Os níveis obscenos de polarização na sociedade brasileira (ou, para ser mais realista, na classe média dela) chamam a atenção de todos. Já cansei de ouvir gente dizendo que corta relações até com irmão por conta de política, nestes tempos interessantes que vivemos. Não sei se por vício profissional de estudioso de História e Filosofia, mas não consigo ver esta situação sem, distanciando-me um pouco, examiná-la dentro de um quadro histórico mais amplo para entender de onde ela vem.
Historicamente, é evidente que estamos nas gerações derradeiras da Civilização das Luzes – termo que prefiro a “Moderna”, por abarcar um tempo e um sistema mais restrito. A Era Moderna já tem 500 anos, mas nossos tempos começaram com as Revoluções Americana e Francesa, pouco mais de 200 anos atrás. Esta há de ter sido uma era extremamente curta por qualquer padrão histórico. Em outras palavras, a brincadeira iluminista durou muito pouco. Começou ontem e já está acabando. Os sinais de decadência terminal são os mesmos de qualquer sociedade; Pablo Vittar estaria em casa nos últimos dias de Roma ou do Egito dos faraós. Aliás, Bolsonaro também.
A sociedade cujos estertores estamos vivendo teve seu auge no século passado, quando as ideologias rivais se engalfinharam nos campos de batalha. Fascismo, comunismo e capitalismo, os filhos das Revoluções Francesa e Americana, no seu auge dominaram grandes extensões de terra. A unidade de medida desta civilização é esta invencão moderna, o Estado-nação; cada um deles teve de escolher, por bem ou por mal, a quem se alinharia. O mundo ficou dividido entre as ideologias; primeiro o capitalismo e o comunismo se juntaram contra o fascismo, para logo depois entregarem-se à Guerra Fria entre eles. Para os ideólogos, para as ideologias, foi o ponto mais alto. O mundo parecia estar prestes a se tornar dominado por uma única ideologia, a pensar em conjunto de uma maneira única, formando uma mesma sociedade. Daí os tantos livros distópicos daquele tempo – Admirável Mundo Novo, 1984 e tantos outros – que pintavam um mundo futuro de padronização de comportamento controlada por algum tipo de aparato ideológico. Afinal, o pensamento ideológico característico desta era tem na imposição centralizada de uma opinião de mundo um seu ponto-chave. Não se pode ser capitalista numa sociedade comunista, e vice-versa.
Cabe, todavia, notar que todos os sistemas ideológicos apontavam para horrores em última instância parecidos. O pós-capitalismo distópico de Admirável Mundo Novo e o pós-comunismo distópico de 1984 são de certa maneira muito parecidos; se os heróis dos livros fossem trocados, seriam igualmente rebeldes na outra sociedade. Afinal, o que caracteriza uma sociedade é a crença comum em valores e princípios pelos quais se deve orientar a vida, e em última instância os valores materialistas de todas as sociedades de nosso tempo são iguais: deixando de lado tudo o que é mais caro ao homem – sua alma, a arte, o Belo, o amor –, tanto comunismo quanto capitalismo concentram-se na produção de riquezas materiais e na sua distribuição. O fato de o capitalismo ser na prática muito mais eficiente que o comunismo – que sempre gera a fome e a miséria – nessa geração e distribuição de riquezas materiais é em última instância irrelevante, na medida em que tudo o que é realmente valioso ao homem não é apreciado sistematicamente pela sociedade, caindo numa vala comum de “gostos pessoais”, junto com a gula, a luxúria, e tudo o mais que nos escraviza. Basta ver a internet: enquanto há nela quase todos os livros já editados à disposição de cada um, enquanto músicas de beleza quase infinita podem ser ouvidas por todos ao apertar de um botão, o grosso de seu tráfego consiste em vídeos pornográficos. Uma sociedade que coloca o Belo ao lado do vicioso será sempre dominada pelo vicioso; se há riqueza bastante para ambos chegarem ao alcance de todos, será o vicioso que terá a primazia. Tal é a natureza humana.
O ponto principal que desejo fazer aqui, todavia, é que o que se tinha no século 20, o único espetáculo político em cartaz, eram sistemas ideológicos apoiados em territórios controlados e medidos em Estados nacionais. Dentro de cada território, tinha-se uma unidade de pensamento (controlada na marra pelo Estado, mas existente). Todo comunista era pau-mandado de Moscou inicialmente; se não fosse, era forçado a entrar na linha rapidamente, como Orwell descobriu na Guerra Civil Espanhola. Do mesmo modo, não havia capitalistas antiamericanos. Com o tempo, o bloco comunista se partiu, com o maoísmo chinês se desentendendo com a condenação do stalinismo pela União Soviética, a Albânia tentando brincar sozinha etc., mas o que afirmo continua valendo. Cada partideco comunista era ligado a algum país, e toda manifestação pró-capitalista tinha no mínimo simpatia pelos EUA.
A luta, portanto, era por território, pela dominação dos corações e mentes da população de um determinado território, ainda que à força. Nenhum dos lados cogitava coabitar com o outro numa mesma terra, e ambos tinham a firme intenção de estender seu domínio por todo o planeta, fazendo o outro desaparecer. Daí o que foi dito na fundação do Foro de São Paulo: que os partidos comunistas ali reunidos reconquistariam na América Latina o que fora perdido na Europa Oriental com a queda da Cortina de Ferro. É ainda aquela visão do século passado que movia (e move) as cabecinhas pensantes da extrema-esquerda continental. O mesmo pode ser dito da tese de Fukuyama de um “Fim da História”, após a queda da mesma Cortina de Ferro, em que todo o mundo teria um sistema de governo (e em última instância civilizacional) igual ao dos EUA. Daí, finalmente, o delírio de Bush ao achar que, quando retirasse Saddam Hussein do poder, o povo iraquiano estabeleceria uma democracia à moda americana, em que as religiões seriam assuntos de foro privado e tudo o mais.
Aqui mesmo, no Brasil, sofremos no século passado o que, em última instância, foi mais um caso de proxy war, de guerra por procuração, entre a União Soviética (que apoiava os comunistas que, escorados em Jango, tentaram fazer o Brasil passar para lá da Cortina de Ferro) e os EUA (que, evidentemente, apoiaram a reação militar de 1964, ainda que apenas moralmente). Era uma briga de cachorro grande, que ultrapassava em muito as fronteiras brasileiras. Ela estava plenamente inserida dentro do panorama da Guerra Fria. As divisões dentro da sociedade brasileira estavam ligadas, por bem ou por mal, a uma relação com um dos superpoderes. Mesmo o nosso anticomunismo católico, que jamais topou os EUA, levantava-se contra o comunismo soviético, mais que a favor da Doutrina Social da Igreja. Era uma relação negativa, uma espécie de #elenão ideológico. Um #UniãoSoviéticaNão. Um #MaoismoNão. Um #CubaNão.
Já agora, a nossa polarização é de outro tipo. Ela não está mais ligada a projetos de controle ideológico de território, ainda que seja assim que pensem muitos dos líderes da extrema-esquerda. José Dirceu, por exemplo, agente confesso do famigerado serviço de inteligência cubano, disse recentemente que em breve “tomaria o poder”. Não apenas ganharia uma eleição, mas tomaria o poder, disse ele a quem quisesse ouvir. E aproveitou para dizer que tinha dois candidatos na disputa, Haddad e Ciro Gomes. Mas e este “poder” que o José Dirceu acha que vai tomar, onde está? Ao contrário do que aconteceria nos tempos em que ele era um assaltante de banco iniciante, hoje em dia Cuba não consegue bancar nada. Ao contrário; ela vinha sido bancada pela Venezuela, que já caiu na miséria e não tem mais como bancar ninguém. A China está mais interessada em vender besteiras e comprar matéria-prima que em implantar o maoismo puro e duro onde quer que seja (Sem contar que maoismo no Brasil ia virar piada depressinha. Se a mulherada aqui fosse forçada a usar uniforme, como na China de Mao acontecia com todos os cidadãos, elas iam inventar mais modas com os uniformes que as que já inventam com os abadás de blocos de carnaval na Bahia).
Em suma, não há hoje um centro comunista ao qual a extrema-esquerda possa atrelar-se, exatamente como não há um centro capitalista para fazer-lhe frente. Trump já disse que “se apaixonou” pelo ditador comunista da Coreia do Norte, aquele mesmo que manda matar parentes a tiros de canhão. Difícil imaginar algo parecido vindo da boca de qualquer presidente americano anterior.
Os polos da nossa polarização atual, ao contrário do que ocorria no século passado, são livres, não estão atrelados a nada. A própria interligação dos movimentos comunistas do Foro de São Paulo é mais parecida com a dos bispos das igrejas cismáticas do Oriente, em que todos estão em comunhão, mas só até sair uma briga mais feia (como parece estar para acontecer entre Moscou e Constantinopla por causa da Ucrânia), e ninguém é mais que um primus inter pares. O Lula era maior que o Evo por conta de o Brasil ter mais dinheiro para eles roubarem, mas só. Já é, vejam bem os senhores, uma interligação pós-moderna em sua forma. É como que uma rede social, não mais como um Partido Comunista do século 20, com centralismo democrático para coisas pequenas e ordens vindas de Moscou para as grandes. Hoje não seria mais possível haver um Comintern. Mais ainda, e aqui está o foco: não há mais nem sequer espaço no imaginário das pessoas para uma unidade de pensamento, nem sequer nos assuntos mais básicos e elementares (quem é homem e quem é mulher, por exemplo). A união em torno de valores e princípios que permite a convivência em sociedade acabou, e nada entrou em seu lugar senão redes de conexões que cada vez mais – por causa de algoritmos capitalistas – afastam as pessoas em vez de uni-las.
“Tudo que é sólido desmancha no ar”, escreveu Marshall Berman, e ele tinha razão. As formas de organização baseadas em território das ideologias do século passado desmancharam-se já. As ditas grandes narrativas, as estruturas de pensamento que eram mantidas por vastas extensões de pessoas, possibilitando a convivência pacífica num mesmo território, dissolveram-se como fumaça. O que é bom para mim não o é para meu próximo, e vice-versa. Todos estão em busca do Bem, todos se consideram pessoas boas, honradas e decentes, mas suas definições operantes do que seja bom diferem com tamanha radicalidade que é impossível chegar a um acordo ou mesmo a um meio-termo. E isso nos deixa com uma tremenda atomização da população que, ao contrário das polarizações dos anos 1930 e 1960, acontece sem referências externas. É #elesim contra #elenão, dentro de cada casa, de cada ambiente de trabalho, de cada lugar onde esteja a classe média, que é quem pensa nessas coisas. Os mais pobres são bolsonaristas ou não se interessam por política. Ou votam “no 13, porque diz que o outro vai acabar com o bolsa-família” (essa eu ouvi com essas orelhas que a terra há de comer).
Isso, essa polarização, essa divisão da sociedade sem ter em que se apoiar como os nossos pais se apoiavam na URSS ou nos EUA na sua polarização, é sinal de um estágio mais avançado de decadência da ordem social, em que as divisões tendem ao infinito. No Rio de Janeiro, há quem ache que o Comando Vermelho é bom e o Terceiro Comando Puro é mau; para mim, e certamente para meu caro leitor, a escolha é absurda, por serem ambos péssimos. Mas o que faz com que sejam péssimos? Qual é a autoridade que pode nos dizer qual é bom ou ruim? A sociedade não reconhece mais nenhuma, ao menos não unanimemente.
É por isso que estão em jogo coisas tão básicas quanto a sexualidade humana. Quando a ordem social se desfaz, revertemos às necessidades básicas: comida, abrigo, sexo. E tudo o que diz respeito a essas coisas torna-se tremendamente importante e, na fase em que estamos agora, exagerado. É por isso que temos uma variedade absurda de produtos alimentícios à nossa disposição em qualquer mercado, e é por isso que temos mendigos obesos mórbidos. A quantidade de variedades de sabor de, sei lá, gelatina dietética, é diretamente proporcional à quantidade de supostos gêneros presentes na sociedade. E à de músicas tocando nos fones de ouvidos das pessoas nos ônibus (cabe lembrar que o primeiro tocador de música digital chamava-se iPod, “casulo do eu” em inglês; o fone de ouvido é uma forma de abrigo).
Mas, voltando ao tema central, como a polarização atual não tem polos centrais, baseados em território, com um discurso unificador, etc., ela é uma polarização que não conduz a nada externo, mesmo em termos práticos. O José Dirceu nunca vai conseguir realizar seu sonho do século passado de “tomar o poder”, porque o próprio “poder” está se desmanchando no ar. O próprio Bolsonaro, com a sua vasta experiência no baixo clero da Câmara, tem plena consciência de que tampouco ele vai conseguir fazer metade do que quereria. E apoio militar de nada adiantaria para isso; só serviria para apressar o processo de dissolução das próprias Forças Armadas, já iniciado ao usá-las rotineiramente para ações policiais, como na intervenção do Rio. Qualquer um dos lados está sonhando se achar que vai botar ordem na casa ou proteger os oprimidos administrativamente. Isso acabou. Os alvos ideológicos estão vazios, caídos no chão desde a virada do milênio. É impossível desfazer a decadência, assim como é impossível construir um andar por cima de uma casa que está desabando, como querem os utopistas da extrema-esquerda. Se os próprios oprimidos com quem eles tanto se preocupam mudam a cada dia (os últimos a pular no bonde quando do batucar destas mal-traçadas foram os trans; amanhã teremos outros, depois de amanhã ainda outros, ad infinitum)! Isto é sinal de que já se desmanchou a possibilidade de uma leitura marxista ortodoxa da realidade atual, na valsinha de tese, antítese e síntese. Marx não previu decadência, nos seus delírios de Hegel de botequim.
O que estamos assistindo, na verdade, é ao fim da política no Brasil. Política, faço sempre questão de lembrar, é etimologicamente o mesmo que civilidade. O quanto mais esta falta, menos existe aquela. A partir do momento em que temos uma polarização que rasga as famílias sem que haja necessidade de ouro de Moscou ou de dólares para dar um empurrãozinho a nenhum dos lados, temos nada mais, nada menos que a política desmanchando-se no ar.
Assim, portanto, tendo pelo menos tentado expor rapidamente uma visão mais ampla do processo por que estamos passando, aponto novamente ao paciente leitor único que chegou ao fim desta algaravia interminável que isso tudo vai passar. Nenhum dos lados vai conseguir construir nada. Nem uma vitória do PT significa a implantação do comunismo, nem uma vitória do Bolsonaro implica em um retorno ao tempo dos governos militares, nem sequer a um retorno sistêmico a leituras mais tradicionais da sexualidade humana. Nem o tempo passado nem o pseudofuturo da extrema-esquerda conseguiriam jamais se implantar no momento atual. O tempo não se repete. Tudo está se desmanchando no ar, e os perigos são outros, muito diferentes. O colapso quase completo da sociedade do Rio de Janeiro, em que o governo formal perde cada vez mais espaço para milícias e gangues de traficantes (mesmo com o Exército lá), é um exemplo claro deles: o que aconteceu no Rio provavelmente ocorrerá também em outros lugares. Os apagões tendem a se multiplicar à medida que se dissolverem as complexíssimas engrenagens socioeconômicas necessárias para manter funcionando um gigantesco sistema elétrico interligado quase que pelo Brasil inteiro. E por aí vai.
Tendo isto em vista, será que dá pra voltar a falar com aquele primo? Ele é só bobo, não é malvado, não. Vai lá, vai. Fala de futebol, de novela, de qualquer coisa, menos de política. Assim fica bem mais fácil não brigar.