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“A espada de Dâmocles”, do artista italiano Giuseppe Piattoli
“A espada de Dâmocles”, do artista italiano Giuseppe Piattoli| Foto: Metropolitan Museum of Art

Quando a Igreja chegou a Roma, a decadência desta já era avançada. Seu estado geral era, em muitos aspectos, já semelhante ao que temos ao redor de nós hoje: uma população que vivia – como vive a nossa – para o prazer. Uma confusão em grau extremo entre desejar e precisar, como se fossem a mesma coisa. Uma escravidão generalizada aos sentidos, numa busca incessante e fútil por prazeres cada vez maiores, cada vez mais “radicais” e extremos. Tudo isso hoje nos é novamente familiar, exatamente como era aos olhos dos primeiros cristãos romanos. Entre os pagãos de Roma já havia, todavia, uma série de movimentos de índole filosófica que procuravam ensinar às pessoas como viver uma boa vida. Uma boa vida, evidentemente, não é o mesmo que escravizar-se aos prazeres e aos mecanismos pelos quais se pode garantir que eles estejam sempre disponíveis, como soía então e sói hoje acontecer. “Ah, a boa vida!”, nos dias de hoje nos faz pensar em alguém deitado no convés de um iate, bebendo champanha francesa, cercado de moças cuja beleza é inversamente proporcional a seu pudor. Para um romano que não aderisse àquelas escolas de origem grega, provavelmente o mesmo seria o caso.

Mas isto, para quem quer que tenha vivido um pouquinho que seja além de uma infância e uma adolescência regalada, traz um medo oculto, uma espada de Dâmocles sempre a pender sobre a tal “boa vida”: uma hora ela acaba. Pode ser a morte de uma pessoa querida, uma reviravolta política, um acontecimento financeiro que leve o ricaço à falência, uma doença dolorosa… Mas um dia, com certeza, aquilo tudo acaba. E a rebordosa é muito maior que a alegria anterior.

E é isto que os filósofos de então procuravam evitar, ao dar suas receitas para a boa vida. Tanto epicuristas quanto estoicos, entre muitas outras seitas menores, estavam de acordo com os cristãos ao buscar evitar a escravidão do sensível, hoje tão difundida que simplesmente não faz sentido pensar de outra maneira para a imensa maioria das pessoas. E ainda por cima hoje temos, graças à tecnologia, meios para evitar por mais tempo reencontrar as trevas do sofrimento: analgésicos fortíssimos que sufocam quase toda dor (o que nos traz à mente a crise do vício em opiáceos entre nossos irmãos do Norte), antidepressivos que nos fazem nadar num mar de serotonina mesmo que nossa vida não tenha sentido algum; condicionadores de ar e comidas prontas que nos impedem de passar frio ou calor e de comer coisas de gosto ruim; carros e aviões que nos levam céleres a qualquer lugar que desejemos visitar.

Mas a espada de Dâmocles do fim dos prazeres continua a pairar sobre nossa cabeça. Todas essas medidas encontram fatalmente o seu limite em algum momento, e a “boa vida” que tínhamos se faz notar em toda a feiura que jazera sempre por trás da maquiagem dourada que a encobria. A diferença maior entre o modo de encarar as coisas – os prazeres, as dores, e tudo o que está no meio – por parte dos filósofos pagãos e os cristãos é apenas a teleologia: enquanto o pagão vê apenas a vida no mundo, calando-se sobre o que pode vir depois da morte, o cristão tem a esperança do Paraíso. Daí, inclusive, a maior diferença de moral prática: os pagãos costumavam considerar o suicídio uma boa opção para evitar sofrimentos maiores para, por exemplo, um imperador destronado ou alguém que viesse a sofrer de uma doença degenerativa, enquanto o cristão vê na aceitação do sofrimento um modo de unir-se ao Crucificado para a salvação das almas, inclusive da própria.

Mas tanto uns quanto outros percebiam claramente que a escravidão aos prazeres só poderia piorar o sofrimento na hora em que eles, por qualquer razão que fosse, cessassem. Assim, havia muito em comum entre eles, principalmente o incentivo a algum ascetismo. Hoje, contudo, falar de ascetismo é como falar, que sei lá eu, de algum detalhe ignoto de uma arte perdida nas brenhas orientais. A população em geral – e isso inclui mesmo os cristãos praticantes – simplesmente não tem noção do que seja isso, que dirá de seu valor e, mais ainda, de sua necessidade. O protestantismo, aliás, começou em grande medida como uma religião anti-ascética, com seu fundador, Lutero, dizendo que não havia problema de castidade, pois bastava chamar uma empregadinha (e, pressupõe-se, estuprá-la). Calvino pregava um certo ascetismo burguês, mas movido por razões bem diferentes das do cristianismo clássico ou mesmo do paganismo greco-romano. A influência do protestantismo sobre a formação da mente moderna não pode ser superestimada, e agora, na pós-modernidade, a impressão que se tem é que tudo o mais foi eliminado por destilação, sobrando apenas a escravidão aos sentidos que caracteriza tanto o protestantismo quanto a modernidade.

A única maneira de não se escravizar aos sentidos é, tautologicamente, evitar que eles nos prendam. Mas como isto pode ser operado? Entra aqui outra diferença entre o cristianismo e a filosofia pagã, que é o fato de os cristãos crermos que não estamos sozinhos, tendo a ajuda sobrenatural (ou seja, acima de nossa natureza) de Deus e da Comunhão dos Santos. Isto, inclusive, ajuda a explicar como o cristão pode não só sobreviver, como prosperar, em situações em que o filósofo pagão veria no frasco de veneno a única saída. Mas uns e outros concordamos em dizer que  é preciso ter em mente que os prazeres sensíveis são viciantes. Devemos tratá-los como trataríamos uma droga que nos eliminasse as dores, mas nos viciasse e, com o tempo e o uso costumeiro, deixasse de funcionar justamente por ter sido usada de maneira habitual. Há muitas assim, aliás, dos opiáceos a relaxantes musculares, passando pela cocaína e pela heroína, que geram multidões de zumbis escravizados pela droga, sem conseguir pensar em nada mais que não a próxima dose.

E é assim que devemos lidar, por exemplo, com o conforto físico. Ele é bom? É. Mas o ótimo é não precisar dele, e para não precisar dele é necessário não se acostumar com ele ao ponto de não aguentar viver sem ele. Ruy Barbosa, dizem, dormia às sextas-feiras com um livro grosso à guisa de travesseiro, justamente para não se deixar levar pela escravidão ao travesseiro. E quantas pessoas há que não só precisam dum travesseiro, como precisam daquele travesseiro determinado! É comum vermos em rodoviárias pessoas carregando aquele trambolho em viagem, como se fosse uma bola de ferro presa por corrente a um tornozelo. Sem ele sequer conseguiriam dormir, tamanho o grau de escravidão que os assola.

A Igreja, em sua sabedoria, sempre incentivou que cada um fizesse exercícios ascéticos adequados à sua condição, com alguns sendo obrigatórios para todos (menos crianças, idosos e doentes), como a abstinência de carne às sextas-feiras e durante a Quaresma, alguns jejuns ao longo do ano e antes de toda comunhão, bem como outras pequenas disciplinas que têm por objetivo não elas mesmas (ou seja, o jejum não é “para poupar comida e dar aos pobres o que não se come”, sim para não se acostumar a viver de barriga cheia), sim o nosso bem-estar espiritual.

Do mesmo modo, sempre foram recomendadas as penitências (cabe lembrar que a dada na Confissão é simbólica, e que a penitência real deve ser imposta por um diretor espiritual que saiba da vida do dirigido), e sempre foi tido por perigoso o prazer sensível. Isto não significa que ele seja proibido; muito pelo contrário, aliás. O prazer do churrasco dominical é tanto maior quanto tenha sido rigorosa a abstinência quaresmal ou da sexta-feira. O prazer do encontro conjugal é tanto maior quanto tenha sido perfeita a castidade durante o namoro e noivado. E por aí vai. Ao negar-nos a escravidão ao sensível, fazemos com que percebamos com mais clareza a alegria do sensível que nos é permitida. É um pouco isso que se passa, aliás, com os veganos, os que não comem açúcar, e outras pessoas com dietas rigorosas, que sempre cantam os louvores dos sabores que agora são capazes de sentir, justamente por não terem mais o hábito dos sabores fortes que, com o passar do tempo, acabam perdendo a sua força e sufocando todo prazer sensível de comer. Ou que, em outras palavras, escravizam.

Lembro-me de uma vez em que comprei uma bota nova. Sempre usei coturnos do exército, desde que me entendo por gente, mas alguns colegas me haviam recomendado muito enfaticamente uma determinada bota, que acabei comprando. Comprei-a, e saí da loja andando com ela. Confesso que me senti constrangido com seu conforto extremo. “Isto não está certo” era o que minha mente martelava, justamente por ter sido adestrada a evitar costumeiramente os prazeres sensíveis. Sapatos novos, ora pitombas, deveriam incomodar um pouco que fosse. Do mesmo modo, hoje, todo capenga, todo quebrado, todo queimado, quando finalmente cedo à premente necessidade e me deito para descansar um pouco, sempre penso “que delícia… não posso me acostumar a isso, ou acabo me viciando”. Esta é a mentalidade do ascetismo sadio: uma mentalidade que desconfia do prazer costumeiro, para que ele mantenha toda a sua força quando permitido e jamais nos escravize.

Há pessoas, como os monges e alguns outros que se dedicam de modo mais integral à busca de santidade, que têm práticas ascéticas fortíssimas, como jamais comer carne, usar cilícios, rezar de joelhos por longas horas, etc. A diferença entre eles e uma pessoa comum – seja ela cristã ou simplesmente uma pessoa de bom-senso, que tem a decência de dar ouvidos a filósofos como Sêneca – é mera questão de grau. Não faria sentido algum que uma mãe de família se sujeitasse a práticas ascéticas rigorosíssimas, como, por outro lado, não faz sentido algum que ela se deixe escravizar pelos sentidos.

A escravidão aos sentidos, afinal, acaba tornando a pessoa amarga e eternamente insatisfeita. A pessoa que tem por “normal” um dado grau de conforto e prazer terá enorme dificuldade em lidar com qualquer grau menor dele, de conviver com o contraditório, de suportar uma dor, de viver uma perda. Aliás, é sempre fácil perceber como as pessoas menos gratas, as mais “reclamonas”, as que mais acham defeito nos demais e menos os acham nelas mesmas são sempre pessoas que vivem em função dos prazeres sensíveis, do conforto, de um bem-estar material tanto mais enganoso por sua incapacidade de saciar a sede humana de um Bem infinito. Este Bem não está nos sentidos, ainda que o bem sensível possa muitas vezes ser como que um antegozo dele – eu que o diga, quando finalmente me deito! Mas não é este bem passageiro que verdadeiramente buscamos, e ao procurar o Bem no conforto material estamos na verdade nos afastando mais tanto dele quanto, como já sabiam os pagãos mais sábios, do próprio gozo dos bens passageiros.

É um dos muitos paradoxos do ser humano: quanto menos buscamos os bens sensíveis, mais eles são capazes de nos proporcionar alegrias. Aproveitemos, assim, estes nossos tempos interessantes, como na praga chinesa (a outra, não o colonavírus), para paulatinamente nos acostumarmos a viver de forma mais simples e, assim, poder ter alegrias mais constantes, bem como maior resiliência diante da perda de qualquer bem terreno. Inclusive o de sair à rua.

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