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Foto: Corpo de Bombeiros de Minas Gerais
Foto: Corpo de Bombeiros de Minas Gerais| Foto:

O horror de Brumadinho, com provavelmente centenas de mortos num acidente completamente evitável, serve em certa medida como um teste de Rorschach da política brasileira. Do lado esquerdo do campo, acusações contra a recém-iniciada presidência de Bolsonaro. Do lado direito, acusações contra os três últimos ocupantes do Palácio do Planalto. De ambos, em suas pontas mais extremas e delirantes, acusações infundadas de atentado proposital.

A perícia ainda não foi feita; no momento, compreensivelmente, as prioridades são outras. Mas não creio que seja necessária uma bomba para provocar tamanho morticínio. Para isso bastam as características tão queridas dos mandachuvas de nossa política de compadrio: imprudência, imperícia e negligência, aliadas ao mais profundo desprezo pelos pobres. Não sei nem tenho (ainda: espero a perícia) como saber o que fez com que cedesse a barragem. Aposto, contudo, desde já com os meus parcos leitores que veremos que a barragem foi feita da maneira mais barata possível, usando o material mais fácil e barato, com margens minúsculas para erro. Neste caso, basta que aconteça qualquer coisa fora do normal – de um leve tremor de terra (como se disse ter havido, aliás) a uma infiltração pouquinha coisa maior que o previsto pelos engenheiros – para que tudo desabe. E, desabando, para que sejam ceifadas centenas de vidas e contaminados centenas ou milhares de hectares de terra e águas puras, destruindo vilarejos e transformando a aposta de que não daria nada em um morticínio absurdo, um crime real, um homicídio cujo dolo pode ser presumido pelo descuido para com a vida dos que viviam pacificamente a vazante da agora famigerada barragem.

Afinal, para que serviria gastar dinheiro e tempo preciosíssimos quando o rompimento igualmente criminoso da barragem de Mariana, três anos atrás, não resultou na prática em prejuízo real algum para a mineradora, que dirá em incômodo para os responsáveis? Para que serviria cuidar mais da vida do próximo que dos resultados contábeis da empresa? Era uma aposta fácil, mas a aposta foi perdida. Entretanto, o que se apostava não era apenas os lucros da empresa (a Vale perdeu mais de R$ 70 bilhões em valor de mercado com o desastre), sim a vida dos pobres. Pobres tão pobres que, na hora de contar os tostões para “compensar” (só eu acho isso ofensivo?) as famílias pela perda de seus entes queridos, para baratear, os cálculos são feitos tendo por base o salário do falecido. Em outras palavras, a vida de um pobre vale menos que a vida de um rico, na medida em que a indenização compõe-se basicamente dos salários que a pessoa supostamente ganharia ao longo do resto da vida. Se o finado recebia salário mínimo, será esta a base. Se recebia um salário de deputado ou de diretor executivo da Vale, os cálculos e quantias finais terão muito mais zeros.

Quem pode trazer os mortos de volta? Quem pode fazer renascer as terras contaminadas? Quem pode fazer voltar o relógio e o calendário? Ninguém. Só o que se pode fazer é tentar tirar deste acidente e dos anteriores lições que perdurem. A primeira delas é que não se pode confiar nos dados apresentados pelas companhias. A segunda é que tampouco se pode acreditar plenamente nos laudos das inspeções terceirizadas; afinal, o perfunctório laudo afirmando que a barragem era estável segundo esta ou aquela lei e determinação em vigor não vale, como agora é evidente, o papel em que foi escrito. Tratava-se, pensavam todos, de um documento pró-forma. Afinal, não ia dar nada; nunca deu nada. Basta que os papéis estejam certos, carimbados e assinados, e pronto. E esta é a terceira conclusão que precisamos tirar: tem de “dar” em algo. Já foi um bom começo prender quem assinou o laudo. Falta, contudo, prender quem pagou para que assinasse o laudo. Quem pagou – ou deixou de pagar – para que a barreira fosse construída dessa maneira. Quem coordenou essas ações. Toda a cadeia improdutiva que produziu aquele morticínio tem de ser exemplarmente punida, levada a tribunal para responder por múltiplos homicídios com dolo presumido. Menos do que isso fará com que não haja empenho em consertar as demais barragens – só no estado de Minas, o estado de Mariana e Brumadinho, há 400! Menos do que isso fará com que continue a certeza da impunidade que grassa e sempre grassou em nossa política de compadrio.

E é esta, em grande medida, a missão para a qual Bolsonaro foi eleito. É por isso que ele formou um ministério técnico, pela primeira vez desde a tecnocracia militar. Ele prometeu afastar-se do toma-lá-dá-cá que tradicionalmente orientou a política da Nova República, negando-se a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão. O irmão desta modalidade de desgoverno – melhor dizendo, a outra face da mesma moeda podre – é o capitalismo de compadrio. A coalizão e o compadrio são irmãos siameses. A diferença é que, enquanto um compra deputados para passar medidas, o outro levanta os fundos com os quais comprá-los, garantindo que essas medidas beneficiem os grandes e normalmente piorando junto a vida dos pequenos. É o que faz com que tenhamos uma burocracia absurda para abrir e manter uma empresa, para pagar funcionários etc.; enquanto uma firma gigante paga facilmente um contador para isso, a firma pequena é forçada a pagar o mesmo contador sem ter, contudo, dinheiro para isso. E vai à falência, enquanto a grande perdura. Quem manda é o papel, o caro papel. Assim os pequenos são alijados do processo produtivo e os grandes são beneficiados com a ausência de competição.

E é esta mesma a situação da legislação ambiental brasileira. Ela é um amontoado de imbecilidades criminosas, de leis evidentemente feitas por gente que não conhece nem campo nem mata, guris de apartamento que acham que a onça é o Mickey e a plantação de que vem o que comem é uma devastação sem sentido. É uma lei que só beneficia quem pagou para fazê-la: os compadres, os mesmos que financiaram as coalizões. A morte da política – no sentido original, de cuidado para com a coletividade – honesta, na forma do conluio entre uma política eleitoreira imunda e um grande capital perverso e desinteressado no estrago que faz (não dá nada, não é mesmo?) nas vidas das pessoas. Plantar uma roça de feijão, no Brasil de hoje, virou uma atividade arriscada. Se for a menos de 50 metros de um riachinho, é proibido. Se for no topo de um monte, é proibido. Se for numa encosta, é proibido. Onde sobrou? Para enormes áreas e para praticamente qualquer terreno mais irregular (logo mais barato, logo mais provavelmente local de agricultura familiar), estados inteiros, não sobra lugar nenhum. Enquanto isso, ecochatos das capitais plantam brotos de feijão na janela do apartamento e acham que assim estão diminuindo a sua “pegada de carbono”.

Por exemplo, e um longo exemplo, senhoras e senhores, pasmem: no Brasil plantar eucaliptos é considerado “reflorestamento”. Ora, o eucalipto é a negação da floresta. Sua antítese. É o deserto verde. Numa plantação de eucalipto não se ouve um som. O silêncio é total, pois os eucaliptos afastam os insetos, que afastam os pássaros, que polinizam as demais plantas. Nada. Nem um pio. E, para melhorar ainda a devastação, o eucalipto exala um vapor incendiável (aquele cheirinho gostoso pega fogo) e solta cascas finas e secas para ajudar o fogo. Quando o fogo se alastra, adivinhem quem sobrevive? Ele mesmo, o eucalipto. Só ele. O resto, qualquer outra plantinha que ainda tivesse a coragem de tentar crescer naquele deserto, é queimada e morre. Ah, e, finalmente, para completar, o eucalipto suga toda e qualquer água que possa haver nas redondezas. O resultado é que a primeira plantação de eucaliptos mantém uma área preservada de 50 metros em torno das nascentes que porventura haja no terreno, mas, depois de os eucaliptos terem sido cortados e replantados uma ou duas vezes, a nascente seca e desaparece, e aquele pedacinho de terra passa a também ser plantado com eucaliptos.

E isso, por incrível que pareça, é chamado “reflorestamento” pela incrível e criminosa legislação ambiental brasileira. Já o pobrezinho não consegue plantar sua roça de feijão. Não consegue criar duas ou três cabeças de gado. Não consegue fazer nada sem tropeçar na legislação ambiental, a mesma que ampara o milionário que vai finalmente, quando o pobre desistir, arrendar por dois tostões de mel coado aquela terra antes produtiva para transformá-la num deserto de eucaliptos.

Tudo demanda, para o homem do campo, inspeções, provas, contraprovas, tudo em papel: uma papelada absolutamente sem sentido, exatamente tão desprovida de sentido e tão distante da realidade dos fatos quanto o vexaminoso laudo de uma linha atestando a estabilidade da barragem instável que tantas vidas ceifou. Para o agrobusiness, ou seja, para as monoculturas mecanizadas em áreas de planície, a economia de escala torna até possível cuidar disso tudo. Para a agricultura familiar, contudo, é tudo muito mais difícil. Que pequeno agricultor tem condições de viajar horas todo mês para cuidar de papéis inúteis em escritórios públicos longe dele e da lavoura que demanda sua atenção? A polícia ambiental, contudo, em um belo momento há de chegar lá e multá-lo porque plantou uma roça de feijão ou soltou uma cabra. Ou porque puxou um cano d’água para ter o que dar de beber à criação e mesmo à própria família.

Em grande medida, os desastres – ou, melhor dizendo, os indizíveis e abomináveis crimes perpetrados em Brumadinho e Mariana – são frutos dos problemas que acabo de apontar. Cria-se uma legislação que supostamente impediria qualquer problema através da mágica cintilante operada por papéis e carimbos. Burocratas e políticos, sentados numa sala refrigerada a centenas ou mesmo milhares de quilômetros das lavouras em que muitas vezes jamais pisaram, ficam imaginando mecanismos “infalíveis”, como os “planos infalíveis” dos personagens de desenhos animados infantis. Esses planos infalíveis, na prática, traduzem-se em uma tonelada de delirantes papéis carimbados, perfeitamente inúteis, que – mais uma vez na prática – têm como duplo efeito final a facilitação da vida do milionário, do compadre político que tem economia de escala para cuidar da papelada sem diminuir a margem de lucro, e a criminalização da atividade do pequeno, que por total impossibilidade de cumprir com os requisitos burocráticos vê-se agindo criminosamente ao fazer o que seus pais e avós sempre fizeram antes dele. O meio ambiente, contudo, ou seja lá o que quer que se esteja querendo proteger com a papelada toda, continua exatamente como estava. Afinal, a papelada é para inglês ver. O melhor exemplo disto no momento é o laudo de Brumadinho.

Note-se bem que não estou dizendo que se deva cessar as atividades de mineração e de agrobusiness. Muito pelo contrário. Só lembro que dinheiro não é tudo. O campo – e é no campo que essas atividades se desenvolvem – é mais que uma mera fonte de divisas. Tem de ser. O campo é a alma da pátria. É o homem do campo, é o pequeno agricultor, quem forma a espinha dorsal da brasilidade. O grande agricultor, com seu maquinário impressionante e suas vastas planícies ricamente semeadas com a mesma planta, é um industrial como qualquer outro, e tem seu papel (aliás, muito importante) na sociedade. Mas o campo não é ele.

O campo está debaixo da lama de Brumadinho. O campo são as vaquinhas que estão sendo abatidas de helicóptero por não se ter como tirá-las da lama, bem como seus falecidos proprietários. O campo são as moças de mãos calejadas que as limpam na barra da saia antes de oferecer um cafezinho ao visitante, ora mortas e sepultadas na lama, ainda de mãos dadas com seus gurizinhos. O campo são os senhores idosos, de cabeça branca, que ainda montam no cavalo para trazer as reses para o abate. O campo é o vinho caseiro oferecido com um sorriso, a galinha caipira cozinhada com orgulho no fogão de lenha. O campo é a alma do Brasil.

E o campo, nas palavras de uma das vítimas de Brumadinho, “é preso se pescar uma piaba”, mas continua na linha de tiro do grande, do milionário, do bilionário, do gigante industrial. Do compadre. Do financiador da coalizão. E não há gigante maior que a Vale. Ela foi na prática doada por FHC a seus compadres, mas o Estado ainda controla parte dela. O que temos, hoje, juntando-se tudo o que mencionei acima, é um monstro. Aliás, vários monstros, com várias cabeças e com corpos tão entrelaçados que não se sabe se seria possível separá-los. Vale, Samarco, e quem mais tiver dessas barreiras assassinas de R$ 1,99: todas elas têm acionistas em comum, interesses em comum, e muitas vezes uma é dona da outra enquanto a outra é dona da uma. Mistérios da finança desligada do chão. Da realidade. Daquilo que o campo mostra, significa e simboliza. O mesmo campo que elas estão sistematicamente assassinando.

O que o governo vai fazer agora pode significar uma virada na história: será que ele vai destruir ou manter a palhaçada burocrática que prometeu simplificar, quiçá até substituindo-a por algo que faça algum sentido e efetivamente promova os interesses do campo? Será que ele vai tomar as rédeas do monstro descontrolado que se provou ser a indústria de mineração, civilizá-lo e domá-lo, talvez entregando sua gestão aos militares por uma ou duas décadas, até que se tenha algo partido em centenas de companhias pequenas e manejáveis, que possam ser vendidas aos poucos sem que se corra o risco de deixar voltar à existência o monstro gigante que arrasou Mariana e Brumadinho?

Small is beautiful”: o pequeno é bonito. O gigante mata, o pequeno vivifica. Se este governo tiver isto em mente, repito, talvez possamos ter finalmente uma virada na triste história em que os cadáveres dos pobres sempre acabam debaixo da lama, enquanto os vivíssimos ricos lamentam apenas os lucros perdidos. Chega de gigantes; olhemos para o campo. Lá está o Brasil.

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