que o próprio Napoleão declarou tê-lo feito de bobo – como um glutão a comer franguinhos, ou os presidentes militares como monstros canibais sequiosos do sangue de belas e inocentes vestais (como a Dilma, imagina-se).

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, diria eu. O presidente – mais ainda, o ofício de presidente – é um ofício representativo. Ele representa, de uma certa forma, a totalidade da nação que ali o colocou. É por isso que foram tão feios os atos dos desgovernos petistas, que do Planalto fizeram um balcão de comércio. Ou os de seus antecessores na dita Nova República, que, se roubaram menos, roubaram também e quase que da mesma forma, com os mesmos truques.

A “liturgia do cargo” evidentemente só teria a perder com a eleição de um meme, como foi o caso na última eleição presidencial. Bolsonaro passou o grosso da campanha numa cama de hospital, comunicando-se mal e porcamente pela internet. O seu discurso udenista de lei e ordem ressoou nos ouvidos – ou, antes, nas telas do zap – da população, e a internet o elegeu. Mas, enquanto Lula foi eleito por fazer o papel de “Lulinha Paz e Amor”, com sua barba grisalha e seu olhar terno dando a cada um dos basbaques que o assistiam pela telinha a impressão de uma cruza entre Papai Noel e um vovozinho bom que dá dinheiro ao neto como quem passa uma droga, Bolsonaro não teve isso. O Bolsonaro eleito foi uma série de frases, de “lacradas” (ou, antes, “opressões” – no bom sentido, claro), de fotos com um sorrisão aberto e óculos escuros em baixa resolução superpostos ao rosto. Ele chegou mesmo a vestir publicamente, antes do atentado, uma cópia desses óculos.

Em outras palavras, como disse acima, elegeu-se um meme. E como se pode querer que um meme venha a ter noção da liturgia do cargo? Como se poderia demandar que um meme tivesse alguma noção do que dá e do que não dá, do que é permissível ou mesmo tolerável entre amigos, mas que jamais o seria vindo do presidente, daquele personagem com uma faixa verde-e-amarela a cruzar-lhe o peito?

Disso tivemos agora farta prova, se as anteriores não bastassem, com a pisada na jaca carnavalesca que foi o tuíte, pelo próprio presidente, de uma cena imunda e asquerosa, que folgo por não ter visto, ocorrida no carnaval de São Paulo. Bom, eu não iria ao carnaval de São Paulo. Mas tampouco assistiria a vídeos postados pelo presidente. Menos ainda, claro, depois dessa. Já outros milhões de brasileiros assistem e vão. É certo que o fato de haver ocorrido em público, em plena luz do dia, aquilo que ele postou é um horror. Mas também é certo que ninguém, absolutamente ninguém deveria dar à filmagem disso qualquer divulgação que não no interior do inquérito policial criminal para que os que perpetraram tal ato fossem levados à cadeia, que é o lugar deles.

Comentei algo semelhante, aliás, durante as festividades momescas, acerca da enorme divulgação dada a uma palhaçada sacrílega cometida por uma escola de samba de São Paulo (pobre santo, se soubesse… Mas dizem que São José de Anchieta só foi canonizado com pistolão – o primeiro papa de sua congregação foi quem o canonizou – justamente por ter fundado São Paulo. Mas divago). Ora, pombas, “carnaval paulista” faz tanto sentido quanto “churrasco pernambucano” ou “moqueca gaúcha”. É uma contradição em termos. Se ninguém houvesse compartilhado fotos daquela besteira, ninguém nem sequer saberia da existência daquela escola – que dirá do seu desejo de infâmia via blasfêmia pública – fora do certamente minúsculo grupo de pessoas que prestam atenção em moquecas gaúchas, ops, em escolas de samba paulistanas.

Mas há ainda duas diferenças entre o Seu Zé que compartilhou a blasfêmia da escola de samba paulistana e o Seu Jair que compartilhou os depravados da mesma cidade: a primeira é o tamanho do horror compartilhado. Uma foto de um sujeito fantasiado de capeta gordinho e outro sujeito deitado ao chão, que só com a explicação se pode saber que representaria Nosso Senhor Jesus Cristo, não assusta ninguém que já tenha visto coisas mais abradacabrantes, como um quadro do grande Hieronymus Bosch. Já dois depravados fazendo das suas à luz do dia, em vídeo, é o tipo de coisa que espero em Deus ser poupado de ver. Ao vivo ou em vídeo. Difundir uma barbaridade dessas, por quem quer que seja, em qualquer lugar fora do devido inquérito policial, já é no mínimo um erro e uma descortesia com quem recebe o link. Tanto faz como tanto fez a legenda que se tenha posto junto ao vídeo. Tanto faz como tanto fez se ele – na melhor das intenções – esqueceu-se por um momento que tem milhões de seguidores e achou que estava em um banheiro de universidade. O fato é que algo como aquilo não se difunde. Ponto. Já é ruim demais que exista.

E – aqui está o segundo erro, e bem mais grave – fazê-lo é algo que se afasta tanto da dita liturgia do cargo que quase se dá a volta ao mundo ao ponto de ver-lhe o hirsuto traseiro. O presidente da República não pode se dar o luxo de cometer este erro. Que ele contrate alguém de confiança para verificar seus tuítes antes que eles os solte, ou que ele dê qualquer outro jeito, mas isso não dá. Simplesmente não dá. Ele ultrapassou qualquer limite de decência ao publicar tamanha abominação, e esfregou no chão urinado pelos depravados do seu vídeo a bandeira da República. O presidente da República, esse meme, precisa entender que ele agora é o presidente da tal República, não apenas um meme. Azar se o Trump faz igual (se bem que a este ponto creio que ele não tenha chegado). Tudo tem limites, e essa postagem ultrapassou todo e qualquer limite não só de um cargo tremendamente limitador em sua capacidade de expressão, que é o de presidente da República (sim, senhores: o presidente pode dizer menos que eu ou vocês. Não é lindo? Isto se chama democracia), como da simples decência a se esperar de um homem adulto.

E não me venham com explicações do tipo “ele levantou um espelho para a esquerda”, ou besteiras do gênero. Não. É verdade que a esquerda é useira e vezeira em fazer “artes” como as do vídeo a-presidencial em público, e mesmo de financiá-las com dinheiro público. E é exatamente por ser errado o que é feito (não só o financiamento) que reclamamos, e é exatamente por não querer saber de dedos encaixando-se na marra em orifícios do corpo destinados a outro fim que o Brasil votou em peso no Bolsonaro.

Não há explicação: foi um erro, e um erro grave, pelo qual o presidente deveria pedir desculpas à família brasileira, além de, urgentemente, procurar quem o ajude a não deixar que o erro se repita. Já vimos que em termos de superego a coisa está um pouco fraca por lá.

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