Nestes últimos dias um fenômeno curioso repetiu-se em ambas as bandas do Atlântico. De modo ainda mais curioso, ele ocorreu exatamente nos dois países cujas revoluções, no fim do século 18, inauguraram os Estados-nação e deram origem a todas as formas posteriores da Modernidade política. Na França, um grupo de generais aposentados escreveu uma carta aberta ao governo e ao povo afirmando, literalmente, que “a França está em perigo”. Alguns dias depois, nos EUA, um grupo de generais aposentados escreveu uma carta aberta ao governo e ao povo afirmando, literalmente, que sua “nação está em grave perigo”.
Observando-se a situação desses países pelo prisma de um militar moderno, ambos teriam razão. O problema, todavia, é que é justamente este prisma que lhes põe como que antolhos. Incapazes de perceber o que quer que não se encaixe em sua limitadíssima visão de mundo, seu temor é que ocorra uma guerra civil, com o potencial de destruir a “nação”. Ora, o que está efetivamente em risco não é a França ou os EUA, mas a organização social artificial que ambos os países, pioneiramente, inauguraram no fim do século 18. Na verdade, mais ainda: ela não está meramente “em perigo”, e sim em avançado grau de putrefação.
É sabido por todos: quem só tem um martelo tende a tomar sistematicamente parafusos por pregos, e disto as Forças Armadas modernas sofrem em alto grau. Aqui no Brasil, aliás, até hoje padecemos as nefandas consequências da absurda estreiteza do universo mental militar, em que só é percebido o que envolva projéteis, armas de fogo, mísseis e demais formas modernas de matar o próximo. Enquanto o Planalto foi ocupado por generais, as reações governamentais ao falso perigo de uma revolução comunista sangrenta chegaram ao paroxismo do absurdo. Os risíveis grupelhos terroristas de extrema-esquerda eram compostos por meia dúzia de filhinhos de papai armados com armas leves, e não tinham nem sombra de apoio popular. O fato de estarem armados os extremistas, contudo, provocou uma reação completamente desmedida dos generais, que despacharam enorme contingente de tropas para combater a patética “guerrilha do Araguaia”.
O que está efetivamente em risco não é a França ou os EUA, mas a organização social artificial que ambos os países, pioneiramente, inauguraram no fim do século 18
Ao mesmo tempo o general Golbery (“gênio da raça”, segundo Glauber Rocha) decidiu dar aos comunistas uma válvula de escape onde “não oferecessem perigo”. E qual foi ela, se não o que há de mais precioso, de mais vital e crucial, como qualquer filho de Santo Inácio de Loyola poderia ter-lhe explicado em detalhes. Entregou o general aos loucos marxistas exatamente aquilo que deveria ser defendido a todo custo, a pérola de grande preço que jamais se poderia permitir que se aproximasse do focinho dum porco: a alma das próximas gerações, a formação escolar de toda a juventude brasileira. É como se os luteranos do século 16 confiassem seus filhos aos jesuítas, ou os espartanos aos persas. Não só não faz sentido; é a perfeita inversão demoníaca do sentido. É difícil, ou mesmo impossível, conceber algo mais infinitamente perigoso que permitir a deformação da visão de mundo das gerações vindouras. Perto disto, meia dúzia de burgueses iludidos caçando pacas no Araguaia é piada de salão.
Foram os projéteis (ou, à moda militar, “projetis” oxítonos) das carabinas dos fãzocos terroristas e “guerrilheiros” de Fidel que acionaram todo tipo de alarme na mente dos militares. Já o cuspe-e-giz dos fãzocos menos limitados intelectualmente, por não envolver pólvora ou explosivos, era automaticamente considerado insignificante pelo apalermado detector de perigos dos militares. É exatamente o mesmo erro que ora ocorre na França e nos EUA, levando os generais a despertar tarde e mal de um sono profundo durante o qual o pior já ocorreu. A perspectiva real de ocorrer uma guerra civil, ou seja, de haver gente trocando tiros pelas ruas, é o que subitamente alarmou os militares ao ponto de fazê-los manifestar-se publicamente. Tendo aparentemente esquecido o Clausewitz que leram, os sinais evidentes de dissolução social e gravíssima degenerescência política passaram-lhes totalmente desapercebidos por seis décadas ou mais.
Pontificou o prussiano não haver guerra que não tenha origem política, e todo o sistema político-social moderno vem apodrecendo há mais de meio século. É desta putrefação da pólis que surge o espectro da guerra civil. De oxitoníssimos “projetis” voando pelas esquinas e, finalmente, acordando os militares de seu sono estratégico. Tanto tempo levou para que percebessem que há algo podre tresandando na política que a esta altura do campeonato os militares não têm (e nem têm como ter) meios de impedir que a degeneração social progrida, numa entropia tão galopante quanto inestancável. “Jam fœtet”, “já fede”, disse Santa Maria de seu falecido irmão Lázaro; mesmo assim Nosso Senhor ressuscitou-o. Afinal, ao contrário dos militares e seus projetis, Ele é o Onipotente.
Não é, contudo, o cadáver da “Pátria” ou da “Nação” que já fede. Os miasmas emanam da pseudo-ordem social em que Estado e Nação, duas coisas tão díspares, viram-se costurados um ao outro como gêmeos siameses artificiais dum Dr. Moreau ou Mengele. “Já fede” a tentativa moderna de hipersimplificação e ordenamento artificial da sociedade, em grande medida efetuada a bala. Sem um Exército republicano não teria sido possível chacinar nem os vendeenses (ou nossos canudenses) nem os habitantes originais do que hoje são os EUA. É a impersonalidade dos exércitos modernos, com multidões de soldados uniformizados sufocando pelo número e armamento as populações civis que ousassem estar no caminho do delírio distópico, que possibilitou a construção da quimera moderna do Estado-nação.
Os generais franceses afirmam-se, em sua carta, uma espécie de emanação da nação. Veem-se eles como seus representantes naturais, tão naturais que sua legitimidade não dependeria de eleições ou coisa que o valha. Na verdade, no entanto, pouco mais são que cães de ataque dum Estado que se afirma também representação, mas eleita, da nação. Este Estado, entretanto, revela-se em seus estertores incapaz de lidar efetivamente com os problemas que ele mesmo vem causando e piorando há tempos. O mesmo, claro, e mais ainda, vale para as Forças Armadas americanas.
Com tantos e tão incompetentes pseudorrepresentantes afirmando ou negando sua periclitância, faz-se assim necessário discernir o que, afinal, seria a tal “nação”. O primeiro passo, por certo, há de ser o isolamento do que se deseja identificar. No caso, atira-se ao lixo o absurdo hífen com que juntaram “Estado” e “Nação”. Percebe-se então claramente que são coisas perfeitamente distintas. Basta olhar ao redor para perceber que nem sequer há relação natural – que dirá identidade! – entre Estado e Nação. Há, e sempre houve, Estados plurinacionais, tal como há e sempre houve nações desprovidas de Estado. E, mais ainda, há e sempre houve territórios desprovidos de Estado, sem que por isso deixem de ser o lar de nações integrais ou parciais. Seria até mesmo possível defender que o Estado moderno – próprio ou alheio – é a maior e a mais constante ameaça às nações. O genocídio dos armênios pelos turcos (por determinação estatal), dos ucranianos pelos russos (idem) ou dos hutus pelos tutsis (excepcionalmente, fruto de iniciativa largamente privada) visava a transformação de Estados plurinacionais em Estados-nação. Israel, ainda, é um Estado artificialmente criado em terra habitada por outras nações (drusos, árabes cristãos, árabes muçulmanos, beduínos...), exatamente como os EUA.
Nem sequer há relação natural – que dirá identidade! – entre Estado e Nação
Dentre todas as tantas causas de chacinas e genocídios ao longo da história moderna, a confluência artificial de Estados e nações provavelmente foi a mais grave, tanto em quantidade quanto em qualidade. A uniformização e centralização no Estado dos poderes roubados às instâncias menores, entre outras barbaridades, levou a monstruosas perdas linguísticas e culturais. Em cada Estado moderno foram eliminados quase todos os dialetos tradicionais para construir uma “nação” artificial, com nítidas fronteiras e território exatamente igual ao do Estado. Ainda que no sul da França continue havendo uma área chamada “Languedoc” (“langue d’Oc”, “língua de Oc”) ou ainda se fale duma Occitânia, a língua occitana é hoje mera curiosidade antropológica ou linguística, como o bretão da Bretanha. Para lidar com os justíssimos protestos contra a uniformização do que sempre fora distinto, evidentemente, apelou-se ao Exército republicano. A própria conscrição – “serviço militar” – teve e tem como um de seus objetivos a uniformização cultural dos recrutas e a construção de uma nacionalidade artificial comum a todos os súditos daquele Estado.
A “nação” em perigo apontada pelos militares transatlânticos, destarte, não é nem a verdadeira nação francesa nem, menos ainda, a suposta nação americana. O que agora chega ao fim é a artificialização moderna do conceito de nação, a criação em proveta de míticas pseudonações para servirem de sustentáculo a Estados hipercentralizadores. Na França criou-se todo um mito de origem que tenta fazer de “nos ancêtres, les gaulois” (“nossos ancestrais, os gauleses” – lenda ironizada na HQ de Astérix) bizarros antecessores da República revolucionária tricolor.
Nos recentíssimos Estados Unidos a coisa foi ainda mais complexa. Afinal, a nação de que faziam parte os fundadores da novel república era a britânica, mas seu objetivo era justamente separar seu Estado do inglês. Foi-lhes então necessário criar toda uma nova mitologia, um mito de origem que – ao contrário dos mitos criados para sustentar outros Estados modernos – não apelava diretamente a povos perdidos nas brumas dos tempos. Ao contrário, até: os Pais da Pátria americana foram divinizados a muque; George Washington tornou-se um personagem lendário, que desde criança jamais proferira uma mentira, e o genocida Lincoln tornou-se herói de uma Unidade pretensamente transcendental. Em seu rastro, os sucessivos presidentes tornaram-se sumos-sacerdotes de uma religião cívica, e esta tenta fazer dos EUA uma espécie de Império Romano redivivo, projetando no Lácio o obscurantismo maçônico daquele golem iluminista.
Faliu o sonho moderno; Tio Sam e Marianne já não convencem mais ninguém. Ao contrário, até: já fedem
Mas o cadáver nauseabundo que subitamente se descobre estendido no chão é justamente o desses sonhos de nações artificiais inseparáveis de Estados hipercentralizadores. Para os militares esta é a pior das notícias possíveis, evidentemente. Afinal, a instituição a que pertencem e que lhes dá identidade é simultaneamente fruto e hortelão do Estado-nação. Vivendo e morrendo pela espada (ou, antes, pelos famosos projetis), é bastante provável que as ações derradeiras das Forças Armadas modernas vitimem ao menos alguma parte da população do próprio país. Os generais franceses apontam o “perigo” da criação e manutenção de uma pseudonacionalidade islâmica entre os descendentes de imigrantes coloniais. Os americanos temem o influxo de imigrantes latino-americanos.
Incapazes de perceber aquilo que não é nem arremete projetis cinéticos, os tantos generais transatlânticos não conseguem dar-se conta de que a ameaça real não são os imigrantes. Afinal, imigrantes sempre houve, e não há americano desprovido de antepassados estrangeiros. A diferença, e enormemente brutal diferença, é que a decadência terminal dos projetos nacionais modernos tornou-os incapazes de absorver e transformar os imigrantes em cidadãos da mesma “nação”. No caso francês a coisa é ainda pior, pois a pseudonação republicana, laicista e tricolor subitamente percebeu-se incapaz até mesmo de impedir que cidadãos natos, filhos ou mesmo netos de imigrantes coloniais, adiram à pseudonacionalidade concorrente oferecida pelo Islã salafista. Faliu o sonho moderno; Tio Sam e Marianne já não convencem mais ninguém. Ao contrário, até: já fedem.
A própria crise de legitimidade dos mandatários republicanos, que possibilita a expressão aberta da revolta militar, é parte do mesmo fenômeno de dissolução do Estado moderno. A carta aberta dos militares americanos chega à beira de afirmar abertamente que, em vista da farta roubalheira nas eleições passadas, Biden ocupa ilegitimamente a Casa Branca. Ah, sim, e sofre de demência senil. Já fede, também ele. Na prática, isto sinaliza apenas que as Forças Armadas americanas não pretendem prestar-se a ajudar na implantação da tecnocracia totalitária desejada pelo Partido Democrata; nada na carta ameaça um golpe de Estado militar.
Um golpe seria, de todo modo, como um motim na cabine do Titanic após a colisão com o iceberg. O problema já é insanável, mais ainda pelos meios cogitáveis por militares, e só o que pode variar é a forma que tomarão os derradeiros anos do sonho moderno. É certo, por outro lado, que a tragédia nacionalista dos anos 1930 está a repetir-se, ainda que agora como farsa. Žižek, acerca das cartas de generais, escreveu que “o mito do caráter despolitizado das Forças Armadas dissolveu-se: parte considerável do Exército apoia a agenda nacionalista”. Creio que – dada a sua visão moderna de mundo – ele realmente não perceba que o que desapareceu não foi um suposto “caráter despolitizado” das Forças Armadas modernas. Convenhamos: para que a expressão pudesse fazer algum sentido, seria necessário dar ao termo “política” um sentido absurdamente estreito, na contramão do marxismo que informa o pensador eslavo. Ele tem plena consciência de que a Pólis moderna foi construída pelas Forças Armadas; o que lhe escapa é que elas não souberam nem poderiam saber como deter a sua dissolução. Escapa-lhe que a ausência ululante que ora se faz notar é a da fé na pseudonação moderna, e que é esta crise de fé que suscita o previsibilíssimo reacionarismo galopante por parte dos que mais têm a perder, como as instituições militares.
Curiosamente, o esloveno alinha a ação violenta do Estado de Israel contra as nações autóctones como parte do mesmo fenômeno das cartas de generais. Ora, o que ora se passa na Terra Santa é o extremo oposto! O que exército israelense está fazendo neste momento da história é exatamente o mesmo que o exército americano fez no curso do avanço para o Oeste desta outra nação de colonização por povoamento. Para possibilitar a ocupação do que percebe como Lebensraum, “espaço vital”, faz-se necessário eliminar os indesejáveis autóctones. Sem que isso seja feito – em Israel como nos EUA, pela ação vagamente coordenada de colonos armados e tropas regulares – não há espaço que possa abrigar a expansão em área e população do Estado-nação moderno. O lamento de base das cartas generalícias francesa e americana é precisamente que as Forças Armadas de seus países não podem hoje desempenhar a missão que lhes coube no século 19, a mesmíssima que o exército israelense desempenha agora.
Amiúde aponto a ironia da ereção de um Estado moderno para a nação judaica, errante por quase 2 mil anos, na hora exata em que os Estados-nação modernos passavam do auge à decadência final. É exatamente por haver felizmente acabado o encanto da loucura coletiva moderna que a repetição exata por Israel do feito pelos EUA no século 19 é inaceitável para a comunidade internacional do século 21. Mais ainda: a consciência da inaceitabilidade do genocídio e da “limpeza étnica” é decorrência direta das barbaridades em escala industrial cometidas pelos alemães contra a população judaica da Europa Oriental. Não houvesse o povo judeu sido alvo de genocídio, não teria ele em 1948 recebido um Estado de presente da ONU. Ao mesmo tempo, não houvesse ocorrido a justíssima condenação internacional do genocídio dos judeus pelos alemães, ninguém obstaria à “limpeza étnica” da Samaria e Galileia pelo Estado de Israel.
São uns poucos dos tantos paradoxos da História, esta ciência tão humana, mas tão humana, que se torna irracional...