Poucas coisas são mais doentias e delirantes que a mentalidade burocrática. Para o burocrata, são o papel e o carimbo que movem o mundo, sendo os atos dos homens nada mais que uma pálida sombra de uma realidade burocrática que eles veem como mais profunda e verdadeira. Sem seus carimbos e papéis, creem eles, o mundo não apenas não se moveria, como nem sequer existiria.
Estou tendo, nestes dias, uma fartíssima exposição a esta mentalidade, devido às fortes mudanças na minha própria vida que decorrem da perda de um membro. Amputaram minha perna; já deveria ser problema bastante, mas esta amputação me lançou num pesadelo burocrático digno de Kafka em dia de ressaca de um porre de licor de ovos.
Estou aleijado. Não tenho mais a perna direita. Não pude começar este ano com o pé direito, como sempre se deseja aos amigos, e certamente teria enormes dificuldades se me metesse a gato-mestre e resolvesse tentar dirigir um automóvel qualquer. Afinal, é o pé que ficaria na ponta da perna que perdi que aperta o acelerador e o freio. Tenho de dar um jeito, para que volte a ter um mínimo de autonomia. Afinal, como moro na roça, sair de casa implica necessariamente em dirigir. Eu poderia ter uma charrete, talvez, mas não é o caso. Tenho carro, e é ele que preciso novamente dominar. É um senhor problema. A este problema real, todavia, junta-se a burocracia, com suas malhas fortíssimas que entravam o movimento e o crescimento do Brasil como uma teia de aranha que prende uma bela borboleta. A burocracia consegue multiplicar por mil meu problema.
Eu já tenho sérias ressalvas à simples existência da carteira de habilitação. Ela é um triste exemplo da mentalidade burocrática, aliás: um papel que teria o dom mágico de “provar” que seu feliz portador seria capaz de dirigir. Ora, só para começar, isso é mentira. Conheço muita gente habilitada que não sabe dirigir, e gente sem habilitação que dirige extremamente bem. O que a CNH prova é apenas que a pessoa teve tempo, paciência e dinheiro, muito dinheiro, e passou por aulinhas que ensinam não a dirigir, mas a passar em uma prova imaginada por burocratas. Todo o esquema da CNH, aliás, é tipicamente burocrático, com profunda desconfiança das pessoas, tratadas todas como estelionatárias e mentirosas contumazes, e confiança em papéis que nada dizem. Cada aula, hoje em dia, deve ser “comprovada” pela impressão digital da vítima, digo, do aluno. Ora, a impressão digital só prova que a pessoa passou o dedo pelo leitor. Aula é outra coisa. E mesmo esta, como já disse, não tem praticamente nada a ver com a capacidade de dirigir no trânsito brasileiro, sendo apenas preparação para uma provinha burocrática.
Pois imaginem os senhores que eu vim a descobrir, após minha amputação, que existe uma habilitação “especial”. Uma CNH exclusiva para aleijados, em que as letrinhas e códigos, em vez de autorizar a dirigir, proíbem, tornando obrigatório que qualquer carro que se queira dirigir tenha instalado esta ou aquela engenhoca cara. Uma espécie de anti-CNH. Uma CNH que, evidentemente, é ainda mais complicada e ainda mais difícil de obter, pois para os burocratas a melhor resposta à situação de alguém que já ganhou uma tonelada de problemas ao perder um membro é lançar-lhe ao colo outra tonelada e meia de problemas e chateações ainda piores. É isso mesmo: a pessoa que se tenha tornado deficiente, em vez de ser ajudada, é ao contrário lançada em um cipoal de novos problemas burocráticos. Afinal, perder uma perna é pouco; os burocratas precisam atrapalhar mais e mais!
Estou ainda no começo do processo, mas já pude perceber o quanto é delirante. Para começar, tive de alugar um carro e viajar, levado pelo meu filho, para a cidade a centenas de quilômetros de onde moro onde há aquele prodígio da burocracia: um médico que, ao contrário dos seus colegas normais, é capaz de perceber que eu não tenho uma perna. Sim, senhoras e senhores, amigos e amigas: é preciso um exame médico especial, além do exame de vista já rotineiro, para comprovar a perda do membro. E este exame, claro, é mais difícil e mais longe. Somos relativamente poucos os aleijados, e os poderes especiais que facultam a um médico exarar o tão prodigioso diagnóstico de uma amputação não estão, evidentemente, ao alcance de qualquer doutor do interior. Só o médico especial consegue perceber que ali onde deveria estar uma perna há hoje apenas um vazio. Presumo que qualquer outro médico se enganaria facilmente e acharia que minha perna estivesse apenas recolhida, como uma antena, ou talvez tivesse ficado em casa dormente enquanto eu saía sem ela. Acontece.
Pois a esse médico compete um dever burocrático ainda mais insano. Este, para mim, abriu-me aos olhos o coração da burocracia, o lugar onde ela teria uma alma, se tal coisa fosse possível. É o seguinte: políticos (que criam as burocracias) e burocratas (que as mantêm e aumentam) uniram-se num sabá de feiticeiras, numa madrugada de sexta-feira 13, sob uma lua cheia cor de sangue, e criaram uma listinha de códigos semissecretos, de A a Z. Não são totalmente secretos porque podem ser encontrados na internet, mas quase o são porque a leitura deles leva qualquer pessoa honesta a um estado de profunda exasperação com os horrores da burocracia e de sua mentalidade. É uma listagem exatamente tão longa quanto o alfabeto, em que cada letra a mais significa um pesado fardo a mais para ser colocado sobre os ombros já recurvados do aleijado na forma de uma engenhoca determinada a ser obrigatoriamente instalada em qualquer veículo que o pobre aleijado ambicione dirigir.
Médicos e automóveis só se combinam, normalmente, no fato de que, por ganharem bem, aqueles tendem a ter exemplares bastante caros destes. Conheço muitos médicos, e raríssimos são os que sabem o que quer que seja acerca de automóveis além do necessário para dirigi-los, e mesmo assim nem sempre muito bem. Mas a louca burocracia brasileira coloca na mão de um médico decidir quais devem ser tornadas obrigatórias dentre as engenhocas codificadas de A a Z na listinha que mencionei acima. Numa exibição virtuosística de mentalidade burocrática, um médico(!) enfileira no papel obrigações e proibições de porcas, engrenagens e parafusos, como se ele entendesse o que quer que seja de engenharia automotiva, tornando assim ainda mais difícil e complexa a tarefa do pobre aleijado de tentar voltar a dirigir.
Se o médico – logo um médico! É como se quisessem conspurcar a nobreza dessa profissão, arrastando-a no fundo lodoso do poço de fezes da miséria burocrática – rabiscar, com sua indefectível letra incompreensível, um “C” no formulário, o pobre aleijado já estará ainda mais restrito, ainda mais incapacitado que o que já estava imediatamente antes. Ser-lhe-á, a partir daquele negro momento, “obrigatório o uso de acelerador à esquerda”. Se ao lado do “C” o filho de Hipócrates desenhar cuidadosamente um “E” de “erro” ou “estupidez”, será ao pobre aleijado “obrigatório o uso de empunhadura/manopla/pomo no volante”. Já um “J” torna “obrigatório o uso de adaptação dos comandos de painel para os membros inferiores e/ou outras partes do corpo”. E as letras prosseguem, até o “Z” final, com cada uma consistindo na obrigatoriedade de um dado sistema de engenharia arbitrariamente escolhido, que prejudica e diminui ainda mais o leque de possibilidades de que poderia dispor o pobre aleijado para se adaptar, e ao seu veículo, à nova situação.
Só um burocrata de alma especialmente cruel teria pensado em impor, como o fez o criador desse sistema, novas e mais loucas obrigatoriedades justamente àqueles que já perderam capacidades valiosas. E só um louco, e louco furioso, colocaria na mão logo de um médico a função de escolher componentes de engenharia automotiva a impor aos aleijados, caso a caso, individualmente, em uma listagem de que vai de A a Z.
Engenheiros são capazes de criar, escolher e aperfeiçoar mecanismos que sirvam para adaptar um veículo às necessidades deste ou daquele aleijado. É uma colaboração positiva. Foram engenheiros que criaram os sistemas arbitrariamente listados pelos burocratas, e seria evidentemente um engenheiro que poderia fazer a melhor escolha entre eles ou, melhor ainda, criar uma adaptação personalizada para aquela pessoa, com aquela deficiência. Nada impede, claro, que um determinado sistema possa ser substituído com proveito por outro diferente, de acordo com o gosto e a experiência do motorista aleijado.
Mas ninguém, nem mesmo um engenheiro, estaria ajudando o aleijado se lhe impusesse esta ou aquela adaptação específica, e é absurdo ao ponto do cômico que logo um médico seja posto a fazê-lo. E sempre ajudaria, e ajudaria tremendamente, quem oferecesse sugestões e criasse sistemas novos de adaptação. Mas os burocratas, loucos e cruéis, fazem o inverso. Não oferecem, obrigam. Não aumentam o leque de possibilidades, mas o restringem, e o restringem delirantemente ao tornar obrigatória esta ou aquela adaptação de uma lista que, é fácil perceber, foi criada para dar a cada letra do alfabeto um significado negativo, uma proibição a mais para dificultar a vida do aleijado que, afinal, já tem a vida muito fácil. Ou pelo menos é o que parecem pensar os burocratas.
E o mais delirante de tudo é o abuso de um médico para isso. De todos os profissionais, provavelmente o menos capaz de oferecer um auxílio construtivo na escolha de componentes de engenharia automotiva seria o médico. Sua profissão é extremamente demandante, tanto em termos de estudos quanto de trabalho. Médicos simplesmente não têm tempo nem, via de regra, interesse bastante para se dedicar a aprender coisas que pertencem à seara dos engenheiros, como adaptações veiculares. Ninguém está tão distante desse campo da engenharia quanto os médicos. Seria menos delirante colocar ali qualquer outra pessoa, dar a um membro de qualquer outra categoria profissional esta nada nobre missão de restringir ainda mais as possibilidades dos aleijados. Um padre, um lavrador ou um astrofísico estariam menos distantes dos talentos necessários para tentar fazer sair algo que prestasse daquela horrenda função burocrática de colocador de fardos nos ombros alheios.
Dá-la a um médico é uma forma de demonstrar desprezo pela nobre arte da medicina, ao gastar o tempo de um doutor com coisas que não têm absolutamente nada a ver com a sua formação, numa função que só serve para humilhá-lo ao deixar claro a ele e a sua vítima – o aleijado de chapéu na mão defronte a seu trono de obrigatoriedades arbitrárias de engenharia – que ele não sabe o que faz e não entende do assunto em que foi colocado a decretar maldades. Dar a um médico esta horrenda função de aleijar ainda mais, desta feita burocraticamente, alguém cuja biologia já foi castigada é uma maneira de garantir que as decisões sejam arbitrárias e malignas em cada um de seus efeitos.
O médico não é engenheiro, e adaptações veiculares são da alçada dos engenheiros e demais Professores Pardal. O médico é o antiengenheiro, na verdade. Ninguém está tão longe do ofício do engenheiro quanto o médico. E o horrendo afã de impor arbitrariamente obrigações ulteriores aos pobres aleijados é um trabalho de censura da engenharia. Pôr um médico a desempenhá-lo é como pôr um engenheiro a selecionar os anestésicos a serem aplicados numa cirurgia: uma garantia de que aquilo não funcionará direito.
Mas é assim que funciona a burocracia. O aleijado é forçado a viajar. É forçado a submeter-se a um vexatório exame que busca provar que ele é mesmo aleijado, coisa que não deveria ser absolutamente da alçada do Estado se não para ajudá-lo. Então, uma pessoa sem qualificação alguma para a função, ou com qualificações opostas às pertinentes, pune ainda mais e ainda mais cruelmente o aleijado, já punido pela perda do membro, ao obrigá-lo a dirigir apenas veículos com esta ou aquela engenhoca. Em seguida – e esta será a minha próxima etapa – o aleijado é forçado a fazer aulas de autoescola num veículo que tenha aqueles componentes de engenharia determinados pelo jardineiro, ops, pelo bailarino, ops, pelo médico, e refaz a prova de habilitação que teve de fazer anos antes, quando pela primeira vez fora aprisionado pela delirante burocracia da CNH. Tudo, claro, a centenas de quilômetros de casa, tendo de pagar hotel e dar um jeito de se virar com sua deficiência física em uma cidade estranha.
Frequentemente observo que a legislação brasileira é muitas vezes, ela mesma, um crime. Este é um caso típico. A mentalidade burocrática, que acha que o que move o mundo são as proibições e obrigatoriedades, conduzidas por entre altas cercas de papéis e carimbos, ao assestar os olhos no aleijado faz dele alvo preferencial. O crudelíssimo processo ao qual submetem logo as pessoas que precisam de mais ajuda, não de mais obstáculos, por terem perdido algumas capacidades que todos os demais têm, é prova do que já foi discernido no julgamento de Eichmann, o burocrata de Hitler: o pensamento burocrático leva à morte ou ao sofrimento sem um soluço, sem nem sequer perceber, por um instante que seja, a malignidade do que se está fazendo.
O sistema de CNH como um todo, com suas autoescolas, ops, “centros de formação de condutores”, exames práticos e teóricos, psicotécnicos e demais palhaçadas inúteis, já é um enorme desperdício de dinheiro público e uma punição aos pobres pelo simples fato de o serem. Conheço muita gente boa que dirige bem, mas não tem dinheiro para tirar a carteira, a cada dia mais cara por a cada dia ser inventada uma palhaçada a mais para encarecer o processo. Agora até videogames as autoescolas têm de ter!
O sistema de CNH “especial”, contudo, é muito pior. Além de completamente vedado aos pobres, pelo nível de dificuldade e gastos loucamente superiores aos da CNH normal, é um sistema cruel e punitivo para todas as suas vítimas. Ele não faz sentido algum, não ajuda em absolutamente nada o país nem, muitíssimo menos, os aleijados que massacra com suas caríssimas arbitrariedades. Esse sistema tem a crueldade de um menininho com uma lupa na mão, dedicando-se a queimar formigas com a luz do sol. É a malignidade da burocracia voltada contra o mais fraco, o mais frágil, o já vitimado.
Dá vergonha que seja o governo de nosso país a ter um sistema como esse. Dá vergonha que sejam nossos impostos que o banquem. Dá vergonha saber que há quem lucre muito com tamanha imoralidade, com tamanha crueldade contra quem mais precisa de ajuda.
No Brasil, a lei é o crime maior.