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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Wikileaks

Assange e a agonia da democracia ocidental

Julian Assange, fundador do WikiLeaks. (Foto: Facundo Arrizabalaga/EFE)

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Poucas coisas mostram melhor o quanto estão em risco as liberdades civis mais essenciais da era de democracia que ora finda que o caso de Julian Assange. A coisa está tão feia que até a Alta Comissaria de Direitos Humanos da ONU já declarou sua preocupação.

Assange é conhecido – e perseguido – por sua brilhante criação, o Wikileaks. A ideia é simples, mas brilhante: uma página de internet para a qual podem ser mandados anonimamente documentos comprovando crimes graves cometidos por governos ou grandes corporações, crimes cujos denunciantes sabem que de outro modo não serão investigados. Ou, ainda, crimes cujos denunciantes têm medo de denunciar abertamente devido ao poder dos denunciados. A coisa funcionava direitinho: mandavam-se os documentos, e eles eram publicados. A imprensa se via forçada a noticiar, e barbaridades cometidas por poderosos eram finalmente expostas à luz, levando por vezes a investigações ou, pelo menos, ao reconhecimento público de que aquela gente não era flor que se cheirasse. Foi assim que foram descobertos os muitos milhões em paraísos fiscais de uma montoeira de gente poderosa mundo afora, incluindo políticos brasileiros, o atual presidente da Ucrânia, e por aí vai.

Em tese, trata-se de coisa extremamente louvável, especialmente quando se dá valor à tão aclamada democracia. Como poderia o povo (“deimos”) governar (“cratos”) se não souber o que fazem os que – ainda em tese – o representam?

O que Assange fez é a mais pura definição de jornalismo, mais ainda de jornalismo democrático: ele levou a público a verdade acerca dos malfeitos dos poderosos. Se se cala a imprensa, como se há de saber do que é tramado e executado nos bastidores do poder?

Tudo isso, ainda em tese, é lindo. Na realidade, na dura e dolorosa realidade dos fatos, todavia, tal como com os porcos da Revolução dos Bichos, ainda que todos sejam iguais há sempre alguns que são mais iguais que os outros. E é este o caso do Paladino da Democracia, do Líder do Mundo Livre, do país que hoje se diz o Defensor da Democracia contra a Autocracia: os Estados Unidos. Assange publicou no Wikileaks documentos vazados por alguns denunciadores americanos, comprovando crimes de guerra gravíssimos e, mais ainda, uma mentalidade arraigada nas forças armadas daquele país que os leva a sistematicamente desprezar os direitos humanos dos outros povos. Nenhuma grande novidade para quem se dá ao trabalho de ler as entrelinhas dos acontecimentos, mas a crueza de vídeos de crianças sendo metralhadas por helicópteros ao som do bate-papo relaxado entre amigos na cabine do aparelho tem um valor de choque que o simples conhecimento das ações não traz. Os documentos comprovando o nível de espionagem americana contra seus próprios cidadãos, em flagrante desrespeito às liberdades civis supostamente garantidas pela Constituição daquele país, também fizeram com que muitos sobrolhos se alçassem.

E pronto: abriu-se a temporada de caça à cabeça de Assange. Ora, o sujeito é australiano, morador da Europa. Não haveria, caso houvesse sombra de respeito à legislação internacional, base alguma para querer enquadrá-lo em leis americanas; ao menos não mais que o necessário para enquadrá-lo em leis russas ou norte-coreanas. Mas isto não fez sequer piscar o Deep State, o famoso “Estado Profundo” que governa os EUA independentemente de quem ocupe a Casa Branca. O primeiro ataque contra Assange, com o objetivo único de fazer com que ele fosse preso por alguém em algum lugar para ser então entregue ao Estado (Profundo) americano, foi uma denúncia tão bizarra que chega a parecer piada: ele foi acusado de ter tido relações sexuais sem camisinha com uma fã sua, num país nórdico em que, por supostas razões de saúde pública, relações sem camisinha são legalmente equiparadas ao estupro. Nem mesmo lá a coisa foi adiante, aliás, mas o perseguido foi mais rápido e passou para a Inglaterra antes que a polícia o prendesse por tão nefando crime. Logo chegou à Inglaterra, todavia, um ainda mais esdrúxulo pedido de extradição. Afinal, sexo sem camisinha é crime tão bárbaro, quando quem o comete não está nas graças do Estado Profundo gringo, que merece até pedido de extradição.

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Refugiou-se, então, o pobre descamisinhado na embaixada equatoriana em Londres, onde ficou anos a fio. Teve até dois filhos, se não me engano, o que mostra que continua alheio aos atrativos da tal borracha. Sabe-se hoje que os serviços secretos americanos plantaram microfones e câmeras pela embaixada toda; muita gente que visitou Assange, inclusive seus advogados, está agora movendo processos contra o governo americano por violação de sua privacidade. Descobriu-se ainda que a CIA planejou sequestrá-lo da embaixada, em ação armada, prevendo até mesmo trocar tiros com a polícia inglesa caso necessário. Tamanha é a subserviência do governo inglês em relação ao americano, todavia, que nem mesmo isso os levou sequer a apresentar reclamações pelos meios diplomáticos oficiais.

É essa subserviência que fez com que Assange fosse submetido a um tribunal de fancaria, em que seus advogados mal puderam se manifestar, que – como sabiam até os rouxinóis da Praça Trafalgar, se algum ainda houver – o condenou a ser enviado para as garras do Estado Profundo americano. Vê-se como são fartas tais cortes pelo mundo hoje em dia; há até as que prendem parlamentares por parlapatices idiotas aqui ou ali. Assange, que já passou anos literalmente preso na embaixada, até que se esgotem os recursos e seja mandado, quiçá enrolado em correntes, para os EUA, está sendo mantido em condições tremendamente insalubres numa cadeia destinada a criminosos de altíssima periculosidade.

Ora, o que Assange fez é a mais pura definição de jornalismo, mais ainda de jornalismo democrático: ele levou a público a verdade (ninguém jamais o acusou de ter publicado notícias falsas; as que publicou eram sempre verdadeiras, tão verdadeiras quanto desagradáveis aos donos do poder) acerca dos malfeitos dos poderosos. Se se cala a imprensa, como se há de saber do que é tramado e executado nos bastidores do poder?! Se não há imprensa, como poderia o público saber que este careca faz aquela barbaridade? É importantíssimo para a democracia que haja uma imprensa investigativa séria e, mais ainda, livre para apresentar a verdade, doa ela a quem doer. Quando se cala a imprensa cala-se a cidadania, e quando se cala a cidadania extingue-se a democracia.

Enquanto Assange estiver preso, seja ainda na Inglaterra, seja em Guantánamo ou em qualquer outro gulag ocidental para o qual for enviado, “democracia” persiste a ser palavra vazia

É menos mau bater no peito e declarar-se em alto e bom som uma autocracia, uma ditadura, como fazem os russos ou chineses; ao menos ninguém ali tem como persistir na ilusão de que seja o povo, não uma récua de morcegos sanguessugas, que está no poder. Já num país como os EUA ou tantos outros em que fingimos da boca para fora que ainda há democracia, o que se tem é um regime da mentira, um regime em que uma fina fachada de democracia, como numa aldeia Potemkin, esconde uma glabra e lustrosa autocracia. Uma ditadura, para dar nome aos bois. É esta a situação dos EUA, cada vez mais preocupante para seus próprios cidadãos, que veem agora voltada contra eles a máquina de matar que desde o fim da Guerra da Secessão, quase 200 anos atrás, voltara-se apenas contra gente morena em terras distantes.

Se o país que mais se arrota democrático não apenas persegue jornalistas como o faz no exterior, usando e abusando de seus títeres europeus, que fim levou o Mundo Livre de que tanto se falava tempos atrás? O que temos hoje em dia é a volta do poder nu e cru da força bruta, em que manda quem pode e obedece quem tem juízo, e isso não só aqui, mas no mundo. Ainda que seja verdade o famoso dito de De La Rochefoucauld, segundo o qual “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”, de que adianta que haja apenas hipocrisia, ou seja, apenas vício, tendo sido a virtude reduzida à hoje esvaziada palavra “democracia”? Se tanto faz quem ganhe as eleições americanas, pois quem manda mesmo é o Estado Profundo, se tanto faz que eleições sejam fraudadas onde quer que se seja, pois o que interessa é só que se bata no peito e se proclame “democrático”, qual a diferença da nossa situação em relação àquela dos países comunistas da antiga Cortina de Ferro? Afinal, diziam-se todos não apenas “democráticos”, mas o faziam em dose dupla: eram “repúblicas democráticas populares”, vejam bem os senhores que coisa mais linda. Até, claro, que olhássemos além das brilhosas fachadas de Potemkin e víssemos a KGB, os gulags e tudo o mais. Até que percebêssemos que o que fosse dito em particular entre amigos poderia ser motivo de persecução criminal, congelamento de bens e mesmo prisão. Até, em suma, que ficasse claro que “democracia” não era ali mais que um amuleto verbal, um talismã vazio. Uma hipocrisia. Uma fachada tênue de falsa virtude a esconder o vício.

É esta hoje a situação do Ocidente, sem que com isso tenha melhorado muito a do Oriente. A China hoje de comunista só tem o nome, mas de democracia nem o nome tem. A Rússia hoje – como outrora com os czares – orgulhosamente proclama-se autocrática. Só por estas bandas, neste hemisfério, é que encontramos fenômenos como o americano, de países que nos proclamamos democracias sem que na verdade tenha o povo voz. Enquanto Assange estiver preso, seja ainda na Inglaterra, seja em Guantánamo ou em qualquer outro gulag ocidental para o qual for enviado, “democracia” persiste a ser palavra vazia, mero flato vocal a esconder a mentira autocrática que, na contramão do resultado da Guerra Fria, veio ter deste lado do Atlântico sem que ninguém a percebesse até ser tarde demais.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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