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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

A verdadeira Europa

O papa Bento XVI, em foto de junho de 2020. (Foto: Philip Guelland/EFE/EPA)

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Costumo dizer que um dos sinais de estar certo é irritar por igual ambas as alas ideológicas da Modernidade putrefacta. Pois Sua Santidade o papa emérito Bento XVI conseguiu fazê-lo mais uma vez, como aliás já é de costume – afinal, convenhamos, são pouquíssimos os intelectuais de seu calibre em nossos tristes e medíocres tempos. Seu último livro, que ainda não tive o prazer de ler, lançado por estes dias com prefácio do bom Papa Francisco, já o faz desde o título: La Vera Europa, Identità e Missione, “a verdadeira Europa, identidade e missão”.

Afinal, uma das maiores questões lá naquele pedacinho de terra é justamente esta: o que é a verdadeira Europa? Qual é sua identidade, e qual seria sua missão? As respostas à esquerda e à direita, como de hábito, confundem mais que ajudam. A esquerda europeia parece perdida, negando à Europa até mesmo uma identidade própria. Ela seria aos olhos deles, de uma certa maneira, algo como a (falsa, falsíssima, e mesmo assassina) tabula rasa dos experimentos de colonialismo de povoação de há alguns séculos. A chegada de multidões de imigrantes de culturas diferentes, mormente de maometanos, seria quase que uma povoação de um território “vazio”.

Este vazio, num ciclo vicioso, vem da recusa sistemática à reprodução por parte dos europeus “de raiz”. Faltando jovens, importam-se imigrantes, que nem mesmo se tenta assimilar a uma identidade europeia – que afinal se quer apagar, ou mesmo negar. A presença dessas multidões de gente diferente – mais ainda, de seguidores da religião que por tantos séculos foi a maior inimiga da identidade europeia – parece dar juventude, sangue novo, às velhas cidades europeias. Estando eles ali, diminui ainda mais a vontade de reproduzir-se da esquerda; os recém-chegados já o fazem por eles. Em outras palavras, é uma espécie de suicídio civilizacional, em que tudo, absolutamente tudo o que lembre a origem, a identidade e a missão europeias tradicionais (inclusive bebês de famílias “de raiz”) é voluntariamente descartado.

O que é a verdadeira Europa? Qual é sua identidade, e qual seria sua missão? As respostas à esquerda e à direita, como de hábito, confundem mais que ajudam

Já a direita prega uma Europa mentirosa, fechada sobre si mesma e apoiada antes na negação (do comunismo, do maometanismo, da mestiçagem étnica...) que em alguma afirmação. Os poucos países governados pela direita são antigos satélites soviéticos. Eles, com razão, têm horror ao esquerdismo, e tentam agora afirmar uma identidade nacional negada e sufocada pelas longas décadas de chumbo do lado de lá da Cortina de Ferro. Esta identidade, todavia, é falsa, tão falsa quanto o “vazio” civilizacional enxergado pela esquerda. É uma reconstrução artificial, tão artificial quanto os neopaganismos da moda ou – para pegarmos um exemplo tupiniquim do mesmo fenômeno – a substituição do Papai Noel pelo “Vovô Índio” proposta pelos integralistas pouco menos de 100 anos atrás.

Um simples exemplo basta para mostrar a enorme diferença entre a cultura europeia tradicional e sua reconstrução ideológica pela direita atual: os judeus asquenazitas, chacinados aos milhões pela besta nazista, falam um dialeto do alemão. Todavia, o centro de sua sociedade, o lugar onde mais se os encontrava e onde os psicopatas nazistas montaram seus campos de extermínio em escala industrial, era a área tradicionalmente polonesa e lituana, não os lugares de fala germânica. O campo de Auschwitz, que acabou por tornar-se símbolo daquela porta do Inferno que se abriu na terra, está hoje em território polaco. Mas o que cargas d’água fazia com que os judeus da Polônia falassem uma espécie de alemão?!

Simples: eles chegaram lá como refugiados, fugindo dos maus-tratos e mesmo assassinatos (ainda perpetrados “artesanalmente”, por assim dizer, na forma de pogroms e linchamentos) já frequentes na atual Alemanha havia mais de um milênio. São Bernardo de Claraval foi certa feita enviado àquelas terras pelo papa para tentar convencer os alemães a deixar os pobres judeus em paz. Isto coisa de 900 anos atrás.

Já na Polônia, justamente por se tratar de país muito mais fortemente católico, os judeus puderam estabelecer-se em paz. Devido ao “distanciamento social” desejado por ambas as partes, os judeus moravam em aldeias próprias, cuja língua era o bendito dialeto alemão. Ao redor, os camponeses falavam polonês, lituano ou algum outro dialeto eslavo mais obscuro.

Hoje, contudo, os governos direitistas da Europa oriental recusam-se a receber quaisquer refugiados. Mesmo nações construídas a partir da assimilação de imigrantes (a Hungria, por exemplo, onde os hunos finalmente acalmaram e civilizaram-se) recusam-se a recebê-los, por razões ideológicas. Até mesmo o triste horror do racismo tem crescido por aquelas bandas. Aparentemente é impossível para aquela gente toda, de ambos os lados do delírio ideológico, chegar a um meio-termo em que se aceite o imigrante (“amai os estrangeiros, porque vós também fostes estrangeiros na terra do Egito” – Dt 10,19), mas se busque ativamente fazer dele um nacional, misturando-o, assimilando-o à cultura da região e transmitindo a ele aquela identidade e aquela missão europeias. Em duas ou três gerações, fosse feito o esforço, o neto ou bisneto de maometanos seria um feliz consumidor de cerveja e linguiça no Norte, ou de vinho e presunto no Sul.

Mas não, ninguém consegue fazer isto, tão firmemente plantados estão os antolhos ideológicos que impedem que os desenraizados europeus de hoje percebam a realidade. Enquanto uma parcela comete suicídio civilizacional (ou mesmo individual: em alguns países europeus, a taxa de suicídios de jovens é semelhante à nossa altíssima taxa de homicídios na mesma faixa etária!), a outra tenta construir-se um teatrinho de Europa em que ninguém de fora é bem-vindo, em que o “sangue” conta mais que o pertencimento civilizacional.

Aparentemente é impossível para aquela gente toda, de ambos os lados do delírio ideológico, chegar a um meio-termo em que se aceite o imigrante, mas se busque ativamente fazer dele um nacional, assimilando-o à cultura da região

Esta negação da realidade é o corolário do raciocínio moderno, em que a ideia, a ideologia, existe mais que a realidade, em que, em vez de julgar a ideia por sua adequação à realidade, julga-se a realidade por sua adequação à ideologia (e para quem não se adéque criam-se campos de concentração e extermínio). Perde-se – e aí já avanço na migalhinha de texto que, como primícia ou amostra, foi publicada na internet – até mesmo a noção do que é o ser humano. Esta perda, aliás, digo eu, é o que permite maltratar o estrangeiro; quando primeiro se o desumaniza, torna-se fácil negar-lhe o copo d’água que não se negaria jamais a outro ser humano.

Mas Sua emérita Santidade foi mais longe no seu diagnóstico, apontando como exemplo claríssimo desta perda de noção do que seja o homem a negação até mesmo do fato básico e elementar de sermos ou bem homens ou bem mulheres. Nega-se a “certeza basilar de que o homem existe como macho ou como fêmea; que a transmissão da vida é uma tarefa humana; que a própria união de macho e fêmea serve a esta tarefa; e que nisto, além de todas as diferenças, consiste o matrimônio – é uma certeza fundamental que até hoje foi sempre óbvia à humanidade”. Mais ainda, aponta Bento, está-se “a contradizer todas as culturas humanas que existiram até hoje, numa revolução cultural que se contrapõe a toda tradição da humanidade até o dia de hoje” ao equiparar a união antinatural e infértil de pessoas do mesmo sexo ao matrimônio, célula elementar da sociedade onde são concebidas e educadas as próximas gerações.

Em outras palavras, todo e qualquer ser humano de todo e qualquer momento no tempo, com a triste exceção daqueles que a ideologia cegou à realidade, percebe que a união conjugal é algo único e precioso. Percebia-o e percebe-o ainda até mesmo um polígamo, até mesmo quem não tenha interesse algum pelo sexo oposto, até mesmo quem escolheu a castidade, ou mesmo o mais alucinado bacante. Todos sempre perceberam esta obviedade, talvez a maior de todas as obviedades: ou bem somos do sexo masculino, ou bem somos do sexo feminino, e é apenas na união de um com o outro que surge a vida. Esta união, que pode tomar formas acidentais diversas em culturas diversas, é essencialmente diferente de qualquer outra forma de união. É impossível – ou sempre foi impossível até que alguns poucos chegassem a tão avançado grau de loucura e cegueira diante da realidade dos fatos – confundir a união matrimonial com o amor fraterno, materno, paterno ou filial. Com o amor de grandes amigos. Ou mesmo com essa outra realidade, que a esta deveria ordenar-se, do desejo sexual.

Curiosamente, aponta Bento, o “movimento ecológico descobriu o limite do que se pode fazer, e reconheceu que a ‘natureza’ estabelece-nos uma medida que não podemos impunemente ignorar, Contudo, ainda não se concretizou uma ‘ecologia do homem’.”

Estamos aqui em terreno cabuloso para a Modernidade. Afinal, é premissa no pensamento moderno que não exista uma “natureza humana”. Mais ainda: faz-se, por vezes propositadamente, por vezes por ignorância, uma tremenda confusão entre dois sentidos do mesmo vocábulo. Assim como chamamos de “mangueira” a árvore, o tubo de borracha e a escola de samba, chamamos “natureza” a ao menos duas coisas muito distintas. A primeira delas, em termos puramente quantitativos de uso no discurso atual, identifica “natureza” como aquilo que independe da ação humana; um bicho perdido na cidade é “devolvido à natureza”, ou seja, retirado da interação humana, ao ser solto numa floresta. A floresta é “natureza”, assim como os ecossistemas do fundo do mar.

O segundo uso, ligado à boa filosofia do Estagirita, chama “natureza” àquela essência que todos os indivíduos da mesma espécie têm. A natureza do gato, por exemplo, é o que faz com que um gato e um cachorro sejam seres distintos e inconfundíveis, e com que – via de regra – o que a agrada a um gato (um lugar macio e quentinho para deitar-se, um camundongo para caçar...) agrade também aos demais gatos. A natureza equina é o que todos os cavalos têm, sendo cada um deles, por assim dizer, um “exemplo” vivo de tal natureza. É impossível confundir um cavalo, um camelo, um cachorro, um gato... ou um ser humano. A natureza humana, que a Modernidade nega liminarmente, é o que faz com que uma pessoa, um chimpanzé (das profundas de seus noventa e muitos por cento de semelhança genética conosco), um camelo ou um gato distingam-se imediatamente um do outro. Nenhum chimpanzé é capaz de enunciar (que dirá apreender a noção!) os porcentuais de genes que partilha conosco, tocar um instrumento ou escrever uma poesia. Um cachalote, com seu cérebro cinco vezes maior que o nosso, não vai além dos instintos que lhe orientam a existência. Não lhe seria possível sequer entender que seu cérebro é tão maior que o nosso, ou mesmo que ele tenha cérebro.

Nenhum chimpanzé é capaz de enunciar (que dirá apreender a noção!) os porcentuais de genes que partilha conosco, tocar um instrumento ou escrever uma poesia

E esta natureza humana, como toda natureza, tem fins definidos. Sentimos fome para que comamos, e sentimos desejo sexual para que cresçamos e nos multipliquemos. Assim como a pessoa que tem desejo de comer terra demonstra uma desordem interna (no caso, verminose), a pessoa que sente desejo sexual por um ser que não lhe é complementar, com quem é impossível conceber e gestar uma nova vida, manifesta ela também uma desordem interna.

Com a confusão terminológica apontada acima, há quem diga que o fato de cachorros montarem outros do mesmo sexo seria uma “prova” de ser “natural” (logo, em tese, ordenado) o desejo por quem não nos complementa, com quem não podemos conceber uma nova vida. Mesmo que se deixasse de lado o simples fato de que os cachorros usam o ato de montar noutros como forma de demonstrar ou exigir submissão – um pouco como, infelizmente, acontece nas cadeias, em que o mais fraco “vira mocinha” do mais forte –, o fato de algo ocorrer sem intervenção humana não torna o ocorrido “natural”, na segunda acepção acima. É natural, nesta acepção, aquilo que é orientado ao seu objetivo, ao seu fim.

Difere o homem das bestas, todavia, também na sua capacidade de negar a própria natureza, de ir contra os fins próprios. Mais ainda: ao contrário dos animais irracionais, que seguem sempre seus instintos (inclusive o de montar noutro para demonstrar superioridade), o homem e só o homem pode escolher o mal. A desordem. O prazer desligado de seus fins próprios. Temos hoje em dia até mesmo diáfanas películas de mentol ou biscoitos “isoporitos”, que agradam ao palato sem nutrir o organismo. Dizem que os romanos tinham “vomitórios” onde esvaziavam o estômago, como uma pobre mocinha com transtornos alimentares, apenas para poder sentir novamente o prazer da degustação.

Um cachalote não escolhe fazer o que é errado, mesmo com seu cérebro imenso, e muito menos racionaliza seu erro para convencer-se de estar agindo corretamente. Só o homem é capaz de fazê-lo, e o faz a todo instante. O errado, porém prazeroso, atrai o homem muito mais que o correto, porém doloroso. O homem, e só o homem.

Mas eis que hoje temos a ecologia, o estudo dos intrincados ecossistemas que fazem com que todas as formas de vida irracionais de uma floresta convivam e possibilitem por seus atos instintivos a manutenção de tantas outras formas de vida. Aponta sabiamente o papa Bento que esse estudo nos força a perceber a necessidade de ordenação à natureza (na segunda acepção) de cada ser. É ao agir como o ser que é que cada forma de vida participa do ecossistema. O sapo age como sapo, não como árvore ou mosquito. Os fungos que ligam as raízes das árvores não poderiam ser substituídos por outros, menos ainda por formas de vida mais diversas; é ao agir de acordo com a própria natureza que eles dão sua indispensável contribuição à manutenção daquele ecossistema.

Já o homem, ah, o homem! Erramos. Mentimos para nós mesmos, racionalizando nossos erros para que possamos dizê-los acertos. Negamos, neste estágio tardio e decadente da Modernidade, até mesmo aquelas obviedades, aquelas certezas basilares dentre as quais salta aos olhos a natureza complementar dos dois “tipos” básicos de ser humano, o macho e a fêmea.

Tal como um peixe não sabe estar molhado, nós mesmos nem sequer percebemos, no mais das vezes, como a sociedade como um todo, na sua cegueira ideológica, fez do prazer, não da geração da vida, o sentido e o objetivo do sexo

O “truque” que possibilitou esse desligamento, esta cegueira absoluta, indica-nos o papa emérito, foi a possibilidade de desconexão de sexo e reprodução dada pela famigerada “pílula”. Um comprimidinho de veneno (pois o que faz com que o corpo fique desregrado não é remédio, mas veneno) a cada dia, e é quase possível esquecer para que serve aquele ato tão prazeroso que nos atrai à reprodução. Nisto, aliás, segue Bento na linha de seu antecessor, São Paulo VI, que na magistral encíclica Humanae Vitae apontou profeticamente os horrores que foram se alevantando nas décadas seguintes, causados e possibilitados pela desconexão entre sexo e reprodução. Denunciou antecipadamente o santo pontífice que a pílula reduziria, ou mesmo negaria, a reverência devida à mulher, tornando-a mero instrumento de satisfação do desejo masculino. Objurgou ele que a infidelidade matrimonial – inclusive na forma de divórcio – subiria às alturas. Previu ainda os horrores da obrigatoriedade da contracepção em regimes ditatoriais, como o chinês.

E eis que hoje tudo aquilo e muito mais já é o infecto ambiente em que vivemos. Tal como um peixe não sabe estar molhado, nós mesmos nem sequer percebemos, no mais das vezes, como a sociedade como um todo, na sua cegueira ideológica, fez do prazer, não da geração da vida, o sentido e o objetivo do sexo. E, mesmo na Europa, especialmente na Europa, tornou-se obrigatório negar o óbvio, proibido reconhecer o natural, vedado lembrar que há todo um mundo lá fora, além da cegueira ideológica.

Na Finlândia – que cedeu o título de “fim do mundo” a nossas plagas sulamericanas, sem contudo mudar de nome –, a médica Päivi Räsänen (na medicina acaba sendo impossível negar a realidade dos fatos, pois o tratamento que funciona numa mulher não funciona necessariamente num membro do sexo que lhe é complementar), mãe de cinco filhos, deputada e ex-ministra, está na iminência de ser condenada a dois anos de cadeia. Seu crime foi postar numa rede social um trecho da Sagrada Escritura, lembrando a realidade num momento em que todos fecham os olhos à nudez do rei.

Escreveu São Paulo Apóstolo aos romanos, e tuitou a boa doutora aos seus compatriotas: “Deus os abandonou aos desejos do seu coração, à imundície; de modo que desonraram os seus corpos em si mesmos, eles que trocaram a Verdade de Deus pela mentira e que adoraram e serviram a criatura de preferência ao Criador, que é bendito por todos os séculos, amém. Por isso Deus entregou-os a paixões de ignomínia. Efetivamente, as suas próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a natureza, e, do mesmo modo, também os homens, deixando o uso natural da mulher, arderam nos seus desejos mutuamente, cometendo homens com homens a torpeza e recebendo em si mesmos a paga que era devida ao seu desregramento”.

Ora, o que fez da Europa Europa não foi a lenda da bela princesa deste nome seduzida por Júpiter na forma de um touro branco, que a teria raptado e nadado com ela no dorso para o Ocidente. Tampouco foi a cor da pele de seus habitantes, ou a mutação que lhes permite beber leite mesmo depois de adultos. Não foi o engenho e arte, ou a música, ou a lei romana. A Europa tornou-se Europa quando à infraestrutura proporcionada pelas legiões romanas uniu-se a lógica grega e o culto perfeito ao Deus Uno e Trino, que é o Caminho, a Verdade e a Vida. O amor cristão. O perdão, setenta vezes sete. O reconhecimento de uma dignidade excelsa em todo homem, desde a Encarnação do Verbo conatural da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. A Europa, em suma, surgiu no culto comum à Verdade, à mesma verdade que, já apontava o Apóstolo quase dois milênios atrás, sendo trocada pela mentira leva à ignomínia e à negação ativa da própria natureza.

E, mais ainda, aponta o bom pontífice emérito: essa separação antinatural de sexo e vida, esta distorção que faz do prazer o fim do sexo, como se o fim da alimentação fosse agradar ao palato, conduz inexoravelmente ao desprezo pela vida.

A Europa tornou-se Europa quando à infraestrutura proporcionada pelas legiões romanas uniu-se a lógica grega e o culto perfeito ao Deus Uno e Trino, que é o Caminho, a Verdade e a Vida

A vida que passa a ser como que encomendada, planejada, tecnocraticamente planificada pela normalização da infertilidade que a pílula proporciona, passa também a poder planejar seu “término” – posto que a Eternidade que nos chama é ignorada na cegueira moderna. Escreveu o sábio Bento que a vida humana “não é mais um dom recebido, mas um produto planejado do nosso fazer, logo algo que também se pode destruir. Neste sentido, a crescente tendência ao suicídio como fim planejado da própria vida é parte integrante desta tendência que descrevo”. A suas palavras eu poderia também acrescentar os horrores da eugenia e da eutanásia. Cria-se terem tais “modas” satânicas ficado para trás com a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra, mas eis que ressurgem a cada momento em metástases imprevistas, ainda que no fim das contas nem um pouco surpreendentes. Dizem haver idosos na Holanda que se recusam a adentrar os hospitais do próprio país, por saberem ser alta a chance de serem “eutanasiados”, ou seja, assassinados pelos médicos que os deveriam curar.

O pontífice gloriosamente reinante, Francisco, em seu prefácio às palavras de seu predecessor, afirma com razão que “[h]oje na Europa a própria ideia do respeito devido a toda vida humana vem se perdendo mais e mais, em função da perda da consciência de sua sacralidade, mais exatamente em função do ofuscamento da consciência de sermos criaturas de Deus”. Pois é isto que se vem perdendo que compôs e deveria ainda compor la vera Europa, a verdadeira Europa: a diferença crucial entre a civilização europeia e todas as demais é justamente a percepção da sacralidade de toda e de cada vida humana. A percepção aguda de que é possível, e mesmo provável, que as prostitutas nos precedam no Reino dos Céus. Que o mendigo pode ser mais valioso aos olhos de Deus que o imperador, o papa ou o mais rico dos homens. À Europa, em suma, foi dada a árdua missão de mostrar a todos os demais povos o valor infinito da Verdade; a dignidade excelsa de cada ser humano, da concepção à morte natural; a insignificância do pertencimento étnico-cultural; o perigo das riquezas; a importância das Bem-Aventuranças.

Ao negar esta herança, esta identidade, esta missão, nega-se a verdadeira Europa, substituindo-a por algum construto ideológico mais efêmero em termos históricos que as invenções dos estilistas para a primavera/verão dalgum ano que passou. Troca-se a verdade pela mentira, e com isso nega-se até mesmo a natureza humana. Esse é o caminho do precipício, e não se vê quem possa convencer os lêmures que a população europeia se fez a parar e pensar. Que dirá, então, quem a possa chamar com sucesso a voltar a abraçar a Verdade que a fez grandiosa, mas que hoje é mais encontradiça aqui, no fim do mundo, ou no paupérrimo interior da África. Em breve seremos chamados (aliás, já o somos; o papa Francisco veio daqui do fim do mundo, e é bastante provável que Bento XVI venha a ter sido o último papa europeu por um longo período) a devolver aos europeus o que eles mesmos jogaram fora, mas que aqui mantivemos pela graça divina: a identidade e a missão indissociáveis de uma verdadeira Europa. De uma Europa comprometida com a verdade, não com a mentira e a alucinação ideológica.

A verdadeira Europa, com verdadeira identidade e verdadeira missão.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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