Tendo tido a graça – ou a sorte – de nascer e viver aqui neste fim de mundo que é o Brasil, é-nos muitas vezes difícil entender a força e a antiguidade dos ódios europeus. Mais ainda, acrescento, a dos ódios entre povos fronteiriços, habitantes de imensas terras em que não há nenhuma barreira geográfica a impedir o avanço do inimigo. São ódios que se acumulam, ódios em que acontecimentos de séculos atrás iluminam ou obscurecem acontecimentos que datam de poucas décadas, anos ou meses, e vice-versa.
Tais ódios desempenham papel fundamental na guerra que atualmente assola a Europa Oriental; sem entendê-los não há como compreendê-la. Infelizmente, a ação americana – causa maior da guerra – foi em grande medida movida por tal ignorância. A incapacidade americana de entender que as demais pessoas não apenas não pensam como eles como não querem ser como eles já destruiu o Oriente Médio. É ela igualmente a razão maior da guerra fratricida da Ucrânia. É ela, do mesmo modo, que está agora conduzindo a Alemanha a rearmar-se, coisa que até mesmo um conhecimento perfunctório da história europeia aponta ser uma péssima ideia. As lições do século passado já foram esquecidas, e todos os antiquíssimos ódios vêm sendo fomentados por gente que os ignora.
Tracemos então um triste mapa dos ódios ao longo de toda as vastas planuras do Leste europeu. Do Báltico ao Mar Negro, dos Cárpatos ao Cáucaso, digladiam-se há milênios duas grandes forças, duas civilizações diferentes, cujo ódio mútuo acabou sendo a razão de ainda maior diferenciação. A civilização mais a oeste é a germânica, aliás a origem da cultura anglo-saxã; não esqueçamos que tanto a Ânglia quanto a Saxônia são regiões alemãs. Hoje, após as limpezas étnicas promovidas pela União Soviética após a Segunda Guerra, ela se concentra nos Estados alemão e austríaco. Sua rival maior, ainda maior que sua rivalidade igualmente ancestral com as culturas latinas da Europa Ocidental, é a civilização eslava surgida historicamente em Novgorod e Kiev, mas que hoje tem seu centro de poder material e religioso em Moscou.
Deixando de lado conflitos ainda mais antigos, porém sempre presentes na memória dos povos envolvidos, podemos voltar apenas um pouquinho no tempo e tratar de algo que aconteceu praticamente ontem, em 1240: a fatídica Batalha do Neva. Nela as tropas eslavas comandadas pelo Príncipe de Novgorod, Alexandre (mais tarde conhecido como “Nevsky” por conta de tal batalha), de dezenove anos de idade, venceram as tropas norte-europeias católicas dos Cavaleiros Letões (divisão local da ordem de cavalaria monástica dos Cavaleiros Teutônicos). O objetivo de Alexandre (depois canonizado pelo Patriarcado cismático de Moscou) era manter seu povo submetido ao jugo do Canato mongol da Ordem Dourada. Entre católicos e pagãos do Extremo Oriente, em suma, preferiu o príncipe sujeitar-se aos pagãos. A razão maior era religiosa: os pagãos não se interessavam por religião, enquanto os Cavaleiros, ordem católica, certamente forçariam a Igreja cismática russa a submeter-se ao Papado.
Foi ali traçada, naquela tripinha de terra ao longo do Báltico em que hoje vemos a costa polaca e os Estados lituano, letão e estoniano, uma primeira linha direta de contato (bélico) entre as civilizações que nos interessam. Não era esta ainda a situação geopolítica, na medida em que Novgorod e seus sucessores (Kiev primeiro e Moscou depois) não eram independentes. Á época, eram apenas a fronteira oeste do vastíssimo domínio mongol. O que ali se traçava, na geopolítica de então, era onde findava o Canato mongol e – ainda apenas às margens do Báltico – onde seu avanço era contido por católicos, e vice-versa. Era enorme a importância estratégica daquelas terras, pois o Báltico era a via de acesso mais fácil, rápida e barata ao comércio e, em caso de necessidade, a tropas de reforço católicas escandinavas. Tendo por base aquela região, efetuava-se a lenta cristianização católica do interior pagão da Europa Oriental através da ação evangelizadora e conquistadora dos Cavaleiros Teutônicos, baseados na Prússia (antigo norte da Alemanha, hoje em grande medida território polaco). Este lento processo levou ao estabelecimento do Grão-Ducado da Lituânia e do Reino da Polônia, ambos católicos. Juntos, eles mais tarde formaram uma potência que dominou enorme parcela da Europa Oriental, das margens do Báltico ao Mar Negro ocidental. A parte mais ocidental da atual Ucrânia fez por séculos parte da gigantesca comunidade católica plurinacional polaco-lituana. Lá há, em relação ao resto da atual Ucrânia, uma presença muito maior de católicos de rito bizantino (a Igreja Ucraniana Católica) e de rito latino – estes muitas vezes de fala polaca ou magiar.
A fronteira oeste da civilização moscovita, após a evangelização do vasto interior da Europa Oriental, passou a ser em grande medida uma fronteira religiosa. A oeste os reinos eslavos católicos aliavam-se ao Estado germânico dos cavaleiros teutônicos, e a leste os reinos eslavos moscovitas livravam-se aos poucos do jugo mongol, sem contudo jamais reconhecer a legitimidade do Papado. Foi um processo lentíssimo, que só foi concluído em meados do século XVIII, com a anexação russa do Canato da Crimeia. Os remanescentes dos canatos mongóis no sudeste europeu, todavia, haviam abraçado o Islã. Ao anexar suas terras, então, o Império moscovita viu-se cercado por todos os lados. Ao Norte, o gelo da Sibéria selvagem; ao Sul, a fronteira civilizacional interna entre a fé cristã oriental e a maometana; a Leste, o perigo sempre presente das estepes abertas a cavalarias orientais; a Oeste, finalmente a fronteira externa com a cultura católica eslava e/ou a alemã.
Como em qualquer fronteira tradicional, há uma certa fluidez que produz ao longo dos séculos grandes mudanças em função das vicissitudes históricas. A maior destas, para as culturas fronteiriças ao Oeste do domínio moscovita, foi a trágica divisão da Cristandade ocidental no Século XVI, causada pela revolta luterana. Na ocasião, o então superior-geral dos Cavaleiros Teutônicos, aconselhado por Lutero, abandonou os votos sagrados e tomou para si as terras da congregação que dirigira, dando início à Prússia luterana. Do mesmo modo, os países escandinavos abraçaram a nova religião, adotando-a como religião oficial submetida ao Estado. Os Estados bálticos atuais, entre a cruz e a caldeirinha, acabaram tomando decisões influenciadas tanto pela posição geográfica quanto pelos elementos identitários primeiros. A Finlândia, escolhendo aliar-se aos demais escandinavos por proximidade cultural, tornou-se luterana; a Estônia também abraçou o luteranismo de Estado; a Letônia dividiu-se entre luteranismo e catolicismo, e, finalmente, a Lituânia, alinhando-se à irmã Polônia, manteve-se firme na Fé católica ancestral.
A incapacidade americana de entender que as demais pessoas não apenas não pensam como eles como não querem ser como eles já destruiu o Oriente Médio
Para a fé cismática oriental russa, tanto fazia catolicismo ou luteranismo: ambos eram, e são ainda, o inimigo. Ainda que o modelo luterano de religião de Estado seja muito mais próximo do modelo cesaropapista oriental adotado pelos eslavos moscovitas, a distância entre Roma e os Estados católicos fazia, na prática, com que suas Igrejas fossem independentes o bastante para que não fosse percebida pelos moscovitas qualquer diferença em termos geopolíticos. O mesmo, claro, não pode ser dito das relações entre os reinos e as populações que permaneceram na Fé católica e os que abraçaram a nova religião luterana. As guerras de religião que devastaram a Europa Ocidental e acabaram por conduzir à secularização de suas sociedades criaram ali, naquela vasta zona fronteiriça, um novo conflito. Numa tragédia de que hoje o ataque da Rússia (nascida em Kiev) à própria mãe Ucrânia parece farsesca sátira macabra, a militarista Prússia luterana passou a tentar dominar a Lituânia e a Polônia católicas, seja como objetivo imediato, seja como caminho para atacar a Rússia.
Temos assim já apontados os ódios primeiros e mais ancestrais: Moscou odeia Roma, a que não quer sujeitar sua organização religiosa (basicamente inseparável do Estado, devido ao cesaropapismo oriental), ao ponto de considerar-se uma “Terceira Roma” (a segunda teria sido Bizâncio). Em decorrência de tal ódio, basicamente ignorado por Roma, odeia os povos cristãos que não aceitaram se submeter ao Patriarcado cismático de Moscou, mormente os eslavos.
Este ódio ancestral teve suas chama imensamente atiçadas pelos acontecimentos religiosos atuais. O Patriarca de Constantinopla deu autocefalia (autonomia em relação a Moscou) à Igreja Ucraniana cismática, levando o Patriarcado cismático de Moscou a romper a comunhão com Constantinopla. Isto acabou por fazer com que haja hoje na Ucrânia três Igrejas do mesmo rito sem intercomunhão: a Igreja Ucraniana Católica, em comunhão com a Santa Sé em Roma; a Igreja Ucraniana autocéfala, em comunhão com Constantinopla, e, finalmente, a Igreja Ucraniana composta da parcela que não aceitou a autocefalia, preferindo manter-se submissa ao Patriarcado moscovita. Pois com a invasão russa esta última rompeu a comunhão com o Patriarcado moscovita, coisa que dificilmente poderia ser mais desagradável aos russos.
Tendo em vista o fato de os russos não perceberem diferença alguma entre católicos e luteranos (até por esteticamente serem mesmo bem parecidos os rituais de culto católico latino e luterano), o ódio moscovita a Roma dirige-se indistintamente à Prússia alemã e, por extensão, a todos os germânicos. No magistral filme Alexandre Nevsky, de Eisenstein, isto ficou bastante claro: os Cavaleiros Teutônicos foram representados com capacetes prussianos da Primeira Guerra Mundial!
Outro ódio ancestral é o dos católicos de ambos os ritos (bizantino e latino) da Europa Oriental em relação ao Patriarcado cismático de Moscou. Tremendamente potencializado pela devastação causada pela catastrófica fome coletiva imposta por Stálin à Ucrânia no entreguerras, dita Holodomor, está na origem do ultranacionalismo ucraniano do tempo da Segunda Guerra. Seu maior líder, Stepan Bandera, era filho dum padre católico de rito bizantino. É também o que está na base da infinitamente paciente e permanente luta polaca e lituana contra o poder de Moscou.
Menos ancestral – coisa recente, de apenas 500 anos de idade – é o ódio dos católicos da Europa Oriental contra os alemães (ou, antes, os prussianos luteranos e, por extensão, todos os germânicos). Foi sua menor profundidade histórica que, na Segunda Guerra Mundial, levou os movimentos nacionalistas europeus-orientais a ver na contra-invasão alemã das terras pouco antes invadidas pela Rússia comunista uma verdadeira libertação. Mais valeria ser satélite da Alemanha nazista que escravo da Rússia comunista. Ambos eram totalitários; ambos eram genocidas. Os alemães apresentavam algumas “vantagens” relativas. Não apenas não eram o diabo que não se conhece – o que não é pouco para quem já tinha experimentado na carne a maldade do regime totalitário russo, perdendo milhões de compatriotas no Holodomor –, como tinha uma base ideológica nacionalista (o comunismo russo era internacionalista). Em tese, isso levaria os nazistas a demonstrar algum respeito pelas populações que não chacinassem nem escravizassem. Aquele, lembro, era o momento histórico por excelência do nacionalismo, o que levara a resistência ao invasor russo a desenvolver-se em tais moldes. Tanto a violência da invasão soviética inicial quanto, mais ainda, a russificação forçada ocorrida no Pós-Guerra levaram a intensidades inauditas o ódio ancestral contra Moscou, que passou a dominar igualmente os ucranianos historicamente mais alinhados com a Rússia.
Curiosamente, tal ódio deixa perplexos os russos atuais, que – por mais que façam da Grande Guerra Patriótica (nome local da Segunda Guerra Mundial) a parte mais recente do mito de origem iniciado com os Rus de Kiev – tendem a ver os crimes soviéticos como soviéticos, não russos. Para os russos de hoje, e mais ainda para o nacionalismo russo de hoje, capitaneado por Putin, tanto os russos quanto os lituanos, estonianos, letões, polacos, húngaros, checos, eslovacos, e – claro – ucranianos seriam igualmente vítimas da ditadura soviética. Afinal, ao longo de sua história a União Soviética foi encabeçada por apenas um russo (Lênin), seguido de um georgiano (Stálin), sucedidos depois exclusivamente por ucranianos (dentro os quais um cossaco do vale do Rio Don, exatamente a área em disputa hoje). O resultado é que Putin vê os ucranianos como “irmãos”, fazendo o possível para minorar a perda de vidas não-ligadas aos movimentos ultranacionalistas, que percebe como nazistas em senso estrito, logo inimigos por definição de todos os eslavos. Afinal, na visão russa o nazismo é mais antieslavo que antissemita.
Já os ucranianos não correspondem a tal “amor”, e veem na invasão do Exército russo um terceiro retorno do Exército Vermelho soviético. Algo tão ruim, lembro, que a primeira experiência já fez aliar-se a Hitler parecer boa pedida. Um amigo casado com moça de família ucraniana, ao ler uma apresentação do lado russo da guerra, ficou pasmo ao ver que os russos acham que o ódio ucraniano a eles decorra apenas da propaganda americana dos últimos anos. Segundo ele, sua esposa “é de terceira geração nascida no Brasil e pegou raiva de russo na mamadeira, imagina quem passou os últimos oitenta anos lá”.
Isto para um nacionalista russo é incompreensível. Afinal, o mito de origem russo, como apontei em texto anterior, tem seu centro em Kiev. Até mesmo o termo pelo qual os russos chamam a Ucrânia pode ser traduzido como “Rússia Inicial” (mais que como “Pequena Rússia”, como se costuma fazer)! Se um russo não é ucraniano ele não é russo, na visão dos nacionalistas russos atuais, e consequentemente todo ucraniano seria igualmente russo. Afinal, qual seria a opção para o nacionalismo russo? Abraçar uma identidade de pau-mandado dos déspotas pagãos mongóis?! O fato é que esta guerra, que reflete ódios tão ancestrais que ficam até difíceis de entender aqui no Fim do Mundo, atiçados pela leviandade de gente tão ignorante quanto gananciosa, é apenas mais um capítulo numa história muito longa, que dificilmente terá fim por meios meramente naturais.
Que Deus ajude os sofridos povos da Grande Fronteira!, e que o amor possa sobrepujar o ódio.
Milei x Lula: G20 promete confronto de visões que testará pragmatismo entre Brasil e Argentina
Efeito Milei: como as maiores empresas argentinas cresceram 130% no último ano
Ministro de Lula endossa xingamento de Janja a Musk: “Estava preso nas nossas gargantas”
A tática do PCC para evitar vazamento de informação no mundo do crime