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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Brasil e Portugal

Interdependência e independência

Detalhe de "Sessão das Cortes de Lisboa", de Oscar Pereira da Silva. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Duzentos anos atrás dom Pedro declarou a independência, sabemos todos. Na prática, contudo, o que ele declarou não foi exatamente a independência do Brasil, mas a própria. As Cortes, que se julgavam supremas, o haviam convocado a retornar a Lisboa, que voltara a ser a capital do Reino Unido após seu pai, dom João, ter sofrido o mesmo golpe. Não fazia sentido algum que com o grosso do reino sendo aqui a capital fosse lá, naquela nesguinha de terra de costas para a Espanha e debruçada sobre o Atlântico, com a Inglaterra a fungar-lhe o cangote, mas tal era a imbecilidade e tacanhez das Cortes tão convencidas de serem supremas. Há sempre aqueles a quem a mediocridade sobe à glabra cabeça.

A capital natural daquele vastíssimo Reino Unido de que até então fazíamos parte era e continuou sempre a ser o Rio de Janeiro, donde e onde continuou dom Pedro a reinar. Até, aliás, ter de voltar a Portugal para defender as mesmas Cortes do golpe dado por seu irmão. Ao proclamar a própria independência das Cortes, dois séculos atrás, contudo, cortou dom Pedro os laços entre a origem maior de nossa cultura e esta vastidão de terras, gentes e riquezas d’aquém-mar. Infelizmente. Àquela altura do campeonato, Portugal era-nos uma espécie de mãe-polvo que, tendo criado o filho até a idade adulta, nele se pendura sem o deixar respirar. A riqueza do Reino Unido estava aqui. A gente estava aqui. Aqui estavam as terras. Portugal tinha a nos dar boas lembranças e antigas sabedorias, mas não muito mais que isso. Quem era dependente, naquele momento, não era mais o Brasil, sim a terrinha que voltara, absurda e narcisisticamente, a ser a Metrópole.

Livrou-se assim o Brasil de ser sugado por uns políticos tacanhos e miseráveis, que se recusavam a perceber a realidade dos fatos e preferiam dormir sobre louros passados. Perdeu assim, todavia, o Reino Unido a imensíssima maior parte de sua gente e seu território, o que prejudicou tremendamente, mais tarde, o seu trabalho civilizatório. Não fazia então sentido algum, e pouco faz agora, separar o que a cultura, a língua e a religião uniram. Portugal, reduzido novamente a quase-apêndice da Inglaterra para conseguir preservar-se da absorção pela Espanha, tornou-se novamente um país pobre. Levamos nossa mãe narcisista à miséria, em vez de estabelecer com ela uma relação de mútuo respeito no quadro, que já estava pronto, do Reino Unido.

A riqueza do Reino Unido estava aqui. A gente estava aqui. Aqui estavam as terras. Portugal tinha a nos dar boas lembranças e antigas sabedorias, mas não muito mais que isso. Quem era dependente, naquele momento, não era mais o Brasil

Tenho o sonho de escrever um livro de ficção histórica em que dom João, ao ser convocado pelas Cortes, faz o que deveria sempre ser feito em relação a Cortes que se julgam supremas e por isso abusam de seus limitados poderes. No livro, ao contrário do que ocorreu de fato, dom João teria contratado uma companhia de mercenários suíços – os mercenários suíços eram tão eficientes que a própria Suíça acabou proibindo a seus cidadãos tal emprego, permitindo-lhes apenas a contratação pela Santa Sé: daí vem a famosa Guarda Suíça. Eles teriam sequestrado, na calada da noite lisboeta, todos os membros das Cortes. Trazidos ao Brasil respeitosa porém firmemente, os arrogantes cortesãos teriam sido forçados a encarar a realidade e nosso Reino Unido teria sido preservado, com a capital devidamente no Rio de Janeiro. No século seguinte, em vez da arrogância de um Getúlio teríamos tido a sabedoria de um Salazar...

Portugal, assim, não teria sido reduzido à insignificância de que a Era das Navegações lhe havia retirado. O sapientíssimo modelo português de colonização, que é mais evangelização e aporte de cultura que colonização propriamente dita, teria podido ir tremendamente mais longe. Ao proclamar sua independência pessoal das Cortes, dom Pedro impediu que fosse resolvido a contento um problema que na verdade era causado por uma minoria arrogante, por Cortes apaixonadas por elas mesmas. É bem verdade que elas queriam reduzir o Brasil novamente a colônia; esta imbecilidade, contudo, era apenas o delírio narcisista de gente que não conseguia perceber que o Reino Unido era muito maior que o pequeno Portugal de onde queriam reinar no lugar do rei. O problema não era nem Portugal nem o Brasil, sim as Cortes. Ora, com elas, assim como com outras, um cabo e dois soldados (no caso, suíços) teriam podido resolver o problema sem derramar sangue nem cometer quaisquer injustiças.

E foi uma injustiça o que elas forçaram a mão de dom Pedro a fazer. O Brasil não perdeu nada, por já ser àquela época uma potência, por ser então o vasto e forte corpo de um Reino Unido cuja cabeça – ou capital – forçosamente tinha como lugar correto o Rio de Janeiro. Portugal, contudo, perdeu tudo, pela imbecilidade de algumas figurinhas mordidas pela mosca azul. Com isso, perderam também os outros povos para os quais Portugal estendeu sua mão civilizadora.

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Fala-se de modelos de colonização, no mais das vezes com uma visão marxista que os reduz à economia. Para Portugal (e em menor medida para a Espanha, e em medida ainda menor a França), todavia, nunca foi a economia o fator principal. Ao contrário: Portugal queria fazer-se mais vasto, abraçando e englobando, com seus povos e suas riquezas outras que não só as mercantis, vastas regiões do planeta. Queria fazer dos nativos portugueses e dos portugueses nativos, numa mistura que só a universalidade da mensagem cristã pode proporcionar. Exatamente como fizera aqui no Brasil, aliás. Ao cá chegar os bravos lusos, nossos pais, encontraram vastas florestas pelas quais vagavam grupelhos de caçadores e coletores como os do Neolítico europeu. Mesmo assim souberam respeitar, cristãmente, a dignidade essencial de cada pessoa e de cada sociedade. Casaram os filhos da aristocracia portuguesa com as filhas dos caciques, e os filhos do populacho luso com as filhas dos caçadores silvícolas. Criaram uma sociedade em que a origem étnica de cada um é irrelevante, por sermos todos mestiços tricontinentais, e em que os melhores hábitos d’além e d’aquém-mar puderam combinar-se à maravilha.

Esta é uma tremenda riqueza do Brasil, que podemos apreciar melhor até mesmo por ser tão comum em nossos dias a importação irrefletida dos horrores racistas da gringa. Aqui, graças à obra civilizatória lusa, não há uma nação preta separada de outra nação branca, com bairros, sotaques e culturas distintas: somos todos brasileiros, e por definição somos todos vira-latas. Felizes e cristãos vira-latas, sempre prontos a não apenas acolher, mas misturar na nossa farta feijoada cultural quaisquer carnes que nos venham de fora. Chegam-nos italianos, alemães, suíços, japoneses, haitianos e quem mais for, e seus filhos já nascem tão brasileiros quanto os descendentes dos índios autóctones ou dos primeiros lusos a por estas bandas fincar pé. Não há brasileiro “com hífen”, como é o triste caso entre nossos irmãos do Norte, onde se é “afro-americano”, “irlandês-americano”, “ítalo-americano”, e por aí vai.

Portugal bem que tentou prosseguir nessa nobre missão, mas as outras terras em que tentou fazê-lo tinham gente demais para portugueses de menos. O que lhes faltou estava aqui, no Brasil: gente, muita gente, gente civilizada, gente aberta ao outro, gente em quem lusamente vivia e vive forte a noção cristã da dignidade essencial de cada homem, da dignidade d’alma que pode fazer o mendigo superior ao rei. Quando vejo a pobre Angola, por exemplo, perdida em guerras tribais e ideológicas que lhe fazem a população miserável apesar da fartura de riquezas do subsolo daquela terra, só posso pensar em como teria sido bom se houvéssemos ainda feito parte desse vasto empreendimento civilizatório português quando lá tentou agir a nação lusa. Ah, se tivéssemos podido trazer angolanos aos magotes, de todas as tribos, e levar para lá brasileiros às mancheias, dissolvendo as inimizades tribais e englobando a todos na mesma cultura de tolerância!

Dom Pedro impediu que fosse resolvido a contento um problema que na verdade era causado por uma minoria arrogante, por Cortes apaixonadas por elas mesmas. Pois o problema não era nem Portugal nem o Brasil, sim as Cortes

Ah, se Goa, ou Cantão, ou mesmo Formosa, tivessem tido o auxílio de nossa gente, que é a mesma gente lusa, da mesma cultura, da mesma nação! Não seríamos apenas um gigante em berço esplêndido; não teríamos abandonado nossa mãe lusa a seus trabalhos, pequena e fraca. Seríamos parte de um enorme Reino Unido presente em todos os continentes, em que cada cidade, cada entreposto seria povoado por laboriosos e tolerantes vira-latas. Com os braços fortes de nossa gente numerosa, nossa velha mãe Portugal teria podido proporcionar a seus outros filhos mais novos o mesmo muito que nos proporcionou ao nos dar o raro privilégio da última flor do Lácio, da cultura que informa este derradeiro bastião da Civilização Ocidental.

Imaginemos uma Angola rica e pacífica, parte do mesmo reino em pé de igualdade com o Rio, São Paulo, Bahia ou Algarve. Uma Angola a cujas universidades os próprios mineiros recorressem, e cujos filhos aqui viessem em busca de novos ares, sem jamais deixar o próprio e mesmo reino. Uma Formosa que, em vez de ser objeto de guerra e disputa, fosse centro de difusão da tolerância e da hospitalidade de nossa cultura por aquelas sofridas bandas. Um Timor que tivesse sempre podido recorrer à riqueza não apenas cultural, mas também material e mesmo demográfica de nossa terra de dimensões continentais!

A colonização genocida realizada pelos anglos na América do Norte e na Oceania explica-se não apenas pela sua cultura bélica e agressiva (que os pobres irlandeses já podiam testemunhar), mas também pela simples quantidade de gente. Para chacinar quase todos os habitantes de uma terra tão vasta quanto a dos atuais Estados Unidos é preciso muita gente, uma vastidão inesgotável de colonos armados. Por outro lado, gente apenas, vasta cópia de gente em quem a tolerância substituísse a sede de sangue dos anglos, pode fazer um bem tremendo. É isto que pôde acontecer no Brasil e, a partir daqui, teria podido acontecer nos outros lugares para onde tentou nossa mãe lusa estender sua mão, e em outros ainda. Tendo a nação lusa nossa gente, estando ainda presente e disponível a muita gente desta maior parte do Reino Unido, teria sido possível estender mundo afora a nossa cachaça, mistura de raça, mistura de cor; nosso samba democrata, que tem tanto valor. Funcionou aqui; funcionaria alhures.

E o mundo seria um lugar melhor.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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