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A relação do homem moderno com o próprio corpo, de Descartes para cá, é no mínimo problemática. Tendo o célebre protochincheiro de Amsterdã inventado ser o corpo uma espécie de robô habitado por um fantasminha que seria a pessoa “de verdade”, surgiram questões que antes soariam absurdas, como a da “propriedade” do corpo, ou noções igualmente estranhas, como a possibilidade de transplantar a mente humana para um computador, possibilitando que ela persista sem o peso da carne.
Toda ideologia moderna acaba sendo forçada a lidar com esse dualismo de alguma maneira. Os libertários, por exemplo, para conseguir reduzir tudo, absolutamente tudo, à questão da propriedade privada, premissa maior de seus raciocínios, tratam o corpo como propriedade absoluta da pessoa (que se pressupõe ser um fantasminha cartesiano). Os marxistas, por outro lado, tendem a reduzir as necessidades de um ser humano àquelas mais basicamente necessárias para manter o corpo em vida, esquecendo-se de que “a gente não quer só comida; a gente quer comida, diversão e arte”. Uma das críticas mais interessantes dos corolários dessa divisão, dessa dicotomia entre corpo e alma, foi feita quase 50 anos atrás pelo brilhante Ivan Illich. Ao examinar como se trata hoje a saúde do (corpo) humano, ele apontou haver uma “desapropriação da saúde” por parte do sistema médico, que toma o poder sobre o corpo e, ao ignorar todo o resto, frequentemente prejudica muito mais que ajuda.
Ainda na mesma linha, os acontecimentos destes últimos dias nos EUA e no Brasil trouxeram de novo à tona as consequências dessa mesma separação. Aqui um bebê foi condenado à morte pelo crime de seu pai, numa inversão satânica que fez de uma excludente de ilicitude penal uma obrigação. Lá, a derrubada pela Suprema Corte de uma decisão legal (“Roe v Wade”) que transformara o aborto em suposto direito humano jogou ainda mais gasolina na fogueira da guerra cultural já há muito em curso.
Quem quer que conheça o mínimo do mínimo da biologia reprodutiva humana sabe que, a partir do momento em que haja um ser vivo crescendo e progredindo de acordo com a orientação de seu genoma inconfundivelmente humano, o que há ali é um ser humano
“Meu corpo, minhas regras” – ou seja, a assunção do corpo como propriedade particular absoluta do fantasminha pessoal – voltou a ser o brado de multidões de harpias, megeras e seus familiares diabólicos pelas ruas americanas e pelas páginas anglófonas da rede. Pululam os discursos cada vez mais alucinados, compreensíveis apenas dentro de uma chave de propriedade particular absoluta do corpo – logo, de sua reificação total, da desassociação completa entre o corpo e a pessoa de que ele faz parte.
Quem quer que conheça o mínimo do mínimo da biologia reprodutiva humana sabe que, a partir do momento em que haja um ser vivo crescendo e progredindo de acordo com a orientação de seu genoma inconfundivelmente humano, o que há ali é um ser humano. Ora, matar um ser humano é a definição essencial de “homicídio”. A única maneira de legalizar tal assassinato é aceitá-lo como meio para a preservação de algum valor mais alto que a mera vida de um ser humano inocente. Tal valor é encontrado no suposto direito de “propriedade” do próprio corpo, numa absolutização legislativa que por aquelas bandas já é comum o suficiente para não causar espécie. Em algumas circunscrições legais americanas vale a “doutrina do castelo”, pela qual é permissível encher de tiros um intruso indesejado, ainda que desarmado e inofensivo, que tenha adentrado a propriedade particular de algum caubói mais nervosinho. Ora, é exatamente este o mesmo raciocínio que a decisão americana recém-revogada aplicava para justificar o ato de violência pelo qual a “dona” do útero poderia matar o bebê “invasor”. A aplicação automática desse suposto direito absoluto ao assassinato do bebê intruso a todo o território nacional americano é o que dançou com a nova decisão do Supremo local; a partir de agora, leis estaduais definirão o quanto seja ou deixe de ser absoluto o tal direito à propriedade do corpo. Exatamente como ocorre com a legalidade do fuzilamento de intrusos, ainda que curiosamente haja uma relação inversa bastante nítida entre a abertura ao aborto e à doutrina dita do castelo.
O Conto da Aia, distopia de ficção televisiva em que as mulheres são aprisionadas e usadas como reprodutoras contra a própria vontade, fez tamanho sucesso nos meios esquerdistas (logo, pró-aborto) americanos que o uniforme das tais “aias”, uma espécie de hábito vermelho com véu branco, tornou-se ubíquo nas manifestações pró-aborto. A coisa calou fundo assim naquele grupo por ser exatamente o outro lado da mesmíssima moeda podre que adotam: quem se julga proprietário absoluto do próprio corpo teme que a suposta propriedade seja tomada por outrem. Quem não partilhe do mesmo delírio cartesiano só acha esquisita a roupitcha das manifestantes.
O debate – se se pode chamar de “debate” gente gritando com os ouvidos tampados, sem qualquer tentativa de sequer entender o que pensa o outro lado, que dirá dialogar com ele –, contudo, deixa de lado o que provavelmente é o mais importante nisso tudo do ponto de vista moral. Corpos humanos vivos são parte inseparável de seres humanos, e seres humanos não são nem podem ser propriedade. Ninguém é nem pode ser “dono” de alguém, muito menos de um bebê inocente que deu o azar de estar no útero “errado”. Destarte, nenhum Estado – democrático, autocrático, totalitário ou o que for – tem o direito de condenar inocentes à morte ou, pior ainda, terceirizar tal condenação pela legalização do aborto.
Em termos morais, talvez seja até pior que a permissão legal do assassinato de inocentes seja dada (ou negada) pelos Legislativos estaduais democraticamente eleitos. Já era asqueroso que os votos de alguns ministros do Supremo gringo tenham inventado o tal direito de assassinar inocentes; a base do ato, contudo, era uma interpretação imaginativa de textos legais anteriores que nada diziam acerca do tema. A responsabilidade era toda dos ministros que se arrogaram tal autoridade. Já jogar às urnas algo que ninguém – nem os ministros do Supremo gringo ou brasuca, nem o presidente, o papa, o prefeito de Pindamonhangaba, ou quem quer que seja – pode atribuir-se o direito de decidir é uma maneira de desprezar ainda mais a Justiça em si, a própria lei natural. Acaba sendo um atentado até mesmo à democracia, essa deusa da moda, fazer com que seus mecanismos sejam usados para inventar que o voto tenha um poder a que ninguém tem direito. Quando se conhece um pouco que seja dos mecanismos legislativos (de que John Godfrey Saxe disse algo como “leis e salsichas, melhor não saber como são feitas”), então, a simples ideia de jogar a eles a decisão da vida ou morte de inocentes no atacado já basta para causar horror.
Em última instância, todavia, o que a legislação positiva diz ou deixa de dizer não interessa a não ser como exemplo de como a arrogância humana consegue ir sempre além. Sempre vai haver gente desalmada para transformar ausência de punição em obrigação de fazer, para obrigar médicos a violar o juramento hipocrático, para perseguir vítimas inocentes com a sanha de cães de caça até conseguir chacinar um inocente, como o caso catarinense nos mostra tão claramente. Passeatas a favor tanto de um dado aborto (como houve por aqui; pobre bebê, que nem chegou a nascer e já tinha inimigos a pedir-lhe a cabeça em público!) quanto a favor de permissão legal irrestrita para quaisquer abortos ou mesmo para matar crianças que tenham sobrevivido a um aborto – como num projeto em tramitação num estado gringo – parecem movidas muito mais pelo ódio aos bebês nonatos (em sua inocência) que por qualquer espécie de preocupação com as mães cuja propriedade uterina tenha sido “invadida”.
Nenhum Estado – democrático, autocrático, totalitário ou o que for – tem o direito de condenar inocentes à morte ou, pior ainda, terceirizar tal condenação pela legalização do aborto
Curiosamente, a intersecção entre o conjunto dos que bradam “meu corpo, minhas regras” a favor do aborto e o conjunto dos que apoiaram a obrigatoriedade das vacinas de mRNA anti-Covid (“meu corpo, regras do Estado”?) é imensa. Talvez aí esteja em ação a descoberta de Ivan Illich, que apontou o quanto a classe médica despreza os “portadores” dos corpos de que tratam. Os fantasminhas que habitam aquelas máquinas. Tendo sido submetido a procedimentos médicos aos borbotões em longuíssimas internações por conta de grave acidente que sofri, vi o quanto tinha razão o bom Ivan. O grosso dos médicos considera o bem-estar psicológico do paciente algo absoluta e completamente irrelevante, a não ser que o desespero do fantasminha que habita o mecanismo bioquímico que lhes interessa atinja grau tamanho que venha a dificultar o cotidiano hospitalar. Chamam, então, o psicólogo do hospital, que lhes parece habitar os tons de cinza entre o curandeiro e o ursinho de pelúcia ou a chupeta, e que certamente não percebem como um seu igual – que dirá complementar. O bem-estar espiritual, então, esse nem registra no radar da máfia de branco.
Essa desapropriação do corpo é o que faz com que as pessoas, ops, os pacientes coloquem completamente nas mãos dos médicos a solução de suas mazelas. Alguns chegam a ficar indignados caso o médico lhes diga que devem fazer algo que exija mais esforço que engolir uns tantos comprimidos mágicos. Uma dieta, largar a cerveja, parar de fumar, o que for: para quem aceita que a própria saúde seja propriedade da classe médica, quando o médico lhes exige esforço ele está é fugindo do serviço, querendo que o paciente pegue no pesado para fazer o que em tese competiria àquela gente toda de guarda-pó branco.
A insistência dos movimentos pró-aborto numa suposta dicotomia entre perigosos abortos ilegais e abortos legais tão deliciosos quanto inofensivos indica o mesmo tipo de pensamento. Não interessa se o julgamento do infame aborteiro Kermit Gosnell tenha mostrado que sua clínica era mais imunda que banheiro de estádio no fim do segundo tempo. Não interessa se a facilidade com que se consegue matar o próprio filho num país em que o aborto é legalmente permitido até literalmente a hora do nascimento leva o homicídio intrauterino a virar primeira opção de contracepção para muita gente, a tal ponto que 40% das moças americanas ficam grávidas pelo menos uma vez antes dos 20 anos de idade. O que interessa é a sequência de passes de mágica pela qual até mesmo a gravidez previsível, ainda que “indesejada”, transforma-se em “problema de saúde”, podendo assim ser desapropriada em benefício do sistema médico. E dane-se o juramento hipocrático do médico, e dane-se o bom senso da sociedade como um todo, e dane-se a corresponsabilidade do pai da criança (no mais das vezes um “namoradinho” curtindo o bônus sem ter o ônus), e dane-se a integridade psicológica e espiritual da moça, e, finalmente, dane-se a pobre criança inocente, arrancada aos pedaços do que deveria ser seu amoroso refúgio pré-natal.
Passeatas a favor tanto de um dado aborto quanto a favor de permissão legal irrestrita para quaisquer abortos parecem movidas muito mais pelo ódio aos bebês nonatos (em sua inocência) que por qualquer preocupação com as mães
Ao separar corpo e alma, ao fazer do que é uno (o ser humano) uma difícil coabitação de fantasminha e máquina, a medicina cartesiana impede que cada um assuma a responsabilidade pessoal pelo cuidado da própria saúde. Com isso, evidentemente, fica ainda mais fácil efetuar uma desassociação mental, numa dualidade semelhante à estudada em médicos nazistas por Robert Jay Lifton, em que a culpa do assassinato do inocente é do beneficiário da desapropriação da “saúde”, o médico; a mãe só terá servido de transporte até a clínica do aborteiro, tadinha: é inocente como uma flor... ou um bebê.
Com a saúde humana desapropriada aprioristicamente pela classe médica, do mesmo modo, a responsabilidade de dizer “não” à promiscuidade sexual é substituída por um receituário médico indicando uma determinada marca de contraceptivos hormonais. Estes, claro, tornarão por sua vez muito mais difícil para a moça engravidar mais tarde, o que abrirá caminho para a fertilização artificial, igualmente terceirizada à classe médica. E nem falo de tromboses e quetais: décadas ingerindo uma porcaria cheia de efeitos colaterais cujo objetivo é impedir que o corpo funcione direito têm seu preço. Da contracepção “fácil” ao aborto e – claro – à percepção de uma suposta “necessidade” do aborto é um passo.
Uma sociedade que permite que crianças inocentes sejam mortas por “atrapalhar a vida” dos pais é uma sociedade que já esqueceu completamente o que é o ser humano, o que é o certo, o que é o errado, o que é a vida e o que é a morte
E são tantas e tantas outras as consequências da mentira de base, da cisão artificial do ser humano em dois. O poder da indústria farmacêutica, por exemplo, que hoje faz e desfaz governos e presidentes mundo afora, vem daí e só daí. A medicalização do nascimento e da morte também. A artificialização dos comportamentos infantis, com crianças que não sabem mais subir numa árvore, mas têm aulas de “educação física”. As comidas e bebidas industriais sintéticas, cuja relação de ingredientes é um trava-línguas de produtos químicos. A indústria dos dietéticos, em permanente simbiose com as pseudocomidas artificiais engordativas. As fantasias tão ridículas quanto coloridas que as pessoas hoje parecem achar necessárias para passear (ops, “fazer caminhada”) ou andar de bicicleta. O endeusamento do abuso de drogas em paralelo a campanhas antitabagistas. A incompreensão essencial do sentido da vida que permite vender um “metaverso” virtual como não só semelhante, mas melhor que a própria vida real. As fantasias de ciborgues, o delírio de achar que implantar chips no cérebro ou substituir os membros por órgãos robóticos possam “melhorar” o que quer que seja no homem. As academias de ginástica em que as pessoas passam horas a fio, dia após dia, produzindo protuberâncias inúteis corpo afora, frequentemente com o auxílio de produtos químicos e hormônios que na prática são venenos. As clínicas de fertilização artificial lado a lado com a visão da concepção como “doença”, como mero obstáculo ao sexo sem limites.
Uma sociedade que permite que crianças inocentes sejam mortas por “atrapalhar a vida” dos pais é uma sociedade que já esqueceu completamente o que é o ser humano, o que é o certo, o que é o errado, o que é a vida e o que é a morte. É o cadáver de uma sociedade que ainda não se deu conta de seu fim.
Separam-se corpo e alma, e só o que resta é gente desalmada.
A autoria da frase sobre leis e salsichas, originalmente atribuída a Winston Churchill, foi corrigida.
Corrigido em 04/07/2022 às 17:43
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos