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Escrevi aqui várias vezes sobre as consequências do positivismo zumbi que ainda assola esta Terra da Santa Cruz. Uma delas, a que nunca dediquei muito espaço entre tantos horrores comteanos, será o tema desta coluna de hoje. Trata-se da impossibilidade de discernimento moral ocasionada pelo positivismo jurídico e científico, e de suas consequências. Consequências práticas. Positivas, ou melhor, negativíssimas.
Resumindo um complexo delírio simplificatório da realidade, de que já tratei com mais vagar, a faceta científica do positivismo gera o cientificismo: a superstição segundo a qual só seria verdadeiro o que pudesse ser medido em laboratório, levando, por exemplo, ao ponto de reduzir o amor ao fluxo de oxitocina. Ora, esta reação físico-química, como qualquer outra (a famosa adrenalina, por exemplo), é apenas isto: uma reação a outra coisa, coisa esta que o cientificismo de base positivista não consegue sequer perceber na teoria. Na prática, claro, a teoria é sempre outra, e os cientificistas são tão sujeitos aos estragos de Cupido quanto qualquer um de nós.
Mesmo confrontados com a realidade, todavia, eles sempre recairão no mesmo discurso reducionista absurdo, que toma os “comos” por “porquês” ou “para quês”. O máximo de abstração que atingem nas suas teorias é perceber todo o fenômeno amoroso como decorrência de adaptações evolutivas, sem conseguir vislumbrar a beleza que é o fato de que garantimos a sucessão das gerações pelo amor (com toda a oxitocina que se quiser), não por atos instintivos provocados por liberações de feromônios, como os cachorros, ou pela ação “terceirizada” de abelhas para carregar pólen, como algumas árvores.
Para o positivismo jurídico, a lei positiva, ou seja, aquilo que sai do Legislativo e é promulgado pelo Executivo e supostamente garantido pelo Judiciário, é o “mínimo moral”
E se formos além do amor, se é que é possível fazê-lo, como se coloca o positivismo? Digamos, por exemplo, que, em prol de uma compreensão melhor do fenômeno que acorrenta vastos setores de nossa sociedade a uma falsa leitura da realidade, cujo reducionismo deixa de lado a totalidade das grandes questões (“o que sou?”; “qual o sentido da vida?” ...), queiramos entender o que passa por “Bem”, ou mesmo por “Justiça”. Ou, para facilitar ainda mais, queiramos simplesmente aplicar estes conceitos a atos determinados. Qual será o norte moral que pode orientar na divisão de uma herança, por exemplo, alguém cuja visão de mundo tenha sido deformada pelo positivismo?
Digamos que um casal tenha tido dez filhos, dos quais um apenas cuida deles em sua idade avançada, carinhosamente zelando por sua saúde, levando-os a passeios e excursões e mantendo-os com dinheiro do próprio bolso, sem ajuda alguma dos irmãos, que quando muito mandam um cartãozinho de Natal. Seria justo que a divisão da herança – qualquer que fosse o seu valor – fosse feita em dez partes iguais? Seria bom que tanto o bom filho quanto os maus filhos recebessem exatamente o mesmo valor, ou seria melhor (“mais bom”, como dizem os habitantes de nossa província ultramarina separatista europeia) que o bom filho recebesse tudo, ou ao menos a parte do leão? E se a herança for milionária, ao ponto de garantir a vida de cada um deles? Será que isto mudaria a justiça duma ou doutra forma de divisão? E por aí vai.
Nota-se, em tal momento, a total incapacidade do positivista de responder, ou ao menos de dar uma justificativa para uma escolha que venha a fazer; é esta incapacidade que conduz ao consequencialismo que orienta o positivismo jurídico. Para o positivismo jurídico, a lei positiva, ou seja, aquilo que sai do Legislativo e é promulgado pelo Executivo e supostamente garantido pelo Judiciário, é o “mínimo moral”. Em outras palavras, o Tiririca e seus colegas, o bolsopresidente e a turma do Toffoli têm o dom mágico de criar lei moral. Se eles concordarem em, por exemplo, pagar dezenas de milhares de reais por mês a uma casta de privilegiados num país em que a maioria da população mal e mal ganha de manhã o que come na janta, pronto: isto é algo moralíssimo, coisa fina.
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A única discussão possível, dentro do quadro positivista, é a das consequências de tal permissão. O vice-presidente de nossa triste terra tropical, por exemplo, declarou outro dia que é contrário a salários que ultrapassem um teto de cerca de R$ 40 mil (!) por conta da difícil situação do Erário. Não fosse este o caso, para ele estaria tudo bem. Em outras palavras, a única coisa imoral em receber mensalmente uma obscenidade de dinheiro por mês no meio de miseráveis é o efeito disso sobre as contas públicas.
Do mesmo modo, cada projeto de lei deve apresentar uma justificativa consequencialista, em que seus supostos efeitos positivos para a ordem social sejam explicitados. Se a maioria dos coleguinhas do Tiririca concordar, pronto: trata-se não apenas de algo moralmente correto, mas de forte obrigação moral! E, como dizia o marido da mulher feia, “durma-se com um bagulho desse”.
Ora, há tantos problemas nessa visão de Justiça que é até difícil saber por onde começar. Afinal, ela delirantemente troca logo de cara a ordem dos fatores, fazendo da causa consequência e da consequência causa, arremetendo o carro por cima e à frente dos pobres bois ao tornar supostamente dever moral atender ao que é legislado, em vez de receber em lei o que é dever moral. Há, claro, algumas poucas leis que cumprem sua função ao ordenar o modo como devem ser tratados alguns atos já moralmente péssimos. É o caso, por exemplo, da proibição do homicídio e da sua subespécie aborto. Mesmo estas, no entanto, são percebidas de modo puramente consequencialista, o que frequentemente leva à rejeição até mesmo do texto da lei ou da Constituição Federal (aquele calhamaço de absurdos que passa por base da lei positiva no Brasil, fazendo as vezes do direito natural) em benefício de alguma consequência de curto prazo julgada boa.
A incapacidade completa de perceber o Bem e a Justiça somada à perfeita inversão da relação entre lei positiva e lei moral levam à entronização de absurdos cada vez mais delirantes
É o que vem acontecendo, por exemplo, nos casos em que o Código Penal isenta de punição alguns tipos de aborto, exatamente como isenta de punição os crimes contra a propriedade cometidos em linha direta de ascendência ou descendência. O que era isento de punição (coisa já imoral, aliás, em relação ao médico que aja como aborteiro, ainda que não necessariamente em relação a uma pobre moça desesperada) virou, da noite para o dia, “aborto legal”, ao ponto de eu ter hoje mesmo visto com estes olhos que a terra há de comer uma reportagem cujo autor se queixa (!) do pequeno número (!!) de abortos cometidos em alguns estados!
Note-se que ninguém fala de furto ou estelionato legais, ainda que estes sejam igualmente isentos de punição e, mais ainda, que não desrespeitem o direito fundamental à vida assegurado pela patética “Carta Magna” do positivismo jurídico brasileiro. Isto ocorre porque os movimentos abortistas conseguiram, com auxílio da grande imprensa e de setores da academia da área de Ciências Sociais e Humanas (que, aliás, não incluem a medicina...), vender um discurso segundo o qual o parto de uma criança viva, que pode ser dada para adoção, seria mais “traumatizante” para a mãe que o parto de um cadáver. Daí, então, tendo diante de si as supostas consequências temíveis do respeito à vida humana nonata, muda-se a lei, logo a moral. Salta aos olhos a tremenda miopia desta posição, em que as consequências de curto prazo têm o dom de anular até mesmo a proibição moral de assassinato dum inocente, que dirá as palavras levadas pelo vento que no Brasil passam por legislação fundamental.
Mas é assim que a banda toca quando os antolhos do quadro mental positivista se impõem: a proibição de ir além, de nem sequer buscar entender o que seja o Bem ou a Justiça, ou mesmo o bom e o justo, forçam sua substituição pelo meramente efetivo. E o efetivo sempre terá um quadro subjacente de valores irrefletidos de “bom” e “justo”, em que a questão “efetivo para quê” não tem como ser respondida... de modo efetivo. Muito pelo contrário: ou bem se aceita uma suposta bondade buscada sem pensar muito no assunto, ou bem se cai numa recursividade sem fim, em que algo é bom por serem boas suas consequências, que por sua vez são boas por terem boas consequências, cuja bondade vem do fato de terem boas consequências, e por aí vai, ao infinito.
A única opção ao objetivamente tautológico, então, acaba sendo a assunção de supostas bondades que, justamente por serem irrefletidas, jamais vão além da busca de saciedade dos impulsos mais primitivos (e, por isto mesmo, mais infensos à saciedade definitiva) do ser humano: sexo, prazer sensível, comida, dinheiro, poder... À medida que o positivismo, nas formas que ora comento, vai avançando como gangrena moral do corpo social, mais primitivas se tornam as assunções, justamente como forma de evitar a queda na recursividade tautológica infinita.
Então, por exemplo, torna-se “óbvio” para praticamente todos que a presença de relações sexuadas é o que constitui essencialmente um matrimônio. Ignora-se o fato de que o matrimônio – mesmo no discurso positivista inicial – poderia ser defendido em termos consequencialistas como a forma mais lógica de garantir a educação das crianças de acordo com os modos e costumes da sociedade de que fazem parte seus pais. Afinal, isso seria ir longe demais na busca de consequências; só o que importaria seria uma espécie de celebração do afeto sexuado e a garantia de alguns direitos patrimoniais, o que tornaria igualmente “evidente” um suposto bem do divórcio, da descriminação do adultério, e mesmo da absurda possibilidade de “casamento” entre pessoas do mesmo sexo. O fato de que os bens consequenciais do matrimônio são negados na prática ao esticar a noção ao absurdo acaba não interessando mais. O fato de se tratar de uma intromissão absurda do Estado na intimidade sexual das pessoas (na medida em que duas irmãs solteironas que morem juntas não podem se “casar”, mas duas amigas cuja relação seja sexuada podem) tampouco vem mais ao caso.
A proibição de ir além, de nem sequer buscar entender o que seja o Bem ou a Justiça, ou mesmo o bom e o justo, forçam sua substituição pelo meramente efetivo
E o mesmo se dá com tudo o mais: da legislação de armas de fogo ao código de trânsito, passando pelo licenciamento de negócios, direitos trabalhistas e regulamentação de balões de ar quente e o que mais se quiser, a incapacidade completa de perceber o Bem e a Justiça somada à perfeita inversão da relação entre lei positiva e lei moral levam à entronização de absurdos cada vez mais delirantes, em que a autonomia das pessoas e das famílias é sempre mais e mais vitimada.
Afinal, é evidente que – para reduzir ao absurdo o raciocínio – pessoas em coma têm possibilidade extremamente menor de cometer crimes ou de ser por eles vitimados; assim, seria consequencialmente desejável a redução da sociedade a algo como o universo do filme Matrix. Ninguém jamais sairia do coma, e – idealmente – todo tipo de prazer sensível seria injetado na mente dos comatosos. Seria a sociedade consequencialista perfeita, e para que se tornasse moralmente justa bastaria erigir em lei positiva a obrigação do coma.
Afinal, para que serve perguntar para que servem as coisas? Por que teimam os filósofos em perguntar o porquê das coisas? A vida é tão mais fácil e simples quando tudo o que interessa é o “como”... ou o coma.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos